Ainda que cada Final Fantasy seja um jogo independente de seu antecessor, a série traz diversos elementos que unem toda a franquia em torno de sua própria mitologia. Os Chocobos, os monstros e a estética são alguns dos aspectos de coesão mais evidentes. Porém, nenhum deles é tão icônico quanto os summons.

Essas entidades já apareceram de diferentes formas ao longo dos jogos, seja como grandes criaturas vindo de lugar nenhum ou mesmo como naves e motos. Só que, mais importante do que a sua aparência, é a história por trás de cada uma delas. Não é segredo para ninguém que a grande maioria dos summons faz parte das mais variadas mitologias que foram adaptadas para se encaixar na loucura que é cada Final Fantasy. E é isso que torna tudo mais interessante.

São partes de culturas bastante variadas que se misturam e, por muitas vezes, se perdem dentro do universo do próprio jogo. É o caso de Bahamut, o mais icônico dos summons da série e cuja origem é desconhecida por muitos dos jogadores — principalmente por esbarrar em tantos outros mitos.

Não por acaso, ele é a entidade mais lembrada da série: assim como a franquia em si, ele é uma mistura de lendas e tradições de diferentes povos, sendo uma enorme amálgama daquilo que existia na região da Mesopotâmia.

O que sustenta o mundo

Antes de entrarmos no tema, vale lembrar que não existe versão definitiva de nenhum mito. Como são histórias vindas de culturas orais, elas acabam ganhando diferentes roupagens. Assim, o que temos hoje é uma ou mais leituras dessas lendas.

Dito isso, podemos partir para a definição básica de quem é Bahamut. Ao contrário do que os jogos da Square apresentam, suas principais representações não o mostram como um grande dragão, mas como um peixe — ou uma baleia, em algumas interpretações. A referência mais direta à entidade pode ser encontrada na mitologia árabe pré-islâmica, que a descreve como um peixe gigantesco que carrega o mundo nas costas.

Ilustração das camadas do mundo feita para o The Book of Imaginary Beings da Vakalo School of Arts and Design, na Grécia

A imagem mais clássica foi cristalizada por Edward William Lane em seu livro Arabian society in the middle ages: studies from the Thousand and one nights, que coletou várias histórias dos povos árabes durante o século XIX para, a partir de As Mil e Uma Noites, entender aquela cultura durante a Idade Média. Nesta análise, ele chegou à versão que dizia que Deus criou o mundo em camadas, colocando a Terra sendo sustentada pelos sete infernos. Abaixo deles, um anjo sobre uma montanha feita de rubi que repousava em um touro com 400 olhos, orelhas, ventas, bocas, línguas e pés. E, para manter o animal, o grande peixe Bahamut que nadava sobre águas que pairavam sobre a escuridão.

Algumas outras histórias acrescentam mais camadas à essa pitoresca figura, mas o mais importante aqui é o que ela quer dizer. Essa curiosa cosmogonia é, segundo muitos autores, uma forma de os povos árabes explicarem a existência de um deus que sirva de base para tudo. Afinal, se tudo isso se sustenta, é porque existe algo que os colocou ali e mantém tudo em ordem.

Outro ponto curioso é que esse boi citado na lenda árabe também está presente nos jogos. Ainda que bem menos bizarro do que nas lendas, Kujata aparece a partir de Final Fantasy VII como um touro gigante que geralmente atropela seus inimigos. Lembra dele?

De onde veio o dragão?

Se a raiz mitológica de Bahamut o retrata como um peixe, por que diabos Final Fantasy passa a mostrá-lo como um dragão? É difícil apontar exatamente qual a razão para essa mudança tão radical, mas é possível seguir por alguns caminhos que podem ajudar a explicar. A primeira delas é bem mais contemporânea e responde pelo nome Dungeons & Dragons.

Bahamut em Final Fantasy X

O popular jogo de RPG foi um dos principais responsáveis por popularizar a figura de Bahamut como a gente conhece. Foi D&D quem resgatou o velho mito e apresentou a criatura em uma forma dracônica, chamando-a ainda de Rei dos Dragões e principal rival de Tiamat. Foi a partir dessa nova interpretação que Bahamut passou a ser exportado para outras mídias, chegando à forma que conhecemos em Final Fantasy, por exemplo.

Porém, isso mostra um pouco da grande mistura pela qual o mito passou. Dentro das lendas originais, Bahamut e Tiamat não têm qualquer relação direta, sendo oriundas de culturas diferentes. Porém, ainda assim, há algumas interpretações podem levar a crer que exista uma ligação direta entre esses dois mitos. E é aí que começa a verdadeira salada.

Bahamut e Behemoth

Para entender essa bagunça, lembre-se de que nenhuma cultura existe isolada da outra. Povos diferentes sempre estiveram em contato e essa troca de vivência fez com que muitas mitologias se influenciassem, principalmente quando falamos da área que hoje corresponde ao Oriente Médio. O Crescente Fértil não é chamado de berço da civilização à toa, já que muita troca aconteceu na região mesopotâmica. As similaridades entre o dilúvio bíblico e o mito de Gilgamesh é a prova mais clara disso.

Behemoth e Leviatã em ilustração de William Blake (1826)

Em seu Livro dos Seres Imaginários, o argentino Jorge Luis Borges defende que Bahamut nada mais é do que uma derivação de outro mito. Segundo ele, a visão que os árabes tinham do Peixe que Sustenta o Mundo nada mais é do que uma derivação do mito hebraico do Behemoth. Em suas palavras, uma “glamourização” da lenda original.

