A intersecção de mídias é uma realidade constante em nossa indústria. Existem, claro, mais jogos que se aproveitam da linguagem dos filmes do que o inverso, justamente pelo caráter interativo dos games — eles foram feitos para serem jogados, afinal de contas. Entre botões e direcionais analógicos, tentam superar a ausência do telão prateado e da projeção e som em alta definição para envolver os jogadores com não apenas sua trama e visuais, mas também a tensão inerente de estarmos, efetivamente, controlando os desígnios do que acontece diante de nós.
A Plague Tale: Innocence é mais um expoente dessa união começada há mais de duas décadas e que nos rendeu tantos clássicos dos vídeo games. Entretanto, ao criarem um título situado em um dos períodos mais sombrios da história da humanidade, a Asobo Studio parecer ter, muitas vezes, se esquecido de que estava efetivamente fazendo um game, deixando a veia cinematográfica falar mais alto. Títulos impactantes e com imagens tão cruéis quanto esse são poucos; games tão lineares e pouco inventivos, também.
A balança do jogo está claramente desequilibrada para o lado da narrativa, situada em pleno auge da Peste Negra e no início da Guerra dos Cem Anos. Enquanto a Europa é dizimada pelas batalhas e também pela doença transmitida pelos ratos, a tragédia bate na porta de Amicia e Hugo de Rune, que após testemunhar o assassinato dos pais pela Inquisição, precisam sair em uma fuga desesperada por suas vidas.
Os dois filhos de nobres deixam o conforto de seu palácio para seguirem sozinhos por uma terra arrasada pela maldade dos homens e pela doença dos ratos, que mais do que transportar a praga, se tornaram sanguinários e violentos. Ainda, o garotinho carrega algo de errado dentro de si, que se manifesta de tempos em tempos e é a razão pela qual os inquisidores foram à casa dos dois. É uma jornada de desgraça e desolação na qual a inocência aparece apenas no título.
As imagens fortes exibidas ao longo das quase duas dezenas de capítulos de A Plague Tale: Innocence fortificam ainda mais esse sentimento. Enquanto seguimos pelas planícies e margens dos rios do Velho Continente, nos deparamos com cenários de combates que já acabaram, com milhares de corpos em decomposição, locais de descarte de restos de animais dizimados pela praga e muitos, muitos ratos.
A balança está desequilibrada para o lado da narrativa. Títulos impactantes e cruéis assim são poucos; games tão lineares, também.
Os animais estão por todo lugar, se comportam como uma onda avassaladora e querem, mais do que tudo, um pouco de carne fresca para consumir. De certa forma, o comportamento deles lembra o das piranhas devorando uma presa, enquanto o som que denuncia sua presença jamais deixa o jogador confortável, mesmo estando em um local seguro.
Amicia é mais velha e habilidosa, mas, ainda assim, apresenta aquele traço de despreparo de alguém que passou a vida não atrás dos muros, mas sempre próxima a eles. O envolvimento dos jogadores com a dupla de protagonistas é quase imediato, principalmente, por um sentimento de proteção. Muitas vezes, dá vontade de estendermos nós mesmos a mão para auxiliar os dois durante os momentos mais críticos, sabendo que eles, com toda certeza, precisarão de toda ajuda que conseguirem.
Para o bem, mas, principalmente, para o mal, seguir adiante pelas fases de A Plague Tale: Innocence não á tarefa nada difícil, pelo simples fato de o game ter um roteiro muito bem definido, que não é de forma alguma ocultado do jogador. Pelo contrário, o título espera que os usuários façam exatamente aquilo que ele espera, sem qualquer espaço para manobras, abordagens diferentes ou um mínimo de inventividade que seja.
Estamos em um dos períodos mais sombrios da histórida da humanidade, mas a Peste Negra, no final das contas, nem é a maior ameaça aqui.
Boa parte da jogabilidade de A Plague Tale: Innocence é baseada em elementos de furtividade ou no uso de itens para resolver pequenos enigmas ou lidar com as gigantescas hordas de ratos. O jogador, entretanto, não vai precisar pensar muito. Caso necessite de uma pedra para distrair um soldado, encontrará um saquinho delas ao lado. É hora de usar uma tocha? Procure na parede diretamente em frente.
