Foi com bastante tristeza que os fãs de filmes de terror e amantes do cinema receberam, neste domingo (16), a notícia do falecimento de George Romero. O diretor, chamado carinhosamente de “o pai dos filmes de zumbi”, faleceu aos 77 anos de idade, vítima de um câncer de pulmão.
É fácil elencar os feitos que o levaram a ganhar esse título. “A Noite dos Mortos Vivos”, de 1968, deu origem a um gênero que, até hoje, é amado por muitos e explorado com espantoso sucesso. Os mortos se tornaram, novamente, vivos pela ação de Romero, que não só transformou esse retorno em uma festa de horror e corpos despedaçados, mas também adicionou um caráter político a tudo isso.
Os filmes de Romero, pelo menos em sua primeira safra, eram verdadeiras críticas à sociedade, deixando os espectadores assustados não apenas pelo banho de sangue, mas também pelas pancadas diretas em seu estilo de vida. Na Trilogia dos Mortos, vemos não apenas o domínio do mundo pelos zumbis, mas também a falência da sociedade como um todo, algo que, espantosamente, vem acontecendo em nosso mundo mesmo sem a influência dos desmortos.
Elencar as grandes obras do diretor – e também os trabalhos duvidosos – é tarefa fácil. Citar sua influência na cultura pop, também – “The Walking Dead” e Resident Evil são, até hoje, filhos riquíssimos do pai Romero. Sua influência na série da Capcom, entretanto, vai bem além de, meramente, inspiração.
https://www.youtube.com/watch?v=5vSlRrL689Y
Em 1997, ele dirigiu dois comerciais para Resident Evil 2, que seria lançado no ano seguinte, e entregou aquilo que seria a melhor adaptação da série em uma mídia audiovisual. Não dá para falar em cinemas, aqui, pois estamos citando propagandas de menos de um minuto. Não foi preciso muito tempo, entretanto, para que Romero transferisse para as telas o clima de terror e caos que os games tentavam passar.
Os vídeos traziam, simultaneamente, os traços clássicos do cinema de Romero e também dessa primeira leva de Resident Evil. Estamos falando de cortes rápidos de câmera, zumbis lerdos e uma ameaça constante. Acima de tudo, temos o clima de filme B que permeia toda a produção, uma relíquia de uma era em que longas de zumbi não eram nada tecnológicos e cheios de ação, enquanto a própria franquia de jogos seguia adiante com games que, até hoje, representam a definição clássica de Survival Horror – eles eram viscerais, sombrios e travados, mas não de uma forma ruim.
https://www.youtube.com/watch?v=FRtIO5eRjAg
Não foi coincidência. Romero tinha o desejo de criar um comercial que se comportasse como um filme, e para tal, a Capcom lhe deu carta branca para produzir os vídeos como se fossem longas de cinema. O resultado está preservado em imagens de baixa qualidade no YouTube e mostram o gigantesco trabalho envolvido, algo que não era comum na indústria de jogos eletrônicos no final dos anos 1990. Mesmo no Japão, esse tipo de investimento era raro, ainda mais quando se contava com a participação de um diretor e equipe ocidentais.
No papel de Leon Kennedy temos Brad Renfro, ator que, na época, já chamava a atenção após seus papeis em “O Cliente” e “Sleepers – A Vingança Adormecida”. Já Claire Redfield foi interpretada por Adrienne Frantz, uma atriz e cantora que vinha despontando na série chamada “Sunset Beach”. Eles contracenavam com dezenas de extras vestidos como zumbis, em cenas gravadas em uma prisão desativada nos EUA.
Sombras do passado
Mal sabíamos, na época, que todo o trabalho era, na verdade, uma espécie de “aquecimento” para um filme de Resident Evil, propriamente dito. Logo após o lançamento do primeiro game da série, em 1996, a Capcom vendeu os direitos de produção da série para a alemã Constantin Films, e no ano seguinte, George Romero seria contratado como diretor e roteirista do longa. Uma escolha óbvia, que à primeira vista, agradaria a gregos e troianos. Uma pena que a realidade não foi tão carinhosa assim.
O filme de Resident Evil marcaria o retorno do diretor ao gênero dos zumbis após mais de dez anos sem trabalhar com eles. O orçamento era alto, US$ 40 milhões, e entre os atores cotados estavam Bruce Campbell (“Evil Dead”), para viver Chris Redfield, e James Woods (“Videodrome: A Síndrome do Vídeo”) interpretando Albert Wesker. O roteiro, entretanto, não agradou à Constantin.
A produtora desejava atrair adolescentes para as salas, enquanto o argumento de Romero era sangrento e violento, o que levaria a uma classificação indicativa mais alta. Além disso, na história, teríamos a Umbrella trabalhando ao lado do governo na produção de armas biológicas, uma história com críticas políticas que também não encaixavam com a aspiração da Constantin por algo mais simples e facilmente digerível. A empresa queria um filme de ação, enquanto Romero estava pensando em política e sociedade.
A bem da verdade, é importante citar que as semelhanças da trama criada pelo diretor e a franquia de jogos paravam nesse argumento geral. Na história, Chris não seria membro dos S.T.A.R.S., mas sim um índio moicano, que alucina com águias e teria um relacionamento afetivo com Jill. Em um dos momentos mais idiotas do filme, Brad seria infectado após se cortar com o dente de um tubarão contaminado com o vírus.
Reconhecido na indústria e com uma grande bagagem de veterano, Romero se recusou a alterar seu roteiro e acabou demitido. Anos depois, Romero falaria pela primeira e única vez sobre os trabalhos com Resident Evil. Segundo ele, seu argumento chegou a ser aprovado pela Capcom, mas sucumbiu sob a influência de produtores que, segundo ele, nunca haviam jogado um game da série e não tinham a menor ideia do que estavam fazendo com a franquia.
O que tivemos, então, foi a hexalogia liderada por Paul Anderson, uma série de filmes com tantos furos de roteiro quanto cenas de ação, mas que entregou exatamente aquilo que a Constantin Films queria. A franquia se tornou um dos maiores sucessos de bilheteria de sua distribuidora, a Sony Pictures, rivalizando até mesmo com nomes como o Homem-Aranha.
Anos depois de todo o entrevero, o roteiro do filme de Resident Evil que seria produzido por Romero vazou na internet, coincidentemente ou não, pouco antes do lançamento do primeiro longa de Anderson. A perda, aqui, foi sentida mais pela influência de um grande diretor sobre a franquia consagrada, já que a história, em termos de fidelidade, era tão distante dos games quanto a que se tornou realidade. Nunca saberemos, mas a noção é que teríamos, no final, um bom filme de zumbis, mas também uma péssima adaptação dos games.
É exatamente o que não pode ser dito dos comerciais criados por ele em 1997, eles sim, representando um grande trabalho. Exibidos somente no Japão nos meses que antecederam o lançamento de Resident Evil 2, no começo de 1998, os reclames são uma triste lembrança daquilo que poderia ter sido, mas, infelizmente, não foi.