Ao longo desses 20 anos de Pokémon, a série sempre foi tratada como algo para crianças. A culpa, talvez, seja do desenho animado e da superexposição de Pikachu e suas bochechas rosadas ou mesmo da própria Nintendo, que segue vendendo a franquia como um jogo com monstros fofinhos. É o tipo de coisa que todo fã detesta, mas que já faz parte do imaginário popular — e não apenas dos jogadores. Porém, existem alguns subtextos que não são nada infantis.

Muito além dos ratinhos amarelos e das tartarugas de óculos escuros, a série traz também uma tonelada de referências religiosas, mitológicas e folclóricas escondidas entre um design aparentemente sem significado e um nome confuso. E algumas delas são bastante sombrias, principalmente quando percebemos como a morte é um elemento presente na origem de muitos desses Pokémon.

Pokémon

O evento de Halloween de Pokémon GO, iniciado na última semana, deixou isso bem claro. Além da óbvia presença do trio fantasma da primeira geração, a Niantic trouxe outros monstrinhos que nada têm a ver com o Dia das Bruxas, mas cujas histórias nos lembram o quanto a série é abrangente na hora de referenciar crenças antigas.

Assim, para estrear esta coluna dedicada à relação entre videogames e religiões e cultos antigos, desenterramos alguns dos mitos que influenciaram os Pokémon que melhor se encaixam neste hiato entre Halloween, Dia de Los Muertos e Finados.

Lendas antigas

Entender as referências presentes por trás dos Pokémon do tipo Fantasma é um enorme mergulho em mitos e lendas relacionados à morte — o que faz todo sentido com a ideia por trás desses monstrinhos. Alguns são bem óbvio, como a figura clássica da alma penada presente no Haunter ou mesmo do Ceifador em Duskull e suas evoluções. Porém, outros são um pouco mais refinados.

O próprio Gastly é um desses casos. A ideia de um espírito formado por gás é uma alusão direta ao chamado fogo-fátuo, um efeito formado pela combustão espontânea do metano liberado durante a decomposição de seres vivos. É algo bastante comum em pântanos e brejos e que, durante muito tempo, serviu para alimentar algumas lendas em todo o mundo — incluindo o nosso boitatá —, sendo que muitas afirmavam que o fogo visto era o próprio espírito dos mortos vagando pelo nosso mundo. Porém, no caso do Gastly, podemos ir pouco além dessa explicação mais óbvia.

Dentro do folclore japonês, esse fogo-fátuo assume diversas formas, incluindo a chamada Sōgen-bi, um espírito formado por uma cabeça decapitada envolta nessas chamas características. Na lenda, um monge roubou dinheiro e óleo dados aos deuses como oferenda no templo de Mibu-dera e, como punição, foi transformado em um yokai e condenado a vagar pelos campos. E isso condiz perfeitamente com o design criado para o Pokémon, ainda que os jogos não façam referência nenhuma ao monge e sua história.

Já sua evolução final, Gengar, é baseado em uma história um pouco mais conhecida. Como o próprio nome já entrega — embora pouca gente tenha feito a ligação imediata —, esse fantasma está ligado ao mito germânico do doppelgänger, o espírito que se transforma em uma duplicata de suas vítimas. Assim, o nome Gengar seria uma derivação do termo alemão gänger, ou seja, algo vagante. E, várias das descrições do Pokémon dentro dos jogos sugerem essa relação, principalmente quando dizem que o monstro se esconde nas sombras de suas vítimas e lhes rouba o calor.

Quadro "How They Met Themselves", de Dante Gabriel Rossetti, mostra casal se encontrando com seus duplos

Quadro “How They Met Themselves”, de Dante Gabriel Rossetti, mostra casal se encontrando com seus duplos

Dentro da tradição germânica, o doppelgänger é um sinal de mau agouro. Ainda que ele em si não seja uma entidade maligna, como muitos dos demônios presentes na Idade Média, encontrar o seu duplo podia significar desde doença até presságio de morte. Além disso, o conceito é algo presente em outras culturas, estando presente até mesmo na mitologia egípcia como uma espécie de espírito tangível.

