O que nos define como humanos? É a nossa capacidade de criar, sonhar, aprender e evoluir? A habilidade de modificar o meio em que vivemos a nosso bel-prazer? Empatia? Luxúria? Fé em algo intangível? Amar, odiar? Ou é o simples fato de sabermos que existimos e termos a consciência de nossa inevitável finitude? Essa é a questão clichê e inevitável na maioria das histórias que lidam com inteligência artificial e a forma como a sociedade encara essa nova “forma de vida”.
Se é complicado relacionar o que nos faz humano, ainda mais difícil é reconhecer como tal um outro ser, tão semelhante e ao mesmo tempo tão distinto. Esta a proposta principal de Detroit: Become Human: propor ao jogador escolhas morais em situações controversas nos vários níveis do relacionamento humano com seres dotados de inteligencia artificial.
Connor (Bryan Dechart) é o mais avançado protótipo de androide investigador, dotado de inúmeros recursos a fim de analisar a cena de um crime nos mais ínfimos detalhes, cruzar informações em tempo real, traçar perfis de personalidade e os utilizar em interrogatório, além da força sobre-humana. É colocado em campo, especificamente, para lidar com casos de máquinas que apresentam comportamento divergente do que é o esperado de sua programação, chegando até mesmo a cometerem atentados contra a visa humana.
Kara (Valorie Curry), modelo feminino de androide doméstico, é dedicada a cuidar da casa, da família e de seus membros mais vulneráveis. No game, se torna babá de uma garotinha que vive com o pai alcoólatra. O instinto materno em sua programação é forte o suficiente a ponto de ela colocar sua criança acima de qualquer outra prioridade, protegendo e cuidando da pepquena a qualquer preço.
Markus (Jesse Williams), modelo masculino de androide doméstico, é voltado para manutenção e trabalho pesado. Sua personalidade é programada de forma a demonstrar empatia, afeição, humildade e curiosidade moderadas. Por também poder atuar como cuidador de idosos, facilmente, pode vir ser considerado como um filho para a pessoa a quem presta esse serviço, personalidade essa cuidadosamente planejada com esse objetivo.
Olhares desatentos podem facilmente confundir as cenas do jogo com um filme. Graficamente, Detroit: Become Human é, de longe, o trabalho mais bonito da desenvolvedora Quantic Dream.
A trama de Detroit: Become Human tem esses três personagens como seus principais, não necessariamente os mais interessantes, mas que conseguem fazer o mínimo possível para colocar a história em movimento e também protagonizar alguns raros momentos memoráveis. O texto do jogo é provavelmente o maior culpado pelos poucos momentos de impacto ou emoção da trama.
Parece que o diretor e roteirista David Cage tentou fazer de cada fala do jogo uma frase de efeito, com diálogos que muitas vezes beiram a teatralidade, tirando muito da naturalidade necessária para que possamos nos identificar com os dramas vividos pelos personagens. O mais afetado por essa necessidade de tornar todos os diálogos algo representativo e edificante é o androide Markus. Na tentativa de fazer todos os diálogos serem especiais, nenhum acaba sendo, por mais que a dublagem seja excelente. Destaque para a melhor adaptação nacional de um jogo desde Halo: Reach.
A jogabilidade burocrática é um aspecto presente em quase todos os games da Quantic Dream, que não evoluiu quase nada nos últimos 15 anos.
Representatividade é um fator bem comum por todo o jogo, seja em questões de etnia, biotipos ou em relação a gênero ou orientação sexual. O mais interessante é a naturalidade como esses aspectos se fazem presentes, nunca como algo relevante para a trama, mas somente perdendo sua naturalidade, mais uma vez, por culpa dos diálogos forçadamente edificantes e propositalmente tentando serem marcantes.
Nem todo mundo tem algo sábio para dizer ou tem a resposta certa para um problema. Imperfeições também fazem parte da naturalidade mas, no game, mais parece que todos os personagens são dotados de uma inteligência artificial limitada nos diálogos.
