Void Bastards

Void Bastards

por Felipe Demartini

Bastardos vazios, mas cheios de personalidade

A ideia de jogar um filme é constantemente ventilada na indústria de jogos, seja para falar de um game com movimentos fluídos e belos gráficos ou para nos referirmos àqueles que adotam a boa e velha prática do live action. Mas e se, agora, você pudesse jogar uma história em quadrinhos? Essa é apenas uma das tantas propostas interessantes trazidas à mesa por Void Bastards, um título carregado de mecânicas, elementos e, principalmente, aspectos viciantes.

Em mais um daqueles títulos que tiram noites de sono e nos fazem jogar “só mais uma partidinha” até perceber que estamos há mais de quatro horas na frente do computador, o título da Blue Manchu aposta em elementos de rogue like, mas mais do que isso, em uma estética absolutamente linda que faz jus a esse fator de conquista. Seus combates são simples e diretos ao ponto, assim como as cores sólidas de seu conjunto gráfico, mas por trás de tudo isso, há um imenso mecanismo funcionando.

Void Bastards é um dos shooters mais interessantes deste ano, daqueles que você vai querer jogar “só uma partidinha” e permanecer por horas.

Não é nada que surpreende quando levamos em conta os responsáveis pelas engrenagens, nomes veteranos de alguns dos shooters mais importantes de todos os tempos. No comando da Blue Manchu está Jonathan Chey, diretor de System Shock 2 e co-fundador da Irrational Games, da série BioShock. Essa experiência transparece, mas o novo game traz algo de fresco que fascina e encanta.

Somos jogados no meio do espaço e em uma nave quebrada. Somos fugitivos da justiça com características especiais que, agora, precisam vasculhar outras naves igualmente à deriva em busca de equipamentos para seguir adiante na fuga. Desde o início, a inteligência artificial que cuida dos prisioneiros indica que todos são descartáveis, mas cada um é especial por si só e conta com vantagens e vulnerabilidades específicas, combinadas de maneira aleatória.

Void Bastards

Nosso personagem desgraçado pode ser, por exemplo, anão e alérgico a óleo. Ou, então, um sujeito tão empolgado que comemora sempre que encontra um item, sendo uma péssima escolha para missões furtivas. Existem também protagonistas daltônicos, com golpes corpo a corpo poderosos ou mais resistentes a tiros. Encontrar alguém adequado chega a ser questão de sorte, já que para cada ponto positivo, normalmente há também um negativo.

Essa lista de guerreiros de todos os tipos e gêneros pode se tornar ainda mais poderosa por meio de alterações de DNA, apenas um de tantos aspectos que podem ser encontrados nas naves. Entretanto, aqui já há uma escolha, pois como todo bom rogue like, Void Bastards tem um sistema de mortes permanentes, e nada é mais triste no game do que perder aquele personagem legal e com bom atributos, mas que deixou a gente valente demais.

É nesse quesito que está o segundo aspecto da experiência com Void Bastards. Ao contrário do que a cara de shooter dos anos 1990 pode indicar, o título nos faz pensar sobre as vantagens de correr ou evitar o conflito. Durante todas as aventuras e usando qualquer personagem, serão diferentes os aspectos que levam à reflexão do que vale mais: um bastardo vivo, mas sem explorar todo o loot, ou um ganancioso morto.

Void Bastards

Esse aspecto passa por uma fase de preparação, na qual sabemos de antemão o layout da nave em que vamos embarcar para vasculhar, e também pelas armas e dispositivos que temos nas mãos. Conhecemos também os tipos de inimigos que estarão por lá e, ao invadir, a posição de loots aproximados. Daí, cabe ao jogador seguir como preferir, já que, como dito, somos colocados no meio de uma situação em andamento e a já citada IA não tem o menor interesse em explicar o que está acontecendo. Afinal, somos descartáveis, lembra?

Em um processo de tentativa e erro, mas não daqueles chatos e punitivos que desaceleram o progresso, vamos entendendo o que fazer. Máquinas nas naves permitem, por exemplo, desabilitar o sistema de segurança, exibir todos os itens no mapa e, o principal, renovar o estoque de oxigênio. Sempre temos um contador sobre nossas cabeças, mais uma indicação de que a ideia é ser rápido e objetivo, caso contrário, o resultado é o sufocamento.

Void Bastards

Ao morrer, perdemos o personagem, que é substituído por outro, mas não os itens recuperados. A sensação não é de perder progresso, mas sim, de que o campanheiro vacilou e, agora, é missão de outro continuar o que ele começou. Void Bastards, entretanto, é um game procedural, o que significa que ele sempre será diferente; as naves do vazio estão à deriva, mas se mexendo, e o layout de uma jamais será igual ao da outra.

A dificuldade pode se tornar desbalanceada, mas o jogo nunca é punitivo, dando sensação de progressão mesmo com permadeaths.

Essa aleatoriedade deixa o jogador sempre ligado, pois qualquer nova situação pode surpreender. Algumas naves, por exemplo, têm falhas no sistema elétrico, obrigando o protagonista a religar tudo, enquanto outras nem sempre entregam exatamente o que prometem. Informações podem estar desatualizadas ou incompletas, e cabe ao usuário ter a coragem de enfrentar as coisas.

Na medida em que o jogador vai entendendo como tudo funciona, Void Bastards também o vai desafiando mais e mais. Isso pode tornar a dificuldade um pouco desbalanceada às vezes, principalmente quando o sistema procedural nos coloca como únicos caminhos naves cheias de oponentes bem mais potentes que os equipamentos que temos em mãos. Lembra-se da decisão entre covardia e sobrevivência? Ela serve nestes momentos. A ideia de que todos são descartáveis também, afinal de contas, “matar” um bastardo para mexer o caldo do jogo também pode ser um caminho.

Void Bastards

De forma a evitar uma repetição e marasmo inerentes de um título de submundo espacial, Void Bastards investe em um estilo cartunesco. A história, pincelada na medida em que vamos obtendo os equipamentos necessários para seguir em frente, também é contada em quadrinhos animados, assim como as recorrentes animações relacionadas à morte de um personagem e a criação de outro. Não estamos falando de um game focado na narrativa, mas ela está presente para compor o pacote e se encaixar de forma adequada com a proposta.

O uso de cores sólidas e cenários marcantes também serve como elemento de um jogo em que absolutamente tudo é voltado para a jogabilidade. A sensação do falso amigo aparece aqui com força, afinal, já andamos bastante por cenários aparentemente familiares, mas por causa do aspecto procedural do jogo, tudo sempre é diferente.

Void Bastards

A mistura de elementos bem coordenados de jogabilidade e um estilo quase único faz de Void Bastards um dos games de tiro mais interessantes deste ano. É na mistura de situações e caracteristicas conhecidas com um salto no vazio desconhecido citado no título do game que aparece o coração de um jogo estiloso e criado com atenção aos detalhes, um tempero que o torna, como dito, viciante.

Void Bastards é um jogo que bebe na fonte de uma indústria que seus criadores, veteranos, ajudaram a construir. Ao contrário de sua própria premissa e tambem do próprio mercado, em que logo depois do atual, há sempre o próximo, esse não é um game que você vai conseguir deixar de lado tão rapidamente, pois sempre vai querer saber o que vem a seguir. Hoje, são poucos que conseguem tal proeza.

O jogo foi testado no PC, em cópia cedida pela Humble Bundle.