O que você faz quando não tem internet? Conversa com quem está em volta, como diz a placa daquela cafeteria hipster e meio avessa à tecnologia que você encontrou no Instagram? Vai ler um livro, jogar um game single player ou dar uma volta debaixo do sol? E se o mundo, de repente, ficasse completamente sem conexão, não com a internet, mas entre as pessoas, seus elementos e, principalmente, a própria realidade?
Como ficariam os conflitos mal resolvidos, os amores distantes e os laços familiares se o mundo, de repente, se tornasse uma terra arrasada, dominado por seres que você não entende muito bem o que são, mas sabe serem completamente assustadores. Tudo começou com uma explosão, mas essa metáfora também vale para eventos; em um rompante, em um segundo, em um único ato, tudo pode ser diferente, para sempre. Porém, sempre é possível mudar de novo, provavelmente não retornando ao passado, mas garantindo um novo amanhã.
Em Death Stranding, você é o responsável por esse recomeço. O novo game de Hideo Kojima aposta em metáforas, elementos, discursos e, principalmente, histórias, para nos colocar no papel de um ponto de luz em um mundo, literalmente, de trevas. Mesmo a nossa própria iluminação é falha, às vezes, e enquanto tentamos buscar um rastro de heroísmo difícil de ser alcançado, também temos que lidar com os próprios conflitos e limitações na mesma medida em que eles precisam ser deixados de lado por um bem maior.
É nessa balança que o designer e criador de Metal Gear nos entrega uma fábula tecnológica e até mística, mas que dialoga diretamente sobre o mundo de hoje. Se o Guns of the Patriots já falava sobre fake news, manipulação de dados e vigilância há 20 anos, Death Stranding dá um olhar futurístico para problemas de hoje, em que a criação de laços e a busca pela virtude se tornou muito mais complexa e difícil. O game, porém, faz questão de nos lembrar que isso ainda é possível.
Durante todo o processo de desenvolvimento, muito se perguntou sobre o que, exatamente, seria Death Stranding. Um jogo de ação, terror, espionagem, mundo aberto, guerra? Seria difícil definir o título em um único gênero, é verdade, apesar de seus pilares básicos o aproximarem um bocado dos jogos de sobrevivência, aventura e, também, dos simuladores de entrega. Sim, esse é o tipo de mistura bizarra presente em um game que tem um pouco de tudo, mas pode ser dividido claramente em duas partes de igual importância, totalmente conectadas, mas diferentes.
Death Stranding é um dos mais importantes jogos dessa geração, com um mundo aberto onde cada detalhe faz sentido e nada parece deslocado, enquanto a história é contada por metáforas e dialoga com nossa realidade.
Primeiro, então, falaremos do aspecto mais palpável e, pessoalmente, fácil de analisar, que é a jogabilidade. Em Death Stranding, andamos pelo mundo na pele de Sam Porter, um entregador a serviço da Bridges, uma empresa ligada à reconstrução dos Estados Unidos após um evento catastrófico que, de certa forma, pressionou o botão “desligar” do mundo. Agora, é ele um dos principais agentes responsáveis por virar essa chavinha.
O personagem interpretado por Norman Reedus é, também, um indivíduo especial. Quando o cataclisma aconteceu (e aqui nos referiremos a ele desta maneira, como forma de evitar spoilers), se criou um abismo entre o mundo dos vivos e o dos mortos, chamados de BPs, com Sam sendo um dos indivíduos capazes de trafegar no limiar entre essas duas realidades. É isso que o torna tão importante, como se as relações familiares com o pouco que restou de liderança nos Estados Unidos também não fossem motivo o bastante para ele estar envolvido.
A missão dele e, por consequência, também a sua, é devolver o pouco de civilidade que, se acredita, resta em um mundo devastado e vazio, onde apenas terroristas e ladrões de carga têm a coragem de transitar. É no meio deles que o jogador passa em sua tarefa de levar mantimentos, artigos pessoais, itens de colecionador, medicamentos e até pizzas ou cadáveres; mais do que isso, o objetivo maior é reconectar a América, levando contato, tecnologia e, principalmente, esperança aos cantos mais isolados do país.
Você começa a pé e tendo de aprender a lidar com conceitos realistas como o peso da carga nas costas de Sam, a velocidade do passo e, também, entendendo como o terreno acidentado desse mundo pode se tornar um pouco menos agressivo com o auxílio de outros entregadores que também estão desempenhando a mesma função. Death Stranding não tem modo multiplayer, mas é um jogo feito para ser jogado online. E acredite, isso vai mudar muita coisa para você.