Em diversos momentos, olhares mais desatentos podem facilmente confundir as cenas do jogo com um filme, principalmente devido à presença de atores reconhecidos de filmes e séries nos papeis principais. Graficamente, esse é de longe o trabalho mais bonito da desenvolvedora Quantic Dream, sendo Detroit seu primeiro jogo na atual geração de consoles, com um trabalho de fotogrametria e captura de movimentos e expressões faciais cada vez mais impressionante
Todas a decisões que tomamos durante o game, seja em diálogos ou em cenas de ação, têm consequências para o bem ou o mal. A interação com um objeto no primeiro capítulo pode desencadear uma nova linha de diálogo ou cena decisiva no final do jogo. Um tiro de raspão hoje pode limitar seus movimentos amanhã. Uma amizade conquistada pode ser útil no futuro. E tudo isso também pode ser vivido de forma contrária, levando ou não a desfechos inesperados.
A equipe de produção esteve por um tempo em Detroit, um grande pólo industrial americano atualmente decadente, para entender e conseguir recriar o clima da cidade, imaginando como seria a vida em um futuro próspero e tecnológico. Infelizmente, porém, a maior parte do jogo é passada em ambientes fechados, não sendo possível observar os locais e esse trabalho.
Cena do crime, um copo em cima da mesa, provavelmente com as digitais do criminoso, e você se aproxima para analisar mais a fundo. Faça uma “meia-lua” no direcional para pegar o copo. Uma porta pesada de ferro impede seu acesso a uma sala, mas possui uma trava circular que permite a abrir. Segure L, depois R, pressione X repetidamente enquanto usa o acelerômetro do controle para girar a tranca para a esquerda. Estes são dois “simples” exemplos da jogabilidade desnecessariamente burocrática e pouco intuitiva que permeia toda a experiência, seja para novatos ou jogadores mais experientes.
O texto do jogo é provavelmente o maior culpado pelos poucos momentos de impacto ou emoção da trama. Na tentativa de fazer todos os diálogos serem especiais, nenhum acaba sendo, por mais que a dublagem seja excelente.
Esse tipo de mecânica, apesar de compreensível pelo objetivo de representar a dificuldade do personagem em executar determinada ação, só serve para nos tirar de um momento de imersão onde atos simples e automáticos no dia-a-dia como pegar, ligar, girar, empurrar não exigem muito raciocínio. Esse é um aspecto presente em quase todos os games da Quantic Dream e que, infelizmente, não evoluiu quase nada nos últimos 15 anos.
Já um outro aspecto que, estranhamente, se enquadra na jogabilidade é a possibilidade de refazer as escolhas tomadas durante a trama. Conforme o jogo avança, nossas escolhas vão sendo registradas e dispostas em uma planilha cronológica, onde é possível ver em que momento a história se bifurcou e quantas e quais seriam as demais possibilidades de desenvolvimento.
Aqui, é possível vislumbrar a quantidade inacreditável de trabalho que a equipe de desenvolvimento teve para abranger a grande maioria de possibilidades e desfechos para cada uma das tramas individuais, de cada um dos protagonistas e de suas inúmeras interações com os demais personagens. Por mais que esse recurso facilite e incentive a rejogar o game, boa parte do encanto da primeira vez vai por água abaixo quando se olha “por trás da cortina”. É como quando se descobre o segredo de um mágico e a magia deixa de existir.
Tecnicamente impressionante, com uma trama que tem seus momentos e personagens marcantes, a Quantic Dream peca, em Detroit: Become Human, com um texto teatral. A temática e ambientação são muito interessantes, apesar de aparentarem ser de um mundo a parte, onde suas consequências grandiosas têm pouca influencia no restante do universo. Não é um jogo perfeito, muito, também, por sua jogabilidade datada, mas ainda assim interessante o suficiente, principalmente, para fãs de ficção.