Todo mundo deve se lembrar da febre que foram os sensores de movimento. Capitaneada pelo Nintendo Wii, essa categoria de acessórios e jogos prometia revolucionar o mercado, modificando para sempre a forma como jogamos os nossos títulos favoritos. A moda pode até ter passado, os joysticks permaneceram soberanos, mas os aparelhos deixaram sua marca.
Um paralelo, e também um efeito semelhante, pode ser visto agora, enquanto o mundo fitness se encontra com o mercado digital. Aos poucos, essa dinâmica começa a chegar ao mundo dos jogos, com softwares que gamificam a prática de exercícios e nomes como Pokémon Go, que fez muita gente sedentária sair de casa, andar mais ou tomar caminhos longos para caçar alguns personagens ou disputar o controle de ginásios.
Parece ser da junção desses dois mundos que nasceu o Wipace, um produto da brasileira Kinship que une jogos, movimento e exercícios. Focado inicialmente em um público infantil, e ainda com alguns games simples em seu catálogo, ele resolve por si mesmo uma questão que, muitas vezes, é a pedra no sapato de jogadores em movimento – a conexão.
Ou, nesse caso, a ausência dela. Voltamos a Pokémon Go. É de se pensar que, em plena Brasil Game Show 2016, e poucos meses depois do lançamento do tão esperado game no país, o São Paulo Expo, onde aconteceu a feira, estaria fervilhando de treinadores. A primeira decepção era que não havia Pokéstops no local. A segunda vinha quando somente Zubats eram encontrados por ali. E a terceira, e pior, era que o sinal não funcionava bem dentro do pavilhão de exposições, impedindo até mesmo as distâncias de serem computadas, e os ovos, de chocarem.
Se fosse integrado ao game da Niantic, o Wipace resolveria esse problema. Ao funcionar de forma totalmente offline, ele acompanha o movimento do usuário e registra o total de passos dados, bem como a velocidade e a distância percorrida. Os dados são passados para um sistema on-line à conveniência do usuário, quando ele desejar ou estiver conectado. Mesmo sem conexão, permanece jogando. Ou, no caso de Pokémon Go, chocando.
Hora de se mexer
A concepção do dispositivo, entretanto, passa longe dos monstrinhos da Nintendo. De acordo com o co-fundador da Kinship, Cheny Schmeling, o Wipace nasceu para encarar um problema de saúde de frente, o sedentarismo infantil. “O dispositivo foi pesado para as crianças que passam muito tempo sentadas, jogando. Pensamos que seria possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo – exercícios e entretenimento.”
Da união desses conceitos surgiu o minúsculo aparelho, menor do que um relógio, e sem pulseira, para ser usado no calçado. Em seu interior estão um pedômetro, capaz de medir distâncias e contar passos e calorias, bem como um sensor que detecta movimentos pra os lados, frente e cima. A partir de tais dados, a Kinship desenvolveu uma central, a Wipace World, que conta com oito minigames, todos diferentes uns dos outros, e que estimulam diferentes tipos de atividades.
Apesar de acoplado ao pé do usuário, a ideia do dispositivo, pelo menos nessa fase inicial, é ser mais do que apenas um acompanhante de caminhadas. Schmeling explica que os jogos disponíveis hoje abrangem movimentações de todo o corpo e trabalham sentidos, reflexos, coordenação motora e até o senso de estratégia dos pequenos. Na BGS, por exemplo, um dos preferidos das crianças era o minigame onde um sapinho deveria ser alimentado com quitutes que caiam do céu, enquanto deveria desviar de objetos intragáveis. Tudo isso enquanto saltavam de um lado para o outro.
Entretanto, não pára por aí, e a Kinship já começa a estudar também a aplicação da tecnologia em conjunto com a realidade virtual, em uma demo que também estava disponível na BGS. Apesar disso, o foco continua sendo nas aplicações iniciais e no público infantil – são três pessoas trabalhando no Wipace, dentro de uma companhia de 12 funcionários. Por isso, concentrar-se em determinados projetos é necessário.
