O ano de 2017 foi maravilhoso para a indústria de games independentes mundial, enquanto a brasileira ganhou muito destaque em eventos grandiosos nacionais e internacionais. Mas quando se fala de jogos que abordem dramas psicológicos ou suspense, é o nosso país que está no topo e este jogo que lhes trago é um desses destaques. Caso você nunca tenha ouvido falar, não se preocupe, é uma tradição o público só conhecer nossas obras-primas depois de uma aceitação internacional.
Lenin – The Lion é um título criado por João Bueno, também conhecido como Lornyon, um estudante de história da arte que se aventurou pelo mundo do RPG Maker e, com a ajuda de musicistas, um ilustrador e um testador, trouxe à vida a história do leão albino chamado Lenin que sofre do mal do século: a depressão. Antes de experimentarem o jogo, já deixo avisado que o teor dele é bem pesado e realista, por isso, recomendo que os mais sensíveis no campo da empatia saibam separar a ficção do real, mesmo que a trama lembre alguém que você conhece ou a si mesmo. Seguro disso, vamos nos aprofundar nesse grande jogo original.
Lenin tem uma vida mediana como qualquer pessoa, e dada sua sensibilidade, acabou manifestando depressão por vários motivos, como um lar desestimulante, vizinhos arrogantes e preconceito por ter nascido albino, fonte de todo bullying que sofre na escola. Assim, ele só existe, mantém sua rotina e acaba tendo lapsos de felicidade de pessoas que não são do seu convívio familiar. Certo dia, tudo muda após ser atacado por seus agressores de sempre e acordar em um lugar desconhecido, entre animais e plantas com nomes peculiares. Dada a situação, o personagem decide fazer o que sempre fez, tentar ajudar para ser aceito socialmente.
A primeira diferença deste RPG em relação aos outros é que não existem combates. Pelo menos, não as tradicionais, em turnos e com o objetivo de derrotar inimigos, mas sim, batalhas de decisões, algumas sutis e outras bem explícitas. Lenin – The Lion traz um combate de moral e bom senso que vai determinar a vitória ou a tristeza.
A narrativa do jogo deixa bem claro para os mais atentos que Lenin quer algo das pessoas que interage e está em uma jornada-terapia para superar um a um os fatores que o deixaram depressivo. É nesse sentido que a genialidade do autor, que não é psicólogo, se destaca.
Seja na vila de Lenin, na escola ou nesse mundo roxo de tristeza, o jogo te coloca na visão de um depressivo e as opções de reação são adequadas para uma pessoa nesta condição. Mesmo que exista a possibilidade de ser pilantra, será que as consequências compensam? Magoar os outros para ser mais feliz vale a pena? Essas pessoas felizes com quase nada são malucas ou as que ostentam seus pertences de luxo são plenamente felizes? Vale a pena insistir em ser bondoso ou a violência pode resolver a questão?
Lembrando que o fato de o protagonista ser “o rei da floresta” é uma valiosa analogia à questão discutida no jogo e todos os fatores acerca do personagem devem ser analisados para a satisfação pessoal do jogador nesta jornada.
Os comandos são simples, assim como o Menu e o caminho a seguir na história, impedindo que o jogador fique perdido sem saber o próximo passo. Além de encontrar pessoas com sintomas de depressão pelo caminho, também vamos interagir com pessoas resolutas, cujos conselhos e exemplos serão valiosos para a missão a seguir. Assim, os puzzles devem ser compreendidos, pois envolvem os sentimentos dos personagens e mesmo uma planta carnívora sofre se for mal entendida. Falando nisso, se prepare para encontrar outros personagens com distúrbios psicológicos como síndrome do pânico, fobias e baixa autoestima, mas sendo “tratáveis” com um pouco de apoio.
Os gráficos são muito bonitos, apesar de simples, e o mesmo vale para o design dos personagens e as ilustrações, que são carismáticas. As cenas de ação são dinâmicas e a música é muito boa, dando o clima certo da tristeza nos momentos certos e de felicidade onde mais se precisa. Se fosse pra achar um defeito, seria o fato de as luzes da vila estarem acesas de dia, mas é um detalhe.
Lenin – The Lion é outra grata surpresa de 2017 e fico feliz que ele tenha alcançado a meta no Catarse para que possamos jogar esse jogaço já neste ano, mostrando todo o potencial que o Brasil tem para fazer jogos profundos e maravilhosos, com o apoio das pessoas que valorizam o esforço honesto de nossos desenvolvedores de games e seus projetos cativantes. Tudo isso prova que os jogos são mais que diversão, são ferramentas de lazer e cultura, contra o preconceito e a favor da informação.
