Far Cry 5, que chegou ao mercado em março de 2018, é o oitavo título da franquia Far Cry, tendo esta sido inaugurada há 14 anos. Uma baita curva de aprendizado que culminou no jogo não mais enaltecido da série, mas com certeza o mais interessante.
Ele conta a estória de Joseph Seed, ou Pai, como é chamado, um líder religioso – e político – que se apropriou da região fictícia de Hope County em Montana, Estados Unidos, e desenvolveu ali sua própria idealização de Estado, sob premissas de fé e coerção física e psicológica. Apesar da narrativa em primeira pessoa contada por nós, jogadores, Joseph é o principal personagem do game, o mais bem desenvolvido e cujo todos os acontecimentos giram entorno.
Somos um policial novato enviado ao condado para prender Seed por suspeita de sequestro qualificado. Sem qualquer resistência, o pregador é posto em um helicóptero que nunca chega a sair do condado, sendo interditado por seus seguidores.
Há três tipos de moradores em Hope County: os fiéis de Seed, aqueles que veem lógica em seu discurso e o elegem seu líder, vivendo conforme suas regras; há os tidos zumbis, pessoas sob constante torpor químico e que compõem uma espécie de exército a mando do Pai; e os resistentes, alguns guerrilheiros tentando derrubar o poder vigente, e outros igualmente contra as regras, mas em segredo, tentando sobreviver numa sociedade completamente oprimida e monitorada.
O novato (ou novata, como o jogo permite escolher) parte então numa cruzada para minar a influência de Seed na região, destruindo postos de controle, salvando reféns, se unindo à resistência e, principalmente, matando seus seguidores.
Far Cry 5 representa uma baita curva de aprendizado que resultou não no jogo mais enaltecido da franquia, mas, com certeza, em um dos mais interessantes.
A progressão do jogo depende do confronto a três principais aliados do pregador, os quais chama de sua família: o irmão mais velho, Jacob Seed, um veterano de guerra bárbaro e responsável pela segurança do grupo; John Seed, um advogado e marqueteiro louco que acredita no poder do “sim” e da purificação espiritual pela confissão de pecados para a união ao culto, ou Portão do Éden, como chamam a transição; e Faith Seed, uma jovem mulher rechaçada por seus pais e comunidade, como a própria relata, responsável pela fabricação da Benção a partir de uma espécie de flor, um componente químico usado para drogar pessoas e convencê-las a fazerem o que ela quiser, seja se unirem ao culto, seja se matarem.
A área de influência dos três “irmãos” Seed forma uma triangulação no mapa do jogo que pode ser seguida em qualquer ordem, permitindo um desenvolvimento não linear da narrativa, mas que por fim levam ao confronto do boss final no centro do triângulo: Joseph Seed. Para chegar até ele, é preciso quebrar a resistência dos líderes, seja via missões principais ou também somando pontos de side quests. E quantas side quests…
Este talvez seja o jogo mais “povoado” de toda a série. Há inúmeras coisas acontecendo todo o tempo e em todas as áreas do mapa. Histórias paralelas, núcleos de pessoas que precisam de ajuda para de alguma forma cessar a influência do culto em suas vidas ou reverter situações instituídas pelo mesmo, relatos de brutalidade que culminaram em desejo de vingança, comerciantes locais em busca de se reestabelecer, caças ao tesouro, reparos de sistemas de irrigação, dentre outros.
O mundo aberto de Far Cry 5 é grande e maduro, extremamente detalhado, mais bem contextualizado que em outros jogos da série e rico em elementos de ação alternativos. Há muito o que se fazer aqui, e o cenário diz muito sobre o verdadeiro propósito dos Seed em Hope County.
Somos lançados em uma organização social de completa repressão individual e apropriação de recursos naturais. Joseph Seed, mais que um pregador, é um autocrata. Suas decisões são autocontroladas, sem qualquer mediação popular, e inquestionadas. Ele governa pela força e pelo medo, atento às possibilidades de golpe de Estado ou insurreição em massa, briga esta que somos impelidos a comprar.
Joseph não quer construir uma comunidade que espelhará seus ensinamentos e conduta, mas sim moldá-la à sua própria concepção de sociedade, um exército servil e dependente que acatará suas ordens por mais polêmicas e imorais que sejam. Para isso, sua intervenção se dá a nível individual e coletivizado. Nós, jogadores, testemunhamos massacres, torturas, somos drogados, atacados, ouvimos histórias horrendas sobre violência, humilhação, subjugação e afirmação de poder. Dessa forma, os Seed minam o condado a nível de indivíduo, anulando sua identidade e liberdade de expressão.
