Sempre que volto do BIG Festival, acabo adotando um título que me cativa profundamente e nem sempre é o mais premiado, mas sim o mais criativo ou impressionante. Neste ano, o meu prêmio ficará com Beholder, jogo Point and Click da russa Warm Lamp Studios, jovem empresa que começou na Sibéria em 2015, e já em 2016, apresentou este título ao público, e pela primeira vez, tão longe de casa em um festival de jogos independentes. Claro que a beleza deste título não está só nos gráficos e ambientações incríveis, mas também no contexto fictício que representa uma realidade política do passado e presente, além de facetas da humanidade.
O jogador é Carl Stein, zelador de uma pensão de quartos módicos dentro de um bairro industrial, que se muda para certa cidade convocado pelo governo para substituir o antigo zelador, que foi espancado e preso diante de você, sua esposa Ana e seus filhos, Patrick e Martha. Logo após a cena, chega um representante do governo que explica toda a situação: você será o Grande Irmão do prédio e reportará toda a vida íntima de seus inquilinos para fichá-los e descobrir se não existem subversivos ou conspiradores dentre os moradores, tudo para manter a ordem e paz dentro da ditadura em que o jogo é ambientado.
Você mora com seus familiares no porão e precisa manter, além da vigilância, o prédio funcionando. O personagem recebe ainda uma linha direta com o Ministro e uma sala cheia de monitores, para vigiar os inquilinos dia e noite, claro, sem esquecer das espiadelas pelos buracos da fechadura.
O jogo tem duas dificuldades, iniciante e profissional, mas já aviso que é um título muito difícil mesmo depois de ter pegado o jeito. Como mencionado, Beholder é um misto de gerenciamento com interação, e como é ambientado no universo literário da obra “1984”, de George Orwell, momentos felizes serão raros e a realidade dentro de um país centralizador que emite várias regras absurdas diariamente coloca até os censuradores em maus lençóis.
Você vai ter que lidar com decisões cruéis constantemente, por isso, é imprescindível ter uma mente aberta e realista devido ao avançado sistema de “causa e consequência” do jogo, onde muitas vezes sua sobrevivência estará em risco e escolhas entre sua vida e o plano inicial de obediência serão constantes. Isso sem falar da falta de dinheiro e dos ilegais que estão aí tanto pra ajudar quanto prejudicar. Não é a toa que esteve na categoria de jogo educativo no BIG 2017, pelo visto, da escola da vida.
Aprofundando mais no teor político do jogo, a “profissão” de Carl é habitual em toda ditadura, um vigia e delator do comportamento do povo para que o grande líder, exemplo de ser humano para a nação, mantenha-se no poder. Para isso, os discursos populistas de cunho patriótico e militarista estão sempre em destaque, e é aí que a mecânica de jogo brilha magnificamente: ela permite que você tenha três posturas diferentes diante da situação, que podem ser classificada como Apoiador do Governo – obedeça à tudo e priorize seu dever à sua família e dignidade pessoal-, ser um Traidor – ajudando os rebeldes a derrubarem o regime – ou ainda um Agente Duplo – que se divide entre ganhar dos dois lados e tanto faz proteger a missão ou a família.
Percebe? Você pode ser um pilantra, um revolucionário, um cachorro do governo e sua família pode ser tanto priorizada quanto esquecida para morrer. Essa é a parte pesada do jogo. Não é difícil o jogador se pegar indo flagrar a moradora traindo o marido em sua ausência para ter um material para barganha enquanto o carro do IML vem buscar o corpo de sua esposa, que se suicidou com os anti-depressivos pirateados que comprou do mercador ilegal.
Tudo é bem simples na jogabilidade. O jogador clica onde quer que Carl vá ou nas pessoas com quem deseja interagir. Para quem está começando, o jogo ensina como se deve agir: atender ligação do ministério, cumprir a missão e reportar o que lhe foi solicitado, dentro das regras, se possível, e não se meter nas falcatruas que o governo faz. Caso você vá longe demais, pode acabar preso ou morto.
Existe um relógio que pode ser acelerado e a passagem de dia pra noite é importante para perceber como é a rotina dos personagens, para invadir seus apartamentos e revirar tudo, instalar câmeras e até roubar pertences para chantageá-los caso precise de grana. Todos os comportamentos possíveis são bem fáceis de aprender e ficam orgânicos em pouco tempo, só evite achar que já dominou o jogo e ser flagrado dentro do apartamento dos outros porque o morador mudou de rotina imprevisivelmente. A melhor tática é sempre estar afastando a tela para visualizar o prédio todo antes de xeretar.
Claro que o jogo não se limita somente a falar com pessoas e dedurar, lembrando que é um título de gerenciamento de pensão. Além de instalar câmeras, você precisa comprar doces para os filhos, utensílios domésticos e gastos com alimentação para a família, produtos ilegais como maçãs e patos de borracha e suprir a demanda dos pedidos dos moradores, que têm níveis de boa impressão que sobem quando vocês os atende e descem quando são decepcionados, seja porque te encontraram na casa deles ou porque negou-se a matar uma pessoa que incomodava.
Existe, além do dinheiro, o contador de moral, que é tão necessário quanto a grana, mas serve para interações pessoais. Às vezes sua vida é salva porque você tem 500 pontos para pagar de machão e o valentão se amedronta. Claro que isso não evita que ameacem sua família, mas basta ter como barganhar ou denunciar que os problemas se vão junto com o camburão da polícia.
Existem alguns defeitinhos bem irritantes dentro do jogo, que vão desde o mal posicionamento de alguns personagens, que ficam atrapalhando impedindo o acesso a uma porta, ou NPCs escondidos atrás do cenário, com os quais se perde um tempo valioso. Algumas animações perdem a sincronia e fica tudo muito esquisito, às vezes, sem falar que Beholder é muito curto. Como não anunciaram nada sobre expansão, vamos ficar só 30 dias em setembro de 1984 neste título.
Só consegui fazer o final “pior possível”, que é salvando a própria pele e entregando todos os conspiradores que apareciam em detrimento da família de Carl, mas quem sabe este jogo possua um final feliz? Eu duvido muito…