Quando Skyrim chegou aos consoles, em 2011, a piada da flecha no joelho logo viralizou. As brincadeiras e os memes giravam todos em torno de um NPC que se lamentava ter sido um aventureiro como o jogador, mas que teve de largar essa vida por conta de uma fatalidade. E, ao ver seu personagem, era como se ele visse todos os seus sonhos frustrados sendo representados em uma só pessoa.
Por mais estranho que pareça, essa passagem diz muito sobre o que é Uncharted 4: A Thief’s End. A brincadeira com a flecha no joelho é, na verdade, uma expressão nórdica para se referir ao casamento e que, em Skyrim, foi adaptada de maneira literal. Porém, a Naughty Dog decide seguir por outro caminho e aprofunda o conceito ao mostrar como essa flechada realmente é capaz de afetar alguém e discute sobre pontos básicos de um relacionamento, sobre o que deixamos de lado por alguém, sobre o que nos faz falta e, acima de tudo, sobre quais as nossas prioridades diante de todo esse dilema.
Isso tudo é fruto de um enorme amadurecimento da capacidade narrativa do estúdio. Depois de The Last of Us, nada mais foi o mesmo e a gente sente isso em Uncharted 4. A pressão por algo tão grandioso e impactante é evidente e, por mais que a nova aventura de Drake sequer se aproxime da profundidade do que vimos no mundo pós-apocalíptico de Joel e Ellie, fica claro o quanto o enredo de Uncharted 4 se distancia de seus antecessores, ainda que não perca suas características básicas.
Depois de tudo o que vimos na trilogia do PS3, Drake abriu mão de sua antiga vida para se dedicar à família que acabou de construir com Elena. Casado, trocou as cavernas e relíquias por uma rotina em escritórios, carimbando documentos velhos. Ao mesmo tempo, continua encarando os registros de suas velhas aventuras com saudosismo, como lembranças de dias que jamais vão voltar. Como o NPC de Skyrim, é o homem cuja flechada no joelho o impede de reviver isso tudo.
Uncharted 4 é, na verdade, a jornada e salvação do herói — ainda que, para isso, seja preciso abrir mão das coisas que ele ama.
E a volta de seu irmão, Sam, é exatamente o chamado à aventura que Drake tanto esperava. Tanto que, mesmo relutante, ele deixa de lado a promessa que fez à esposa e segue em busca de um lendário tesouro pirata. Porém, não se trata da velha fórmula Uncharted de sempre.
Ao contrário dos jogos anteriores, em que essa caçada era completamente vazia e fundamentada apenas em cenas de perseguição e de explosão, a gente realmente sente uma evolução no personagem com base em toda essa história. É quando o título A Thief’s End começa realmente a fazer sentido.
O amadurecimento da Naughty Dog não se deu apenas no fato de a produtora estar se preocupando em criar camadas para suas histórias, mas também no fato de fazer com que esses enredos sejam mais pé no chão. Esqueça os elementos místicos e os inimigos sobrenaturais. Em Uncharted 4, todos os problemas são humanos. Ainda há o vilão e as situações absurdas de sempre, mas o conflito principal acontece dentro do próprio Drake. É uma jornada de autodescoberta em busca daquilo que é realmente mais importante para ele.
Por mais que não haja espaço para criar grandes dilemas, A Thief’s End toca em pontos que continuam sendo comuns a todos nós. Esse é seu grande charme.
É aí que você começa a entender o paralelo que a trama faz entre o tesouro de Henry Avery e o próprio Nathan. A frase “Sou um homem afortunado e devo buscar minha fortuna” usada para abrir o jogo descreve muito bem esse processo que o jogador acompanha na evolução de Drake. A ideia de que, no fim, ele tem de escolher qual é o seu verdadeiro tesouro.
Esse é um subtexto que é reforçado a todo momento ao longo da história. Sam e Elena representam desejos e valores conflitantes para o herói e esses ideais se chocam constantemente, fazendo com que Drake tenha de pender para um lado ou para outro. E Uncharted 4 se aproveita disso até mesmo para desenvolver um pouco mais do passado do protagonista, indo aonde Drake’s Deception tentou e não conseguiu. A partir de algumas cenas rápidas, o game traz explicações razoáveis para a origem do personagem e reforça suas motivações, fazendo com que tudo isso se encaixe dentro do dilema que ele vive.
