O público gamer ouve falar bastante sobre narrativa nos tempos recentes. Não é como se a história não fosse um componente indispensável nos games desde os primórdios – títulos clássicos como Chrono Trigger, Final Fantasy VI, Full Throttle e basicamente qualquer adventure da LucasArts sempre contaram fortemente com esse aspecto. Mas parece que, nos tempos de hoje, essa característica ganhou uma importância maior.
Seja, talvez, pela evolução dos gráficos e poder de processamento ou pelo amadurecimento da indústria em si, boa parte dos novos clássicos dos games o são por conta, principalmente, da narrativa. Red Dead Redemption, Portal 2, The Last of Us são exemplos, enquanto empresas como a Telltale, Naughty Dog e Dontnod são sempre citadas como grandes expoentes dessa pegada chamada de cinematográfica, com grandes histórias sendo contadas pelos controles.
Enquanto isso, no meio que originou tudo isso, grandes títulos não têm necessariamente marcado muitos pontos nesse quesito. É claro, grandes histórias sempre existirão nos cinemas – assim como sempre rolaram nos games –, mas enquanto os grandes AAA tentam se diferenciar pelo enredo, os blockbusters das telonas não vem tendo muito sucesso. Basta olhar a bagunça de roteiros como “Batman V Superman: A Origem da Justiça” ou decepções recentes como “Alien: Covenant” para notar que o primor narrativo não vem sendo exatamente um destaque.
Uma produção recente, entretanto, foge desse aspecto e traz uma narrativa tão instigante que fez com que eu desejasse estar jogando um game, para poder participar e alterar os seus rumos. Estou falando do já bastante premiado e comentado “O Povo Contra O.J. Simpson – American Crime Story”, que relata um dos casos judiciais mais controversos dos anos 1990, considerado por muitos como “o julgamento do século”.
Um pouco de contexto para quem era novo demais para se lembrar ou não sabe o que aconteceu: em 13 de junho de 1994, os corpos de Nicole Brown e Ronald Goldman são encontrados em um condomínio em uma área nobre de Los Angeles. Ela era ex-mulher de O.J. Simpson, um dos mais proeminentes jogadores de futebol americano dos anos 1980. E as provas, rapidamente, mostram que o ex-atleta pode ser o responsável pelo assassinato.
O crime aconteceu no coração do mundo dos ricos e famosos de Los Angeles e toda a questão, rapidamente, se tornou um circo midiático. Foram diversas as lendas surgidas a partir de toda a situação. O advogado de defesa Johnny Cochran, por exemplo, se tornou ícone da maneira com a qual juristas podem manipular o processo em prol de seus clientes, enquanto questões como racismo, violência doméstica e abuso policial se misturavam à busca por justiça para os mortos.
Vale a pena lembrar que tudo isso aconteceu enquanto a população americana, mas, principalmente, de Los Angeles, ainda tinha muito fresca a memória das revoltas de abril de 1992, quando milhares de pessoas foram às ruas em protestos violentos pela absolvição de oficiais que foram filmados praticando violência contra o motorista negro Rodney King. Foi quase uma semana de distúrbios, com mais de 50 mortos e US$ 1 bilhão de prejuízos em meio a saques, incêndios e assaltos.
O “julgamento do século”, agora, aparece em uma série de dez capítulos e com um dos roteiros mais bem escritos dos últimos tempos. E durante toda a produção, minha vontade era de ter um controle nas mãos. Diante de erros da promotoria ou acertos que levavam a defesa quase ao desespero, eu queria participar da ação, manipular o andamento do questionamento a uma testemunha ou apresentar provas da inocência ou culpa de O.J.
Mas, acima de tudo, a grande genialidade de “O Povo Contra O.J. Simpson: American Crime Story” é a falta de juízos de valor. A série brinca com o espectador e o leva de um lado para o outro da mesma forma que a opinião pública se balançou durante os longos meses desse julgamento. Ao final, cada um sai com uma opinião diferente, da mesma forma que os personagens, membros do juri e o público da época.
Eu sou desses que acredita que histórias baseadas em fatos reais não têm spoilers, mas minha primeira dica vai contra isso. Caso você não se lembre do julgamento de O.J. ou não tenha idade para isso, assista sem procurar o resultado na internet. Você vai ter toda uma experiência nova, por mais que a série, em si, não seja focada completamente no veredito.
Caso já saiba tudo o que rolou, assista ao seriado com um smartphone ou tablet ao lado e procure informações adicionais sobre o que acontece na tela. Você vai perceber que a realidade pode ser bem mais escandalosa do que o que está na tela. Depois, jogue um pouco de Phoenix Wright e chateie-se com o fato de que nem mesmo a mais viajada das ficções se aproxima do que aconteceu ao longo daquele ano de 1994.
“O Povo Contra O.J. Simpson: American Crime Story” é uma série do canal americano FX, em dez capítulos. No elenco estão Cuba Gooding Jr. (O.J. Simpson), Courtney B; Vance (Johnnie Cochran), Sarah Paulson (Marcia Clark), John Travolta (Robert Shapiro) e David Schwimmer (Robert Kardashian – sim, o pai da Kim).