De fato, as pronúncias são muito parecidas e é fácil imaginar uma transformação da palavra com base nas variações de idiomas. Dessa forma, essas duas criaturas que sempre nos acostumamos a ver separadas nos jogos acabam sendo a mesma coisa.

Ainda de acordo com Borges, o mito do Behemoth surge alguns séculos antes de Cristo quando os hebreus têm seu primeiro contato com animais como hipopótamos ou elefantes. Assustados com aquelas criaturas estranhas, enormes e assustadoras, eles criam uma interpretação quase que mística para a sua existência, transformando-os em seres fantásticos. Na verdade, o nome Behemoth é o plural de b’hmah, palavra hebraica para “besta” — um nome que se encaixa perfeitamente para aquelas feras que tanto lhes causava espanto.

Bahamut

Assim, a figura do Behemoth é tão forte na cultura hebraica que ele é um dos poucos monstros mitológicos a ser citado na Bíblia cristã. Ainda que algumas traduções já se refiram a ele como hipopótamo, é possível encontrar referências diretas a essas criaturas no livro de Jó, quando Deus o apresenta como uma de suas maiores criações, ao lado do Leviatã — outro summon de Final Fantasy.

Contempla agora o beemote, que eu fiz contigo, que come erva como o boi. Eis que a sua força está nos seus lombos, e o seu poder, nos músculos do seu ventre. Quando quer, move a sua cauda como cedro; os nervos da suas coxas estão entretecidos. Os seus ossos são como tubos de bronze; a sua ossada é como barras de ferro. Ele é obra-prima dos caminhos Deus, o que fez o fez o proveu da sua espada. (Jó 40: 15-19)

Essa descrição bíblica, inclusive, faz com certas pessoas acreditem que aquilo é descrito em Jó como o Behemoth nada mais é do que um dinossauro herbívoro — um braquiossauro, talvez. Isso pouco tem a ver com o caráter mitológico da coisa, mas serve de curiosidade para mostrar como a lenda se mistura até mesmo com as tentativas de explicar o mundo sob o viés criacionista.

Behemoth em Final Fantasy XV

Já dentro dos jogos da Square, o Behemoth funciona como uma criatura comum dentro do bestiário da série, ainda que muito poderosa. Sua representação, no entanto, não lembra em nada um dos animais que realmente inspiraram a história, sendo uma criatura quase que felina em muitos momentos. Por outro lado, os chifres característicos que aparecem nos games podem ser facilmente relacionados com as presas de um hipopótamo ou de um elefante.

Sincretismo mesopotâmico

Como dito, Behemoth e Leviatã são figuras bastante conhecidas. Por serem citados na Bíblia, esses mitos ganham muita atenção até mesmo de pessoas que não conhecem tanto as lendas dos povos antigos. E uma das razões desse interesse é exatamente o confronto existente entre essas feras

Isso é algo tão presente no imaginário popular que já ganhou diversas representações, seja no mundo das artes ou da cultura pop em si. Em Pokémon, inclusive, o embate entre Groudon e Kyogre em Ruby e Sapphire é diretamente inspirado no Behemoth/Bahamut e Leviatã. Dessa forma, Rayquaza seria Ziz, o terceiro dos monstros bíblicos.

hoenn_kyogre_groudon_battle_by_coldblitz-d7owvld

Essa rivalidade entre as criaturas é algo que não vem da cultura cristã, mas das crenças judaicas — mais especificamente no livro apócrifo de Enoque. Segundo essa tradição, os dois seres se enfrentariam no final dos tempos, causando a destruição do mundo. Assim, quando o Behemoth matasse o Leviatã, a carne do monstro seria usada para alimentar as pessoas que sobrevivessem.

E o que isso tem a ver com o que vimos até então? Algumas interpretações traçam um paralelo entre essa narrativa e os mitos de outros povos da Mesopotâmia.  Na mitologia babilônica, por exemplo, Marduk e Tiamat também se enfrentam em situações semelhantes, mas dentro de um contexto cosmogônico. Neste caso, o mundo foi criado a partir da carcaça de Tiamat.

Outra explicação é de que Leviatã é uma derivação de Lotan, uma serpente marinha de sete cabeças derrotado por Baal na cultura cananeia ou mesmo de Tehom, o Grande Abismo e rival de Bohum dos acádios.

E, embora pareçam coisas desconexas, cada um desses povos rivalizou com os hebreus em algum momento de sua história, então é fácil imaginar como esses mitos acabaram sendo transformados em representações do mal. Basta ver o que os próprios hebreus fizeram com Baal, deus cananeu da fertilidade, que se transformou no demônio Belzebu (de Baalzebub, senhor das moscas).

Amálgama

Bahamut não é um dos ícones de Final Fantasy por acaso. Ele é a personificação das misturas que a série faz em relação a todos esses mitos. Ainda que a Square não tenha sido responsável por dar forma a essa salada de culturas, a figura do monstro representa muito bem tudo aquilo que a série representa. Assim como o dragão que é um peixe que é, na verdade, um hipopótamo, o jogo também bebe de muitas fontes culturais para criar suas histórias, fazendo adaptações e misturando conceitos para criar algo próprio.

Vira uma bagunça gigantesca, mas é algo que faz parte de toda mitologia. A cultura é algo vivo e está em constante transformação, mesmo que isso signifique misturar ideias de diferentes cantos — incluindo do videogame.

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