Nenhuma força da natureza é mais intensa e devastadora que o clima. Construções sólidas podem aguentar terremotos e vendavais, enquanto regiões urbanizadas suportam, na medida do possível, até mesmo grande enchentes. Mas a mudança brusca de temperatura, principalmente quando ela atinge níveis extremos, modifica tudo, desde o simples estilo de vida de uma pessoa até um ecossistema completo, tornando escassas a comida e a água.
Em uma situação destas, como manter o caráter de uma sociedade? De que forma se deve agir para garantir o bem-estar de uma população que se viu obrigada a abandonar suas casas e, agora, trabalha não para viver, mas para garantir os recursos mínimos para a própria sobrevivência? Você pode não ter todas as respostas na ponta da língua, mas em Frostpunk, será obrigada a dá-las.
A mais nova obra da 11 bit Studios modifica aquilo que já sabíamos que a empresa era capaz de fazer desde seu game anterior, o incrível This War of Mine. A temática segue parecida, bem como a grande quantidade de decisões moralmente complexas que são exigidas do jogador logo nos primeiros momentos dessa nova civilização. Se antes, porém, tais escolhas eram feitas de forma pessoal, com a própria sobrevivência afetando a de outros, agora esse aspecto é levado à máxima potência.
Frostpunk traz experiência viciante e devastadora, acrescento à fórmula dos RTS e se mostrando um dos melhores expoentes do gênero.
Durante a BGS 2018, quando testei pessoalmente o game, o diretor de desenvolvimento de negócios da 11 bit, Piotr Bajraszewski, disse que não me julgaria caso, diante das circunstâncias, eu decidisse aprovar uma lei autorizando o trabalho infantil. Mal sabia eu, naquela época, que esse seria apenas o primeiro passo para o interior de um verdadeiro inferno gelado.
O game se passa no final do século XIX, época da ascensão das máquinas a vapor. No universo distorcido de Frostpunk, as máquinas que gerariam um dos grandes booms da civilização acabam se transformando na derradeira esperança da humanidade quando uma nevasca atinge a cidade de Londres. O gelo passou meses caindo sem parar enquanto as temperaturas desciam cada vez mais, uma situação que parecia se refletir em todo o restante do mundo, na medida em que os meios de comunicação precários da época pareciam indicar.
Era, aparentemente, o fim do mundo, mas não por fogo, como vislumbraram as profecias, mas sim por gelo. Em uma última e desesperada tentativa de sobreviver, os londrinos deixaram suas casas e cidade e seguiram para uma cratera, onde se agruparam ao redor de um gigantesco gerador de energia e calor. A decisão representa a sobrevivência das pessoas, ou, então, o último passo para a ruína completa. E é aqui que o jogador assume.
Boa parte da experiência com Frostpunk, como em todo bom game de sobrevivência e também de estratégia em tempo real, tem a ver com o gerenciamento dos recursos. O tempo todo, o jogador deverá ficar ligado nos indicadores de madeira e ferro, necessários para a construção de estruturas, e também de carvão, essencial para o funcionamento do gerador e aquecimento da população. A grande estrutura é o coração dessa nova civilização, e se ele parar, acabou.
Os recursos até aparecem espalhados pelo cenário, mas como tudo nesse mundo, é escasso. Rapidamente, o jogador precisará tomar decisões relacionadas à coleta de elementos, mas também, ao desenvolvimento de soluções que criem sustentabilidade e independência. Na mesma medida, também, a sociedade vai crescendo e se restabelecendo, o que acaba aumentando a pressão relacionada à escassez de materiais.
Nesse ensejo, também, aparecem problemas relacionados, justamente, a essa complexidade. Frostpunk não leva o jogador pela mão, o que é bom, mas ao mesmo tempo, também apresenta uma falta de clareza em alguns de seus aspectos, que não são solucionados nem mesmo quando se lê o interativo, mas básico, tutorial do game.
Usinas de carvão, madeira e ferro, por exemplo, podem parar de funcionar pois seus estoques estão cheios, mas mesmo a colocação de depósitos nos arredores não ajuda a resolver a questão. Algumas tecnologias possuem descrições confusas, que não explicam bem seus reflexos sobre a sociedade, enquanto a impossibilidade de gerar um atributo ou posicionar uma construção em um determinado local nem sempre fica clara.
Ao mesmo tempo, o jogador também precisa lidar com outros aspectos inerentes de uma sociedade. Estamos lidando com pessoas que perderam tudo e é preciso dar esperança a elas. Ao mesmo tempo em que sabem que precisam trabalhar para garantir a continuidade da nova sociedade, isso também é um fator de descontentamento, outro fator que precisa ser levado em conta o tempo todo.
Frostpunk apresenta um conjunto completo de ferramentas e grande variedade de opções, algumas ligadas diretamente e outras nem tanto. A construção de casas e aumento da temperatura delas, por exemplo, melhora o humor dos cidadãos. Fazer com que eles trabalhem dobrado para entregar a madeira e o carvão necessários para entregar tudo isso, entretanto, pode deixar todo mundo bem nervoso, principalmente quando as primeiras doenças e mortes por exaustão começam a acontecer.
