Uma relação que nunca foi harmoniosa é a do conteúdo dos video games e a política americana, principalmente no campo espinhoso da indústria dos jogos e os temas mais adultos e a violência a ela agregada, por vezes. Não é recente, também, que propostas são realizadas para suspender esse tipo de teor. Por trás das jogatinas ao vivo e saves na nuvem, uma queda de braço é travada há mais de 20 anos entre o governo e empresas, onde cada lado aponta seu argumento sob vieses nem sempre isentos.
No final dos anos 90, as coisas começaram a esquentar bastante no ramo jurídico e os ecos políticos – estrategicamente – reverberam até hoje, se alterando o discurso, porém mantendo a intenção. Por mais que atualmente o assunto esteja menos atrelado à questão de quem compra, como foi durante à era dos 16-bits, os setores da indústria responsáveis por essa regulação e administração estão sendo colocados à prova, questionados sobre o que é produzido hoje.
O principal ponto, entretanto, é deixado de lado. A violência começa quando somos expostos à ela ou quando se detém uma ferramenta para desencadeá-la? Uma pergunta capciosa, que um dos lados não responde com honestidade.
A caminho de um problema
Apesar dessa história já ser, de alguma forma, conhecida por muitos, vale a pena relembrar. Tudo começou quando Ed Boon e John Tobias, desenvolvedores da Midway Games, criaram Mortal Kombat, em 1992. Foi uma revolução gráfica para a época, um título que poderia ter trilhado um caminho diferente e menos brilhante que o percorrido. Os desenvolvedores “esperavam que (o jogo) fosse estrelado ou pelo mestre de aikido Steven Seagal, ou pelo astro europeu Jean-Claude Van Damme. Após a resistência de Seagal e Van Damme, Boon e Tobias decidiram criar os próprios personagens, as próprias regras e a própria mitologia.”
Com isso, mais tarde, era o padrão máquinas de fliperama estarem rodeadas de crianças e adolescentes esperando sua vez de jogar e executar os comandos que fizeram a fama de Mortal Kombat, provando que a mudança na direção foi a melhor conjuntura que poderia ter sucedido. Enquanto o arrebatamento ocorria nas casas de jogos eletrônicos, todavia, os primeiros passos para a invasão do jogo de Ed Boon às casas americanas iniciava-se.
Era o começo de uma transformação na indústria dos games. A SEGA e Nintendo sabiam do risco que a ideia trazia e calculadamente pagaram para ver. Ambas queriam Mortal Kombat rodando em seus videogames, de maneira exclusiva, se possível. Mas a Acclaim – empresa detentora dos direitos para distribuir nos consoles os jogos da Midway Games – sabia do ouro que tinha em mãos. Se a intenção fosse migrar dos fliperamas, o objetivo era entrar em toda casa que possuía um console ligado à TV, independentemente do fabricante.
Assim, Mortal Kombat foi lançado para o Mega Drive, ou SEGA Genesis nos Estados Unidos, e para o Super Nintendo, em 1993. Ainda que fosse o mesmo jogo, as diferenças elementares entre os consoles seriam impressas nas suas versões do título. A forte campanha de marketing adotada pela SEGA of America – filial americana da empresa japonesa –, ressaltando a presença das características agressivas do game, catapultou a versão de MK para o, por aqui, conhecido como Mega Drive. Abaixo, as variações gráficas entre as duas versões.
No Super Nintendo, porém, pela sua histórica preocupação excessiva com detalhes que iam da produção ao conteúdo dos jogos – coisas que as desenvolvedoras na época detestavam –, a cor do sangue vermelho vivo foi substituída por um “suor” cinza imperceptível. Com isso, a Nintendo sumira de vista, ficando para trás nas vendas do título desenvolvido pela Midway. Era uma batalha perdida.
Seguindo a passos largos na corrida do avanço do potencial dos seus hardwares – com gráficos caminhando para os mais realistas possíveis –, daquele ponto em diante, a SEGA of America sentiu a necessidade de criar seu próprio conselho para classificar a faixa etária de seus produtos. Assim, estava formado o VRC – Video-game Ratings Council – constituído pelos níveis abaixo:
- GA (General Audiences — Público geral): Jogos apropriados para a família. Sem sangue ou violência explícita. Sem palavras de baixo calão, temas sexuais nem uso de drogas ou álcool;
- MA-13 (Mature Audiences — Públicos maduros): Recomenda-se acompanhamento dos pais. Situações e personagens inapropriados para o julgamento de adolescentes. Estes jogos podem conter determinados níveis de sangue e violência explícita;
- MA-17 (Adults Only — Reservado a adultos): Inapropriado para menores de idade. Os jogos incluem situações complexas que requerem um julgamento maduro. Podem conter muito sangue, violência explícita, temas sexuais maduros, palavras de baixo calão ou uso de drogas ou álcool.”
