Desde a primeira vez que li os livros da série As Crônicas de Gelo e Fogo, a narrativa foi o que mais me cativou naquela história. A forma como a saga dos Sete Reinos era contada, com muitas reviravoltas e cada capítulo sendo visto sob a perspectiva de um determinado personagem trouxe um dinâmica diferente à leitura, principalmente no que diz respeito ao modo como nos relacionamos com aquele universo e seus habitantes.
A cada nova página, eu sofria ao ver uma tragédia se aproximando, praguejava quando um dos heróis fazia algo impensado, xingava quando os planos dos vilões davam certo ou simplesmente queria enforcar a Cersei sempre que ela aparecia em cena. Era uma leitura tão intensa que não só me fez devorar milhares de folhas em questão de dias como me jogou para dentro daquele mundo como poucas obras conseguiram – uma proeza que o novo Game of Thrones da Telltale também conseguiu.
E o maior mérito do estúdio foi exatamente adaptar para os video games de maneira magistral essas sensações que eram tão intensas nos livros. Embora seja bem curto, o primeiro capítulo do jogo, Iron from Ice, nos mostra que toda a essência da obra de George R. R. Martin está ali nos consoles para nos fazer sofrer mais uma vez – e matar qualquer um com quem a gente ouse a se afeiçoar.
Embora esta não seja a primeira vez que As Crônicas de Gelo e Fogo cheguem aos video games, a Telltale foi a única a conseguir recriar o espírito da história original. Para isso, ela decidiu deixar de lado a ação dos campos de batalha ou os mistérios além da Muralha para se focar naquilo que torna aquele universo tão interessante: a narrativa.
Se aproveitando da fórmula que já deu tão certo com The Walking Dead e The Wolf Among Us, o estúdio deu a Game of Thrones o tratamento merecido. Assim, em vez de se concentrar nas batalhas ou mesmo nos elementos mágicos daquele universo, o jogo trabalha simplesmente com seus personagens, suas relações e com todo aquele jogo de poder que torna a trama dos livros e da serie de TV tão interessantes.
Isso significa que, assim como nos títulos anteriores da Telltale, boa parte do game se resume a diálogos e a tomada de decisões. E, mais uma vez, isso acaba sendo o ponto alto do título, já que a produtora soube não apenas criar uma trama envolvente e que te prende do começo ao fim, como ainda reproduzir a narrativa típica dos livros.
A Telltale trouxe a narrativa dos livros para o game, criando uma trama com vários pontos de vista e, ao mesmo tempo, bastante envolvente.
Assim como acontece em As Crônicas de Gelo e Fogo, Iron from Ice é contado a partir do ponto de vista de diferentes personagens espalhados por toda Westeros e isso torna a coisa não só mais dinâmica, como ajuda a criar a sensação de que está tudo realmente conectado, evidenciando que as decisões tomadas no Norte podem afetar diretamente o destino de quem está em Porto Real – e vice-versa.
Para isso, somos apresentados à Casa Forrester, uma família nortenha que lutou ao lado de Robb Stark na guerra contra os Lannister e que, após a queda do Jovem Lobo, precisa fazer de tudo para sobreviver à vingança de seus rivais.
E, embora os Forrester nos passem a sensação inicial de serem apenas uma versão genérica dos Stark, a semelhança não chega a ser algo que realmente atrapalha. Por mais que essa abordagem seja uma muleta para facilitar a identificação de quem esperava encontrar pelo menos um “The Winter is Coming”, os novos personagens se revelam interessantes e profundos o suficiente para protagonizarem sua própria história sem se apoiar somente em rostos conhecidos.
Isso não quer dizer, porém, que não vamos encontrar alguns dos personagens dos livros e da série aqui e ali. No primeiro capítulo, por exemplo, Cersei e Tyrion Lannister dão o ar da graça, assim como Margaery Tyrell e Ramsay Bolton. No entanto, ao contrário do que possa parecer, a participação desses personagens está longe de ser um fanservice para pegar carona no sucesso do show da HBO, já que cada um deles tem uma razão mais do que convincente para aparecer ali. Alguns, inclusive, desempenham papéis importante na trama, mesmo sendo coadjuvantes na história como um todo.
“No jogo dos tronos, você vence ou morre”. Em Iron from Ice, aquela velha frase que resume tão bem a série se mostra mais uma vez verdadeira. Se o sistema de decisões da Telltale já havia funcionado tem seus títulos passados, era de se imaginar que teríamos algo ainda mais interessante em Game of Thrones.
Também pudera. Como mencionado anteriormente, o grande charme da franquia sempre foi a relação de poder e o game consegue reproduzir essas situações muito bem desde os primeiros minutos de história.