Ainda assim, povos da Bretanha e do norte da França acreditavam que o doppelgänger poderia ser uma personificação da própria morte, ou seja, encontrar um duplo seu era uma confirmação de que seus dias estavam contados. E, voltando à descrição do Pokémon, a ideia de que ele rouba o calor de suas vítimas pode ser uma alegoria para falar sobre esse sugar a vida.

O devorador de sonhos

Para nós, brasileiros, a figura do Drowzee nunca fez muito sentido. O que diabos uma anta feita de dois-amores tinha a ver com sono? Sua evolução, Hypno, até faz bastante sentido, mas a forma inicial sempre foi esse mistério.

A referência por trás desse gordinho bicolor é o yokai Baku, uma criatura do folclore oriental que devorava sonhos e pesadelos das pessoas durante as noites. E isso era considerado algo bom, já que a tradição acreditava que isso ajudava a prevenir doenças e afastar o mal. Não por acaso, existiam amuletos e orações para atrair esse espírito da noite — e algumas famílias ainda usam pequenas talismãs com a figura do animal místico.

Pokémon folclore

Por outro lado, outra crença dizia que esse yokai nem sempre era tão bonzinho assim, já que poderia também devorar a vontade de viver da pessoa. Sem esperança, desejos e vontades, a vítima do Baku poderia se transformar em uma casca vazia.

Essa ligação entre o Baku e Drowzee foi abordada diversas vezes na série. Nos jogos, a Pokédex se refere à sua dieta várias vezes e ele mesmo é capaz de aprender o golpe Dream Eater. Além disso, o próprio desenho revela isso, quando descreve que ele é um “descendente da anta sonolenta”. Na dublagem nacional, porém, ele acabou sendo erroneamente traduzido como “tamanduá”.

Slém disso, a lenda de Baku serviu para inspirar outros Pokémon. Em Black e White, a Nintendo introduziu Muna e Musharna, que também trazem um visual semelhante ao yokai. A diferença é que, nesses casos, eles trazem um visual vem mais amistoso e sua história trata mais de “limpar os pensamentos” do que devorar sonhos.

O espírito humano

De todos os mais de 700 Pokémon, nenhum deles traz uma história mais grotesca do que o quase desconhecido Yamask. De acordo com a descrição presente no próprio jogo, ele é um espírito humano que se transformou em Pokémon e a máscara que carrega nada mais é do que uma representação de seu rosto quando era vivo — em alguns casos, essa face aparece chorando.

O Ba egípcio seria próximo da alma cristã. Na imagem, é representado pela ave com cabeça humana

O Ba egípcio seria algo próximo da alma cristã. Na imagem, é representado pela ave com cabeça humana

As referências à morte aqui são claras. O nome original desse Pokémon é Desumasu, uma brincadeira com a expressão “máscara da morte”, um objeto usado em vários ritos funerários em culturas mais antigas. Já o nome em inglês pode ser tanto uma abreviação da palavra “yami” (trevas) quanto uma alusão a Yama, o senhor dos mortos na mitologia Hindu e Budista.

Ainda que sua forma seja um pouco difícil de identificar, o fato de ele ser descrito como um Pokémon de civilizações antigas e evoluir para um sarcófago, fica clara a sua relação com a mitologia egípcia. Assim, é possível relacioná-lo com o chamado Ba, que é basicamente o que as religiões ocidentais tratam como alma. Os antigos egípcios acreditavam que a personalidade do indivíduo e tudo aquilo que o tornava único abandonava o corpo material da pessoa após sua morte e passaria a ter “vida própria”. Em muitos hieróglifos, ilustrações e esculturas, o Ba era representado como um pássaro com cabeça humana ou mesmo um tipo de garça.

Já a máscara mortuária que Yamask carrega é algo que sempre foi muito comum em várias culturas, incluindo a egípcia, que acreditava que a máscara serviria tanto para proteger o corpo mumificado quanto para guiar o Ba pelo mundo dos mortos. Assim, ver o Pokémon carregando a própria Face passa a fazer muito mais sentido.

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