Por outro lado, presenciamos a captura de negócios locais, a destruição de alguns, a instituição da fome, a intervenção comercial e, principalmente, a degradação de recursos naturais. Em diversas cenas se presencia, por exemplo, seguidores do culto entornando dejetos químicos nos rios e lagos da região, poluindo-os, lesando o ecossistema local. O Pai quer não só se apoderar de Hope County como também destruí-lo sob promessas de um novo mundo, um mundo melhor.
Tudo isso em prol de uma visão do Armagedom. Joseph Seed se manifesta como um profeta, alguém que enxerga além da devassidão deste mundo até sua própria destruição por meio da mesma. Enquanto molda uma comunidade de acordo com suas próprias crenças, também vende a ideia de salvação aos que, claro, seguirem cegamente seus ensinamentos e desígnios.
Vilões sempre foram os verdadeiros protagonistas nos jogos Far Cry. Neste, Joseph Seed é um profano e um profeta. Todos os méritos à equipe que tornou esse personagem possível.
Diferente de personagens como Vaas Montenegro, em Far Cry 3, e Pagan Min, em Far Cry 4, vilões extremamente populares e até mesmo admirados pelos fãs da série, em Far Cry 5 Joseph Seed é um homem abominável. Sua loucura, megalomania, egolatria e crueldade, disfarçadas sob um temperamento ponderado e discursos de lucidez, Luz e redenção são intragáveis. O jogo o constrói bem o bastante para que queiramos arrancar sua cabeça e dá-la aos lobos.
Logo no início da estória, ao infiltrarmos o condado, somos apresentados a provas claras da influência de nosso antagonista sobre as pessoas daquele lugar. O Pai é um vilão poderoso e vencê-lo requer mais do que atos heroicos; exige aliados.
Essa é uma das novidades muito bem-vindas da série: desde o princípio, é possível contratar soldados mercenários e também componentes da força resistente para a execução de missões, sendo essas pessoas que resgatamos ou mesmo conhecemos por acaso ao longo do caminho. É possível “ativar” o aliado ao nos aproximarmos das áreas das missões, e esse lutará ao nosso lado atirando no inimigo ou mesmo nos resgatando quando estamos a um passo da morte. Sua companhia é opcional, podendo ser ativada ou dispensada no menu principal.
Há uma espécie de “forças especiais”, ou assistentes especialistas ou mais poderosos que são mais eficazes no combate lado a lado, e este se tornou um dos mecanismos mais interessantes do jogo atual. O recruta mais famoso, Boomer, é um cão que caiu nas graças do povo por ser companheiro, amigável e uma ótima ferramenta de leitura do cenário para traçar estratégias de ataque.
O que é problema em Far Cry 5? Assim como suas novidades incríveis, há também diversos pontos de melhoria. Um dos mais incômodos é a inteligência artificial falha dos NPCs. Em confrontos generalizados, aliados e oponentes direcionam suas ações ao jogador principal, e não lidam uns contra os outros, o que arruína o sentimento de que somos pequena parte de algo maior acontecendo, e não de que as circunstâncias se desenvolvem ao nosso redor. As interações podem se tornar um tanto artificiais.
Em uma crítica recorrente a qualquer jogo da série, somos o recruta – ou a recruta – sem qualquer background, traço de personalidade ou força de vontade. Joseph Seed certamente nos considera um oponente chatíssimo.
Como em qualquer mundo aberto extenso, há vários bugs na interação com animais, objetos flutuantes e NPCs se comportando de maneira estranha. De forma mais grave, é possível tomar postos inimigos e matar todos os militantes da área sem que o jogo reconheça, ou demore a entender, que a tarefa foi concluída. É comum nesses momentos, também, que os assistentes recrutados não obedeçam ao modo furtivo de escolha do jogador, fazendo com que sua presença nas missões seja mais prejudicial que eficiente.
Uma outra crítica, recorrente em qualquer jogo da série, é a despersonalização do jogador em primeira pessoa, ferramenta intencionalmente implementada pelos desenvolvedores, mas que de certa forma não funciona na narrativa.
Vilões sempre foram os verdadeiros protagonistas nos jogos Far Cry. No entanto, ainda que a estória transcorra em primeira pessoa, nossa atuação é extremamente apática, inexpressiva. Aqui somos o recruta – ou a recruta – sem qualquer background, traço de personalidade ou força de vontade. Joseph Seed certamente nos considera um oponente chatíssimo.
Tais críticas não ofuscam, entretanto, o brilho deste jogo. Far Cry 5 é uma estória incrível, interessante, um excelente entretenimento e democrático aos vários perfis de jogadores, desde o RPGista, escavador de relatos e núcleos particulares, até o combatente porra-louca. Apesar da velha estrutura tão característica de outros jogos da série, as inovações presentes são inúmeras e funcionais, a não-linearidade em sua progressão é satisfatória e o final – finais? – é uma alegoria à parte.
Joseph Seed é um profano e um profeta. Todos os méritos à equipe que tornou esse personagem possível.
O jogo foi testado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Ubisoft.