Aos poucos, novos itens e artigos que facilitam a jornada de Sam vão sendo liberados enquanto ele avança nas conexões e conhece novos personagens. Um esqueleto fortificado permite carregar mais carga ou dar mais estabilidade e um spray permite corrigir o dano causado pela chuva temporal que degrada tudo em que encosta. Armas e bombas preparadas de forma “artesanal” (novamente, falamos assim de forma a evitar spoilers) podem servir como defesa contra os seres do outro plano. A ideia, entretanto, não é exatamente entrar em combate, mas sim, reagir a um ataque de forma a sair dali o mais rapidamente possível. Afinal de contas, conexões não são criadas na base da porrada.
Fragile (Lea Seydoux) é a entregadora de outra companhia desse mundo devastado, com uma história tão terrível quanto os próprios desígnios desse universo. É ela, também, que libera a viagem rápida, enquanto Deadman (Guillermo Del Toro) é o especialista médico que ensina novas interações e possibilidades abertas pelo vínculo entre Sam e BB, o bebê de proveta que também possui uma misteriosa e pouco compreendida conexão com o outro lado.
E na medida em que as entregas vão acontecendo e o mundo vai sendo desbravado, surgem os dois grandes obstáculos dessa jogabilidade também motivada pelas metáforas e totalmente conectada à trama desse mundo. Em Death Stranding, mesmo os aspectos de jogabilidade estão ligados diretamente à construção do universo, e por isso mesmo, soam completamente estranhos os momentos em que Kojima tira o controle de nossas mãos para mostrar que existem perigos pelo caminho.
Como dito, o combate contra os BPs assume ares reativos e não ofensivos, com a ideia sempre sendo escapar o mais rápido possível da área em que eles estão. O game, entretanto, faz questão de ativar uma incômoda câmera lenta sempre que a chuva começa ou um inimigo está nos arredores. Novamente, o objetivo nestes casos é sair dali, mas o game sempre fará com que você pare justamente no ponto mais crítico, perdendo momentum quando você mais precisa dele.
Hideo Kojima não cria um gênero, mas sim, uma mistura de boas experiências próprias e também do mundo do entretenimento como um todo, junto com um ímpeto por ousar. Vamos deixar que o tempo decida sobre o potencial disruptivo de Death Stranding.
Isso também vale quando estamos a bordo de veículos, que já sofrem por si só com problemas de dirigibilidade e física. Claro, estamos percorrendo terrenos sempre acidentados e mesmo motos ou caminhonetes feitas para esse tipo de condição sofrerão um pouco para avançar. Não tanto, porém, quanto vemos em Death Stranding, e de novo, a aproximação de um inimigo ou o começo da tempestade apenas fazem com que a gente pare no lugar onde estamos, tendo de acelerar novamente ou gastar bateria extra com o turbo no exato momento em que tudo o que mais queremos é dar o fora dali.
Kojima parece saber disso, tentando compensar tais falhas com a adição de equipamentos que facilitam a vida ou indicações de qual o melhor plano de ação aparecendo sutilmente nas falas dos personagens. O problema é que, muitas vezes, tais elementos são apresentados em uma interface poluída e cheia de elementos ou são acessíveis por meio de um nó nos dedos, como se os designers quisessem fazer mais do que os botões disponíveis no joystick permitem. É um aspecto complexo como o próprio mundo, é verdade, mas que também acaba dificultando encontrar o dado que o jogador precisa ou a ação que deseja realizar.
É o tipo de coisa que preenche toda a tela e a enche de letrinhas, quase a transformando em uma planilha de Excel, mas que será ignorada assim que o jogador entender como tudo funciona. Em vez de ler uma parede de texto, ele pode simplesmente ouvir a narração que aparece sempre que uma nova missão é aceita ou um item inédito fica disponível, com a salada de textos apenas fazendo mal à usabilidade geral de Death Stranding.
Quem quiser ler e mergulhar nesse mundo, porém, terá uma quantidade absurda de material. Aos moldes de praticamente todas as obras de Kojima, essa também traz centenas de arquivos, itens coletáveis e linhas de diálogo que contam mais sobre o mundo e podem ser acessados pelo jogador a qualquer momento após a liberação. E-mails estão sempre chegando, assim como os achados de Deadman, Mama (Margaret Qualley), Die Hardman (Tommie Earl Jenkins) e todos os outros ficam plenamente disponíveis para quem quiser se aprofundar, como já era de esperar.
A história de Death Stranding é também a jornada do próprio Hideo Kojima, que partiu do fracasso pessoal com a interferência da Konami em Metal Gear Solid V e o cancelamento dolorido de Silent Hills para o que, com toda a certeza, é sua obra-prima em Death Stranding. Acredite, você não vai se importar tanto com os problemas de usabilidade e jogabilidade diante de tudo oque há para ver, explorar e fazer no título.