É aqui que a figura de São Dimas se mostra tão importante. O santo católico chamado de “o Bom Ladrão” possui vários paralelos com Nathan e Uncharted 4 consegue nos mostrar, baseado no passado e no presente, o que o futuro reserva para ele. Ao mesmo tempo em que temos um ladrão que tenta se redimir, há o contraponto com aquele que se deixa levar e se perde dentro de sua própria ambição.
E isso nos é mostrado em vários momentos, seja com Drake e Sam, Avery e seus piratas ou mesmo com outros personagens que acabam cruzando seu caminho. E, assim como ao santo foi prometido a salvação do Paraíso, você logo percebe que a história de Uncharted 4 é, na verdade, essa jornada e salvação do herói — ainda que, para isso, seja preciso abrir mão das coisas que ele ama.
Tudo isso parece muito piegas — e é, já que Uncharted jamais se preocupou em fugir de clichês —, mas a Naughty Dog consegue apresentar todos esses elementos dignos de uma novela das 21h de uma maneira tão interessante que é muito fácil se envolver. O roteiro tem seus furos, mas consegue criar a dinâmica entre os personagens de modo que todos aqueles conflitos são bem explorados. A Thief’s End se baseia sobretudo na química entre seus protagonistas e no ritmo de bons diálogos — e funciona.
Isso faz com que a qualidade técnica também se transforme em um elemento importante também para a narrativa. Não se trata de uma simples masturbação visual pelos melhores gráficos da geração, mas de um cuidado para que isso também ajude a contar a história. A quantidade absurda de detalhes, sobretudo nas expressões faciais, está ali para que você perceba a sutileza das reações.
O jogo é fruto de um enorme amadurecimento da capacidade narrativa da Naughty Dog. Depois de The Last of Us, nada mais foi o mesmo e a gente sente isso em Uncharted 4.
Um sorriso constrangido, um olhar complacente ou um simples respirar aliviados: são pequenos elementos gráficos que não são jogados apenas para demonstrar poder de processamento, mas para construir uma situação. Você percebe a intenção do personagem ou mesmo sabe o que ele está pensando com apenas uma reação. Era algo que já tínhamos visto em The Last of Us e que volta a ser muito bem explorado por aqui.
Diante disso tudo, a famosa cena em que Drake joga Crash Bandicoot está longe de ser apenas um easter egg ou referência vazia. Na verdade, ela é um dos momentos mais importantes de todo o game e que fundamenta todos os pontos apresentados neste texto.
Assim como é nostálgico rever o antigo mascote da Naughty Dog, há um saudosismo melancólico em Drake ao ver que suas aventuras agora têm de se resumir ao videogame. Comemorada pelos fãs internet afora, essa cena em específico é a representação da tal flecha no joelho. É o momento em que vemos que aquele velho Drake já não existe mais e que, mais importante, fez suas escolhas. É quando o herói passa a ser aquele NPC que olha para o protagonista de Skyrim e diz que já foi como ele, mas já não pode mais repetir aqueles feitos.
E é muito interessante ver tudo isso ser discutido em um jogo como Uncharted. Como dito, não se trata de uma questão profunda e incômoda como vimos em The Last of Us, mas é algo que consegue dar o mínimo de profundidade a uma franquia que sempre foi muito rasa. Por mais que não haja espaço para criar grandes dilemas e momentos impactantes, A Thief’s End toca em pontos que continuam sendo comuns a todos nós.
Esse é o grande charme de Uncharted 4, já que, em termos de jogabilidade, ele continua sendo Uncharted. É claro, muito maior e mais bonito, mas ainda dentro daquilo que qualquer pessoa que jogou os anteriores pode esperar. Porém, ao nos lembrar de que às vezes somos obrigados a escolher nossos tesouros, ele toca na ferida de que nem sempre damos prioridade às coisas certas.