Apesar de serem personagens inéditos, você se sente responsável por cada um dos Forrester, o que torna a tomada de decisões ainda mais difícil. É a mesma agonia da série e dos livros, mas muito mais intensa.
O sistema de decisões é tão intenso e bem construído que me vi mais uma vez diante de toda a angústia e revolta que me acompanharam durante a leitura dos livros. A diferença é que, desta vez, eu era o responsável por tudo – deixando tudo ainda mais complicado.
Em Iron from Ice, a Telltale se aproveita de sua experiência para criar narrativas densas e envolventes para expandir o universo de Game of Thrones ao mesmo tempo em que traz vários elementos conhecidos dos fãs. A história focada em múltiplos personagens, por exemplo, está ali não apenas para que você tenha um panorama maior do que está acontecendo em Westeros, mas para sentir como o desdobramento de suas ações pode ir além das muralhas de uma cidade e trazer consequências devastadoras.
E isso fica ainda mais desesperador quando você precisa dar uma resposta em questão de segundos e qualquer palavra errada pode significar a desgraçada de sua Casa. É uma agonia enorme, principalmente quando você tenta prever o que está por vir.
Nos livros, por mais que eu xingasse os capítulos de Jaime Lannister ou praguejasse as escolhas de Robb Stark, eu era apenas um leitor, ou seja, incapaz de interferir naqueles acontecimentos. Já no game, por outro lado, tudo depende de mim – e esse senso de responsabilidade faz com que você pondere bem antes de fazer qualquer coisa.
Assim, por mais que você queira esganar a rainha Cersei quando ela começa a humilhar os Forrester na frente de toda a corte, você precisa medir bem suas palavras para agradá-la e evitar que isso traga mais dores de cabeça para frente. O problema é que, dependendo do que você faça ou fale, isso vai influenciar suas relações com Margaery, que pode ser uma aliada ainda mais valiosa no futuro.
Esse é apenas um único exemplo de como você está sendo testado o tempo todo, seja no Norte ou em Porto Real. Por mais que os Forrester sejam uma família nova para muita gente, você se apega facilmente a eles e, com isso, se importa com seus destinos. E, em Game of Thrones, paixão e razão andam lado a lado – e sempre rumo à desgraça.
Isso é tão verdadeiro que até mesmo aquela velha piada de que você não pode se apegar a ninguém em Westeros volta aqui com força. Dependendo de suas decisões ao longo deste primeiro capítulo, as reviravoltas que se apresentam em Iron from Ice vão fazê-lo pular do sofá com um palavrão. É a maldição de quem gosta de Game of Thrones – e estamos apenas no primeiro capítulo.
Você pode até não gostar do estilo dos jogos da Telltale, mas é impossível negar o quanto a narrativa do estúdio se encaixa bem dentro do universo de Game of Thrones. O primeiro dos seis capítulos da série, Iron from Ice, é a prova definitiva disso, sendo o começo que todo fã dos livros e da série de TV esperava ver há tempos.
Depois de dois jogos bem ruins, Game of Thrones finalmente ganha uma adaptação de respeito. Ele pode não agradar todo mundo, mas certamente é tudo aquilo que os fãs esperavam.
Em relação aos lançamentos anteriores da empresa, Game of Thrones parece ter evoluído muito pouco em termos mais técnicos. As coisas ainda parecem um pouco travadas, os problemas gráficos persistem e o próprio visual mais cartunesco pode fazer muita gente torcer o nariz — embora a representação dos atores da HBO tenha ficado muito boa —, mas nada realmente crítico a ponto de ofuscar o brilho geral da experiência.
É claro que Iron from Ice não se baseia apenas em diálogos e decisões, tendo vários momentos de ação, com um sistema de combate que lembra muito aquilo que vimos em Beyond: Two Souls, da Quantic Dream. Ironicamente, essas cenas são apenas pontos de respiro da trama, já que a parte central de todo o game são as relações de poder e como seus personagens lidam com tudo isso.
Assim, a estreia do Game of Thrones da Telltale não poderia ser mais positiva. O estúdio conseguiu recriar tudo aquilo que conquistou os fãs da série nos livros e na TV, seja com personagens cativantes, um mundo envolvente ou aquela narrativa que te faz entrar em desespero a cada nova cena. E não é o fato de estarmos diante uma Casa menor e de fatos de pouca importância para o contexto geral daquele universo que as coisas são menos interessantes. Depois de acompanharmos passivamente várias histórias, Iron from Ice deixa com que construamos nosso próprio caminho em Westeros e com a qualidade e a intensidade que conhecemo. O único problema é que ela é toda banhada a sangue.
Afinal, Valar Morghulis.
O jogo foi analisado na versão para o PlayStation 4.