São, facilmente, algumas dezenas de horas em um mundo com, literalmente, centenas de missões entre momentos principais e side quests. Há certa morosidade na progressão do enredo, é verdade, e uma repetição incessante de alguns conceitos e discursos de motivação, mas não é como se o título enchesse linguiça, também. Nada está lá por acaso e há sempre uma conexão clara (ou nem sempre) para todas as coisas que acontecem em Death Stranding.
Para cada corte de diálogo porque o personagem está falando a mesma coisa pela quinta vez, entretanto, há uma cena impactante, daquela que vai ficar na memória. E, mais uma vez, e nunca será suficiente, há de se enaltecer o universo construído por Hideo Kojima em Death Stranding, que usa seus próprios conceitos surreais para chocar e gerar reações de emoção, ódio e incerteza.
As metáforas estão em todos os lugares e, pouco a pouco, o jogador vai percebendo que apenas fazer a ligação entre as cidades e os vilarejos deste país pode resolver alguns dos problemas pontuais, mas faz parte de um processo bem mais profundo de abismo social e unificação. Isso sem falar, claro, nos sempre existentes e nem sempre esperados plot twists, com momentos que fazem tudo virar de ponta-cabeça.
O game tira o controle das mãos do jogador, o fazendo parar para indicar um sinal de perigo quando, na verdade, tudo o que ele quer é fugir. A dirigibilidade ruim dos veículos também não ajuda.
Estamos falando de criar pontes em um mundo vazio, que o jogador sempre explorará sozinho e se comunicará com a maior parte de seus agentes por meio de hologramas. Da mesma forma, há a sensação de estar sempre conectado quando notamos que outra pessoa já venceu aquele desafio à frente e deixou dicas ou artigos para serem coletados e ajudar os próximos. Tudo é, ao mesmo tempo, distante e íntimo.
A chuva destrói o que está abaixo dela, mas ao mesmo tempo, novas estruturas são construídas, de forma diferente. O caminho para um mesmo lugar nem sempre seguirá as mesmas rotas na medida em que Sam evolui e aprende a lidar com os obstáculos, mas aquela sensação de familiaridade também estará presente simultaneamente, principalmente ao chegarmos em um lugar conhecido após perrengues, quedas, deslizamentos e combates.
É difícil abraçar o mundo de Death Stranding e todos os seus discursos e metáforas, que dialogarão de maneiras diferentes de acordo com a bagagem carregada por cada usuário. Estes são elementos sobre os quais, na realidade, não podemos falar aqui nem deveríamos, afinal de contas, este é um universo para ser vivido e desbravado. Os spoilers, simples revelações de história, não importam tanto quanto o desenrolar desse mundo, que é o verdadeiro motivo que torna o título especial.
Sem coleira e com plena liberdade criativa para fazer o que mais sabe, e ainda fazendo as pazes com o próprio passado, Hideo Kojima entrega aqui uma experiência surpreendente, mais pelo mundo que pelas mecânicas. É uma jornada longa e, muitas vezes, extenuante, mas que nos levará ao cerne de algo que pode parecer incompreensível de começo, mas se prova cada vez mais familiar e reconhecível na medida em que nos envolvemos.
O designer japonês não cria um gênero, como arrogantemente fez questão de falar mais de uma vez, mas sim uma mistura de boas experiências próprias e também do mundo do entretenimento como um todo, junto com um ímpeto por ousar e contar uma história multifacetada que não teme levar o tempo necessário para ser contada. Isso para não dizer escrita, afinal de contas, o jogador será parte integrante disso tudo.
Da mesma forma que as nossas escolhas do passado nos trouxeram para onde estamos hoje, cada entrega feita por Sam leva o mundo adiante e contribui, às vezes mais, às vezes menos, para o castelo de Death Stranding. Há pensamento em cada detalhe e não há nada fora do lugar neste que, sem dúvida nenhuma, é um dos jogos mais ricos e importantes do ano. O hype, mais do que nunca, é real.
O que temos em mãos é algo impressionante e, a seu modo, diferente, ainda que apoiado em alicerces reconhecidos e múltiplas referências. Vamos deixar que o tempo, porém, solidifique o potencial disruptivo e inovador de Death Stranding, pois mesmo após dezenas de horas com ele, ainda há muito mais o que absorver, pensar e, principalmente, mudar.
O game foi analisado no PS4, em cópia cedida pela Sony. A análise também foi publicada no Canaltech.