É aqui que entram os aspectos que diferenciam Frostpunk de muitos títulos de estratégia em tempo real – e que trazem as características que o tornam, ao mesmo tempo, viciante e devastador. A já citada lei que permite o trabalho infantil é apenas a primeira de muitas normas que podem ser aprovadas de tempos em tempos, com o jogador tendo, sempre, que fazer o balanceamento entre os interesses pessoais dos indivíduos e a necessidade de manutenção da sociedade.
Passou uma lei que estende as jornadas de trabalho de 12 para 14 horas por dia? Considere, na sequência, liberar a construção de uma arena de duelos, apostando desavergonhadamente na política do pão e do circo. Não pode perder tempo? Lide com as doenças causadas pelos cadáveres dos mortos por exaustão enterrando-os na neve, à distância, mas lide, depois, com a insatisfação de cidadãos que não puderam dar o adeus adequado a seus entes queridos nem possuem um local para visita-los depois do falecimento.
Toda decisão muda as coisas, seja a curto ou longo prazo. Uma sociedade saudável e sustentável pode, de repente, se transformar em uma caótica ditadura.
A cidade reage a tudo isso. Ao aproximar a câmera, o jogador consegue enxergar os cidadãos indo de casa para o trabalho ou visitando as áreas de lazer, com o murmurinho geral indicando a situação de todos em relação ao humor. De tempos em tempos, o game apresenta pequenos travamentos ou quedas na taxa de quadros, esteja o usuário olhando de perto ou de longe, um reflexo de possível falta de otimização.
Decisões específicas também podem alterar os rumos da sociedade para o bem ou para o mal. Em um dos grandes momentos decisórios que alteram profundamente as coisas, o jogador se vê diante de uma revolta e pode agir de duas maneiras – pela força e pela disciplina ou trabalhando o espírito dos cidadãos, liberando manifestações de fé e religião para dar a eles mais esperança.
A escolha, colocada assim, pode até parece óbvia, mas, como muitas das escolhas feitas em Frostpunk, rapidamente podem sair pela culatra. O reflexo de ideias erradas ou gerenciamento mal feito, normalmente, demora para chegar, e quando menos espera, o jogador pode ver sua civilização tão querida transformada em uma ditadura autoritária em que ele próprio é o vilão, mesmo sem querer.
O título faz questão de que o jogador jamais se esqueça que está em um ambiente incrivelmente inóspito. Mesmo após horas de jogatina, com uma sociedade avançada e, aparentemente, sustentável, uma decisão errada pode colocar tudo a perder. De repente, as punições públicas reservadas a criminosos podem se tornar a única solução contra uma revolta que parece ameaçar a todos. E aí a temperatura cai bruscamente, consumindo rapidamente uma reserva de carvão que parecia confortável e tornando os ânimos ainda mais intensos.
Em Frostpunk não existe um por todos e todos por um. Ao se verem desesperados, a população se tornará hostil e, em uma decisão que pode levar à morte de todos, o líder será o primeiro a morrer. Felizmente, isso nunca acontece sem aviso, com um indicador de que faltam poucos dias para que o povo exija violentamente uma mudança na liderança só aumentando a pressão.
Com tudo isso acontecendo ao mesmo tempo, a 11 bit Studios ainda arrumou tempo para contar uma história. Ao longo da jogatina, o jogador deve não apenas cuidar da população local como, também, enviar expedições para fora da cratera, de forma a buscar sobreviventes e encontrar novos recursos ou tecnologias.
Frostpunk é mais um grande título da 11 bit Studios, uma desenvolvedora que se mostra cada vez melhor.
O game se desenrola ao redor de sobreviventes que deixaram suas casas apressadamente e, como qualquer outra pessoa, também possuem parentes distantes com quem se preocupam. O desenvolvimento necessário para a criação de exploradores é um dos primeiros artifícios para aumentar a esperança por dias melhores.
É por meio dessas expedições que descobrimos um pouco mais do que está aconcendo nesse mundo, um fator que, ao mesmo tempo, também traz consigo um sentimento de esvaziamento. Se tudo está efetivamente devastado e não há esperança, para que ter tanto trabalho, então? Será que a esperança efetivamente existe ou é apenas uma barra azul na tela, cujo preenchimento não significa absolutamente nada?
Em meio à chegada a cidades devastadas e participações especiais de figuras histórias como Nikola Tesla, se desenrola um enredo que envolve desespero em doses cavalares, mas também uma boa vontade de seguir em frente. Diante da destruição, pode não existir esperança para o futuro da humanidade, mas há mudanças significativas para cada pessoa encontrada por sua expedição, que de outra maneira iria sucimbir ao frio e, agora, passa a ter uma nova casa para morar, um trabalho e, acima de tudo, um propósito.
É no balanço entre desesperança e resiliência que Frostpunk se destaca como um grande expoente dos games de estratégia, um gênero dominado por figurões e que não apresenta um ritmo de evoluções e novidade tão grande quanto deveria. O grid circular, as diversas opções e, principalmente, a coesão entre elas formam um título que, ao mesmo tempo, faz jus às convenções do estilo enquanto traz muita coisa nova à fórmula.
Em seu segundo grande game, a 11 bit Studios leva adiante os conceitos aprendidos em seu último grande game, This War of Mine, e mais uma vez apresenta uma experiência tensa e que colocará a moral de cada jogador em jogo. Se você realmente tem o que é preciso para sobreviver, agora, mais do que nunca, é hora de mostrar isso.
O jogo foi analisado em cópia cedida pela 11 bit Studios.