A SEGA of America, contudo, buscou uma forma de fazer com que sua versão de Mortal Kombat não ficasse restrita a uma parcela excludente da maioria do seu público alvo, mas ainda respeitando a integridade do VRC. Assim, idealizaram o “macete de sangue”, um código que, após inserido, liberava as animações mais cruentas do game.
Estava feito. Um truque abriria as portas para o conteúdo brutal de Mortal Kombat no Mega Drive, algo atraente para os clientes mais velhos enquanto mantinha toda sua imensa base instalada, também, como possíveis compradores. Mas este trajeto convidaria à todos para sentarem-se no desconfortável banco no comitê do senado americano para tratarem da violência desenfreada nos jogos e sua influência no cotidiano do público que o consome.
A armadilha no Senado
Mesmo sendo um dos ilustres convidados, o principal “astro” do dia não seria Mortal Kombat. Com o avanço tecnológico da SEGA, o Mega Drive deixou de ser seu único investimento na produção de consoles e jogos. Vieram mais tarde complementos de hardware como o Sega 32X e o SEGA CD. Então, a grande discussão giraria em torno de um game lançado em 1992, chamado Night Trap.
O título empregava o recurso Full Motion Video – FMV –, uma técnica que utiliza arquivos de vídeo previamente programados para desempenhar ações dentro do jogo. Quase como jogar um filme com atores, selecionando seus caminhos e desenrolando a trama. O principal problema de Night Trap foi seu enredo, simulando um filme trash de terror, do qual o jogador assume o papel de uma agente infiltrada, encarregada de vigiar uma mansão com várias adolescentes que sumiam em condições misteriosas. O jogo é protagonizado pela atriz falecida Dana Plato, famosa por interpretar a Kimberly na série “Diff’rent Strokes”, aqui no Brasil conhecida como “Arnold”, e pelo seu trágico fim de carreira.
Em Washington, o senador Joseph Lieberman, um democrata de Connecticut, ficou estarrecido quando Bill Andresen, seu chefe de gabinete, apresentou os games que as crianças e adolescentes americanos estavam jogando. Após analisar a questão mais a fundo, no dia 17 de novembro de 1993, Lieberman distribuiu a seguinte carta aos membros do Congresso:
Estava aberta a temporada de caça. Depois da convocação do senador Lieberman, sentados lado a lado, estava Howard Lincoln – vice-presidente da Nintendo – trocando acusações com Bill White – diretor de marketing e relações-públicas da SEGA -, cada um defendendo seu lado.
A estratégia principal da SEGA foi apostar no VRC e afirmar que seu público-alvo era mais maduro, fora a alegação acerca do material educativo que distribuía aos seus revendedores e projetos sociais que apoiava – destacando o suporte à Pediatric Aids Foundation.
Lincoln defendia a Nintendo, citando a preocupação da redução gráfica de Mortal Kombat e expondo a capa de Night Trap, afirmando que qualquer criança poderia entrar no Walmart e sair de lá com o game. Em seguida, White apontou as semelhanças de Street Fighter II, jogo de luta da Capcom em que os embates seriam igualmente violentos em ambos os consoles, enquanto a “Big N”, que tentava passar uma imagem de íntegra, não tinha qualquer regulamento semelhante ao VRC.
A alegação, no entanto, não convenceu Lieberman. O senador focou em Night Trap, nas cenas em que mulheres eram mortas e nas insinuações sexuais do enredo, tudo isso com gráficos realistas, enquanto a Nintendo, apesar do argumento de White, apresentava maior empenho em reduzir o alcance desse conteúdo. No fim da sessão que durou pouco mais de duas horas e meia – aqui na íntegra –, a SEGA saiu como vilã, mas a sanção do Congresso foi moderada.
O comitê decidiu dar à indústria a chance de se autorregular antes de uma intervenção do governo. Assim, SEGA, Nintendo e outras empresas da indústria de games chegaram a um acordo. O VRC caiu e foi criado a Entertainment Software Ratings Board – ESRB, uma instituição que atua até hoje.