Nem mesmo a alquimia, que aparece como um artifício de Amicia logo nos primeiros capítulos, servem para adicionar um quê de exploração ou economia de recursos. Sempre que ela precisar usar um sonífero ou acender um fogo usando as técnicas antigas, os elementos necessários estarão à mão, seja em um baú conveniente próximo ou entregues literalmente por um NPC.
Da mesma forma, o título faz questão que o jogador siga por uma rota determinada, mesmo em suas poucas áreas abertas. É fácil entender o caminho a ser percorrido nas cenas com o mar de ratos, e mesmo quanto existe um grupo de soldados entre o usuário e seu objetivo, dá para notar claramente a programação e as rotas seguidas pelos inimigos, que indicam o caminho a seguir de maneira nada sutil. Caso nada disso seja suficiente, o jogo ainda utiliza paredes invisíveis, mesmo em locais em que os protagonistas claramente conseguiriam passar.
Quem desviar da rota vai morrer e deverá tentar novamente até entender que o melhor, em A Plague Tale: Innocence, é seguir como o game deseja. Chega a ser bizarro o fato de o título não usar artifícios usuais dos games linerares, como os objetivos em textos detalhados ou os indicadores visuais, mas foi só o que faltou mesmo. Tais mecanismos de ação guiada nem mesmo são necessários, afinal de contas, os produtores conseguiram efeito similar usando todos os outros conceitos do título.
Com tudo isso, A Plague Tale: Innocence passa a ter um nível de desafio muito próximo do zero, com as mortes dos protagonistas acontecendo sempre que o jogador se desviar da rota, não entender ao certo como deve agir ou caso se depare com algum bug. Hugo, o companion infantil de Amicia, tem uma inteligência artificial bem programa e o mesmo também pode ser dito de outros aliados da dupla que vão aparecendo ao longo da aventura; ainda assim, eles são propensos a problemas e, de vez em quando, simplesmente não agem como deveriam.
Essa ausência completa de inventividade também acaba esvaziando outras ideias do game, como a possibilidade de atacar soldados que vejam os irmãos ou o sistema de upgrades de equipamentos. Como tudo neste mundo é capaz de matar Amicia e Hugo com um único ataque, e os itens necessários para desafios e alquimia estarão sempre à mão, tanto faz se a bolsa da protagonista pode carregar seis ou 10 pedras. É perfeitamente possível terminar A Plague Tale: Innocence sem realizar nenhuma melhoria.
Na medida em que os capítulos vão sendo finalizados, fica claro para o jogador que capacidades técnicas não faltam ao Asobo Studio. Basta olhar os belíssimos gráficos que compõem as cenas terríveis diante de nós ou o teor artístico de muitas das imagens, por mais que aqui e ali, seja possível perceber screen tearing ou quedas na taxa de frames por segundo. Não falta habilidade, o que faz pensar que a jogabilidade linear e rasa é intencional. Só não dá para entender o porque dessa decisão, que limita e esvazia a proposta.
A narrativa envolvente e o texto bem escrito — incluindo uma criança que é, efetivamente, infantil, mas sem os clichês de incapacidade e choramingos normalmente presentes nos games desse tipo — ajudam a compensar um pouco as deficiências do gameplay, mas não fazem com que a gente as perdoe. Os jogadores devem se afeiçoar a Hugo e Amicia, algo que, junto com a desgraceira cada vez maior, deve ser suficiente para fazer ir até o final do game, mas sem que a grande linha reta apresentada deixe de se fazer presente. Você estará sempre sendo guiado e levado pela mão e isso incomoda muito.
Por outro lado, as imagens terríveis e a ambientação sinistra faz com que A Plague Tale: Innocence se destaque como um game a ser lembrado, principalmente, por mostrar que a alma dos homens pode ser, às vezes, mais cruel e vil que uma horda de ratos possuídos. A praga que dizimou uma bela parcela da humanidade na época, no final das contas, nem é a maior das ameaças aqui. Nada escapa da mão que brutaliza, tortura e destrói. Não existe mesmo espaço para a inocência enquanto os corpos se empilham, a espada canta, o sangue jorra e os doentes caem. Alguns laços, entretanto, podem restar, mesmo que o mundo faça o possível para que eles sejam desatados.
O jogo foi testado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Focus Home Interactive.