Foi justamente sobre isso que batemos um papo com o desenvolvedor sobre o game:
New Game Plus: De onde saiu a ideia de fazer um jogo com uma temática tão pesada como as doenças mentais e o comportamento?
João Bueno: Na verdade, não imaginei o jogo a partir de uma perspectiva patológica, mas sim, de uma posição mais sociológica. Não é incomum se deparar vez ou outra com o termo “mal do século” e encontrar pesquisas sobre o número de pessoas afetadas pela depressão e como elas são vistas por quem está fora do quadro depressivo. Outra questão é imaginar que existe uma fórmula para identificar a doença em alguém.
Trabalhar isso em um jogo foi uma ideia que surgiu para que eu consiga mostrar mais de um ponto de vista. Quem sabe, mesmo sendo pretensioso ao falar, eu não consiga fazer alguém se sentir mais empático com um amigo que pode estar passando por isso ou mesmo dar um apoio para alguém que esteja em um quadro depressivo.
Enfim, respondendo à pergunta: a ideia saiu de vários lugares e por vários motivos, e posso dizer que a onda de jogos indies recentes me ajudou bastante a poder falar sobre isso em um videogame.
NGP: Você embarcou nesta jornada sozinho e já conseguiu a verba via Catarse, além de ter os profissionais necessários para realizar o projeto. O jogo será grande ou só uma história narrada em formato RPG?
JB: O jogo não é linear, também não é um novel. É um game completo, com puzzles, escolhas a serem feitas, simulações de batalha (não como JRPG’s), etc. Tudo a que um título completo (e independente) tem direito.
NGP: Outros jogos independentes como Beholder, Elude e Depression Quest também tratam sobre comportamento e depressão, algo que se tornou uma tendência na indústria indie e que extrapola para o mercado milionário. Você também a seguiu?
JB: Não, e posso afirmar isso por algumas questões. Primeiro porque não conheço nenhum dos jogos citados e também não sou um típico gamer da indústria AAA. Eu sou casual em tudo – exceto criando, eu acho. O que me influenciou são as propostas experimentais que acontecem no campo das artes em geral – incluindo a literatura e o cinema, e sim, os próprios video games. Mas não consigo ver uma influência tão específica quanto de outras produções que trabalhem com a depressão.
NGP: Algum órgão ou profissional da área te contatou após a divulgação do projeto? Existe alguma supervisão de psicologia te ajudando?
JB: Eu tive alguns contatos vindo de organizações que ajudam pessoas com sintomas da depressão e semelhantes, mas todos – os dois (risos) – foram para participar de eventos sobre o tema. Eu preferi não fazer parte por não saber ao certo qual seria meu papel dentro de uma proposta outra que não o video game. Além disso, estava ainda dando meus primeiros passos com o game e precisava – e ainda preciso – me concentrar.
Sobre psicólogos enquanto pessoas, não instituições, tive contato, mas bem singelo. Foi mais uma conversa num banco da faculdade do que qualquer outra coisa. Tenho pesquisado bastante e sempre conversado com diversas pessoas, inclusive quem já foi diagnosticado com depressão.
Minha premissa é ter uma bagagem para poder falar do tema de forma autônoma, poética e ao mesmo tempo verossímil. Eu uso bastante o gatilho emocional da tristeza no jogo, que é o maior padrão na leitura do imaginário coletivo sobre depressão. Mas é importante deixar claro que nem todo quadro depressivo apresenta tristeza, reclusão ou apatia. Optei por esse viés.
NGP: Alguém pede que você incorpore um sistema tradicional de combate além do de simulação por imagens com opções?
NGP: Não, nunca tive essa “solicitação”. Já questionaram se haveria algo assim bem no início da produção, mas nunca como um pedido ou algo assim. Creio que não haja a necessidade e quem joga a demo percebe isso.
NGP: Existirão múltiplos finais, dependendo de como o jogador se comporta no jogo?
JB: Pretendo que o jogo tenha mais de um final de acordo com as escolhas do jogador e como ele lida com cada sintoma de Lenin. Como já havia dito em outras entrevistas, a ideia é que cada encerramento de uma área tenha um peso no desfecho total do jogo, criando, pelo menos, três finais totalmente diferentes, um para cada sintoma compreendido ou “tratado”.
Você pode jogar a demo enquanto o produto completo não chega. Ela está disponível somente para Windows por enquanto, em português ou inglês.