Entretanto, não é como se a Kinship não olhasse para o futuro. Ao ser perguntado justamente sobre Pokémon Go e uma possível parceria com grandes empresas, os olhos de Schmeling chegam a brilhar. “Um super projeto [desse tipo] seria um sonho para a gente. Mas queremos também que novos desenvolvedores tenham ideias inéditas para usarem o Wipace em seus jogos.” Um kit de desenvolvimento já está disponível a todos os interessados e, de acordo com o executivo, “o importante é ter novidade no mercado. Não dá para segurar tudo, e podemos fazer muito juntos.”
Teste de campo
Além das crianças, o Wipace teve como público-alvo, na BGS, os próprios jornalistas. A Kinship criou uma competição entre os repórteres para ver quem andaria mais durante a feira – e quem acompanhou qualquer cobertura do evento sabe que a competição seria ferrenha.
No sábado, 3 de setembro, um dos dias mais lotados e intensos do evento, vesti o Wipace em meu calçado logo no começo do dia, antes de começar a maratona. O dispositivo fica preso no cadarço por uma presilha, e apesar de parecer que vai cair a qualquer momento, permanece firme, algo que é uma necessidade quando se fala em uso por crianças. O movimento natural não seria capaz de fazê-lo soltar, por exemplo, e o aparelho é leve o bastante para que o usuário esqueça que o está usando.
Ao final do dia, ele foi devolvido, e a ação é semelhante à que seria realizada pelo usuário. Basta conectar o Wipace ao computador para que os dados coletados durante o dia sejam transferidos para o Wipace World e transformados em recompensas nos jogos. Cada minigame lida com isso de forma diferente, entregando desde itens até experiência, e os usos, aqui, ficam à cargo da criatividade de cada desenvolvedor.
O vencedor da competição foi Gustavo Brito, do site Recanto do Dragão, que redefiniu o conceito de maratona com 13 quilômetros percorridos e 16.323 passos. Um total bem acima da média geral dos jornalistas, que foi de 7,3 km por dia. 35 repórteres testaram o Wipace ao longo do evento.
O ranking de jornalistas que usaram o Wipace durante a BGS
Na minha cabeça, nem havia andado tanto assim no sábado, na comparação com os outros dias de BGS, e jamais chegaria perto dos resultados exibidos ao vivo no estante da Kinship. Mas ao final do teste, veio a surpresa. Foram 8,65 km “rodados” durante todo o dia, um total de 10.815 passos e 917 calorias queimadas. 14ª colocação, algo que, para alguém que nem curte andar, é algo bem impressionante.
O percurso, entretanto, gerou um total de zero ovos chocados. Devido às falhas de sinal no São Paulo Expo, dos oito quilômetros que percorri, menos de dois foram computados pelo game da Niantic. Comentei isso com Schmeling, que destacou, mais uma vez, o aspecto offline do Wipace como seu diferencial, e não uma limitação. “A individualidade do aparelho é um plus. Com ele, estamos gamificando a prática de exercícios e os cuidados com a saúde”.
Próximos passos
O Wipace deve ser lançado no primeiro trimestre do ano que vem, por preço ainda não revelado. Apesar de ser um projeto brasileiro, o dispositivo é fabricado na China, onde, inclusive, já estão sendo realizados os primeiros testes com o público. Uma vez concluídos, o aparelho vem para o Brasil para uma última etapa de ajustes antes do lançamento, por preço ainda desconhecido. O kit inicial acompanhará o próprio sensor e as presilhas para prendê-lo ao calçado, enquanto o app dedicado é baixado gratuitamente nas lojas online do Android ou iOS, sistemas operacionais que serão suportados inicialmente.
A Kinship também já imagina outras áreas de atuação. Schmeling conta que a BGS foi extremamente importante não apenas para apresentar o produto, mas também realizar contatos. E potenciais parcerias surgiram em setores como o de educação, institucional e, principalmente, saúde e reabilitação.
Na visão de Schmeling, daqui para a frente, os voos apenas serão maiores. “Nós não temos limites. Nosso foco sempre será unir entretenimento e movimento”, aponta. Alimentar sapinhos ou colocar jornalistas para andarem mais do que estão acostumados, então, parece ser apenas uma amostra do potencial da plataforma, e também do que está por vir. Aqui, estamos falando de uma possível mudança efetiva, e física, na vida das pessoas. Uma possibilidade que merece ser perseguida com afinco.