Violência real X violência nas telas
O ESRB atua como um indicador classificativo, não como órgão regulador. Logo, a discussão da violência nos jogos trespassa os anos 90 e segue até os dias de hoje, com os principais líderes americanos, democratas ou republicanos, ainda possuindo o mesmo raciocínio acerca da indústria de jogos.
De maneira precipitada, as opiniões de grandes nomes da política americana, ainda que ligeiramente diferentes, chegaram à mesma conclusão após a tragédia ocorrida em Columbine, na qual dois adolescentes mataram 12 colegas estudantes e um professor, em 1999. À época, foi amplamente divulgado que os assassinos jogavam o game de tiro em primeira pessoa, “Doom”. As armas para o massacre, no entanto, foram vendidas legalmente.
De acordo com a organização Gun Violence Archive, na época em que esse artigo foi escrito, desde o início de 2018 mais de 5.400 pessoas foram mortas nos Estados Unidos devido à violência armada. A cada massacre ocorrido no país, retornam os discursos favoráveis ao maior controle sobre o comércio de armas de fogo. O poderoso lobby da Associação Nacional do Rifle – NRA, na sigla em inglês – e de políticos da ala conservadora, no entanto, impedem o avanço nas negociações. Com isso, invariavelmente, outros alvos são apontados e a indústria de jogos e do cinema são sempre lembradas.
O ex-presidente da Câmara e republicano, Newt Gingrich, afirmou, à época de Columbine, que “Hollywood e jogos computadorizados minaram os valores centrais da civilidade”. Também em 1999, o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, pediu que empresas de mídia, incluindo a indústria de videogames, fossem investigadas por estarem comercializando conteúdo violento para os jovens.
Em 2005, o senador Joseph Lieberman, não pela última vez, volta ao assunto, nessa ocasião, com a senadora, à época, Hillary Clinton. Eles introduzem a Lei de Proteção ao Entretenimento Familiar, mas o projeto não é aprovado. Sete anos mais tarde, em 2012, e dessa vez como um político independente – sem ligações diretas com democratas ou republicanos – Lieberman discursou sobre o massacre promovido por Adam Lanza, de 20 anos, quando este matou dezenas de crianças na escola primária Sandy Hook, em Connecticut.
O senador afirmou que os jovens que praticam esse tipo de ato “tiveram um envolvimento quase hipnótico em alguma forma de violência em nossa cultura de entretenimento, particularmente video games violentos”. O ex-presidente democrata Barack Obama, em 2013, pediu ao Congresso que financiasse uma pesquisa sobre a violência nos jogos eletrônicos como parte de um plano de 23 pontos para reduzir a violência armada.
E, enfim, em 2018, Donald Trump, após o massacre ocorrido na Flórida, onde Nikolas Cruz, um jovem de 19 anos, obcecado por armas, armado com um fuzil de assalto AR-15, supostamente comprado legalmente, deixou 17 mortos no colégio Stoneman Douglas, encontrou-se com representantes de empresas de video games para discutir seu conteúdo. O presidente apontou a violência dos jogos como um problema que potencialmente afeta os jovens americanos.
Na conta oficial da Casa Branca no YouTube, inclusive, está o clipe abaixo, um vídeo curto com algumas cenas violentas dos jogos que foram mostradas durante o encontro.
A Electronic Software Association, que representa a indústria de jogos nos EUA, participou da reunião junto com a Entertainment Software Rating Board (ESRB) e outras empresas gigantes da indústria, como a Take-Two Interactive, responsável pela publicação de jogos como Grand Theft Auto, e a Bethesda, encarregada de títulos como Doom, Fallout e Wolfenstein.
Em suma, o ponto defendido pela indústria de jogos foi que “os videogames são apreciados em todo o mundo e muitos autoridades e estudos científicos de renome não encontraram nenhuma conexão entre jogos e violência na vida real. Como todos os americanos, estamos profundamente preocupados com o nível de violência armada nos Estados Unidos. Os video games não são a questão, o entretenimento é distribuído e consumido globalmente, mas os EUA têm um nível exponencialmente mais alto de violência armada do que qualquer outro país”
Até hoje, os Estados Unidos se apoia na Primeira Emenda de sua Constituição, que chancela pela liberdade de expressão e dá o direito de comprar um AR-15 no mesmo Walmart que Night Trap, em 1993, podia ser adquirido. Só que apenas um destes itens, até agora, esteve próximo da proibição.