Os primeiros momentos de Someday You’ll Return contrastam com a proposta do game em si. Estamos no controle de Daniel, que parte para as matas fechadas da Moldávia em busca de sua filha desaparecida. Entretanto, o clima inicial não é de preocupação nem desespero, mas sim de insatisfação e até mesmo um certo desdém pela garota, que mais uma vez some e obriga os pais a irem atrás dela.
É um enredo retirado diretamente de clássicos antigos como Silent Hill ou recentes, como Resident Evil 7, influências que a desenvolvedora CBE Software não faz nenhuma questão de esconder em seu material de divulgação ou no próprio clima do game. Criado com fundos de um programa de fomento ao desenvolvimento de games da União Europeia, Someday You’ll Return é uma mistura de sensações e referências, algumas estranhas, outras peculiares, com sabores muitas vezes amargos onde deveriam ser saborosos e acertos um tanto inusitados.
À primeira vista, temos o walking simulator comum, com exploração de cenários e as tradicionais caminhadas que nos levam aos momentos-chave da história. Trafegar por essa floresta, porém, não será simples, afinal de contas, os demônios do passado de Daniel habitam este lugar onde ele desejou jamais retornar. Com a obrigação, vem também uma história recheada de alucinações, alegorias religiosas e uma sensação de deslocamento, como se tudo estivesse errado, fora do tempo ou simplesmente insano.
Temos um protagonista detestável, para dizer o mínimo, com uma dublagem medíocre e personalidade sebosa. Tanto que, em uma surpresa para alguns, um dos finais possíveis para Someday You’ll Return é, simplesmente, ir embora, abandonando carro e filha na floresta, e retornando ao lar para jogar vídeo game. Fim de jogo e sobem os créditos em uma brincadeira sempre engraçada de se ver, mas que também faz perceber que o título é bem mais do que aparenta ser.
Longe do clichê do estilo de jogabilidade e do gênero, temos boas ideias que transformam Someday You’ll Return em uma experiência que faz ter vontade de seguir em frente, apesar do resto. E um dos primeiros exemplos disso é o sistema de manipulação de itens, permitindo ir além de apenas visualizar e mexer nos artigos. No game, é possível alterar estruturas, consertar artigos eletrônicos e até montar certos artigos utilizando ferramentas e matéria-prima encontrada pelos cenários.
A força de Someday You’ll Return está no que o título tem atrás das cortinas. Como game de terror, a obra acaba se saindo como um grande título de exploração, tanto da floresta quanto do macabro.
O método não é o mais direto ao ponto, mas não deixa de ser intuitivo e, claro, realista. Quando você precisa desaparafusar algo, que ferramenta usa? Qual é o item utilizado para bater pregos ou escavar na madeira? O inventário de Daniel tem tudo isso, mas você efetivamente precisará pegar a chave de fenda para abrir um equipamento ou buscar os pregos e a madeira para criar uma escada usando o martelo que o protagonista carrega consigo.
Da mesma forma, outros enigmas se desenham da mesma forma. O personagem sabe precisar de um fogareiro, mas encontra as peças separadas, cabendo ao jogador montar o item. Em outro momento, é preciso trocar as pilhas de uma lanterna, mas não basta apenas achar os artigos; é preciso efetivamente executar a ação. Pode parecer chato quando lido aqui, mas na jogabilidade de Someday You’ll Return, se trata de uma maneira diferente de pensar o próprio design e, principalmente, adicionar exploração ao inventário, um microcosmo que, normalmente, passa despercebido.
O trabalho de game design de Someday You’ll Return apresenta uma sutileza como poucas vistas por aí, principalmente quando se fala de um jogo independente. Ao mesmo tempo em que apresenta um desafio por si só no caminho a seguir e na resolução de enigmas, essa jogabilidade inusitada também se mistura de forma intrínseca em todos os elementos da jogabilidade, mais um motivo que nos leva adiante ainda que o panorama geral não seja tão agradável assim.
Vamos ser claros, a trama de Someday You’ll Return é batida, quase óbvia, mas seu desenrolar não é. Entre os diálogos poeticamente enfadonhos de uma aparição que acompanha Daniel a cada ato do game ou cenas nada instigantes em que devemos escapar furtivamente de seres amorfos que nos matam com um único ataque, é a jornada que acaba interessando mais.
Isso se deve, por exemplo, à descoberta de diários da filha de Daniel, Stella, e os relatos de maus tratos pelas mãos de colegas de acampamento. Tais situações refletem aquelas passadas pelo próprio personagem, mas no sentido oposto – muitas vezes, ele foi o bully, e de algumas formas, continua sendo, o que torna sua figura ainda mais difícil de ser apreciada. O enredo, muitas vezes, é contado do ponto de vista de diferentes crianças, dando aquela sensação familiar e incômoda de que a história está se repetindo.
A preocupação com a garotinha nos leva para a frente, assim como a vontade de ver o que mais a CBE Software será capaz de fazer com a fórmula. Apesar de independente, Someday You’ll Return tem pelo menos uma dezena de horas, que podem ser expandidas caso o usuário deseje caminhar pela floresta apenas para ver o que encontra. Em alguns casos, esse passeio pode ajudar a revelar trilhas que serão exploradas à fundo no futuro, em outros, revelará bugs de um título que parece não entender que o jogador vai querer ir além naquela que é a principal força da jogabilidade.
O trabalho de reconstrução virtual da floresta moldaviana impressiona ainda mais quando, diante de QR Codes encontrados nos cenários, usamos nosso próprio celular para descobrir que aquela igreja, monumento ou marco existe de verdade. Aparições fantasmagóricas, incêndios que surgem do nada e crianças desaparecidas, esperamos, não existem por lá, mas há um quê de envolvimento adicional quando percebemos estarmos jogando um título que acontece em um lugar real – e sim, se quiser, você pode usar o mapa real do seu celular como elemento de navegação, ainda que, em escala, o cenário de Someday You’ll Return seja menor que sua contraparte de verdade.
O game tem suas formas de nos levar adiante, apesar do protagonista detestável e da trama clichê. A exploração e os diários, bem como os enigmas bem criados, nos motivam a avançar e descobrir o que está à frente.
Fora do bolso de Daniel, também há muito a se explorar e, novamente, de um jeito inusitado. Someday You’ll Return até apresenta objetivos e direcionamentos, que aparecem na tela e também são anotados em um diário para que o jogador não se perca. Por outro lado, esqueça os tradicionais waypoints e indicadores de caminho a seguir. Na sua vida comum, eles existem? Aqui também não, e o auxílio artificial sai de cena para a entrada de um dos aspectos mais impressionantes do game: a floresta.
A mata é fechada e opressora, como sempre, mas aqui, também exigirá uma boa dose de atenção do jogador. A orientação se dá por mapas e marcadores, mas sem a tradicional marcação de onde o jogador está. O GPS do celular de Daniel deixa de funcionar logo no início da trama e, ao usuário, restam apenas as indicações coloridas de rotas e a ideia de que é preciso chegar a algum lugar. O caminho, entretanto, é você quem faz.
Uma atualização pós-lançamento desfigurou o aspecto lúdico de alguns elementos do game e removeu horas de conteúdo, mas não resolveu alguns dos bugs e problemas reais.
Os visuais impressionam, com um jogo de luz e sombra aterrador e natural. Por mais que não exista ciclo de dia e noite, não dá para não sentir inquietude ao perceber que se está andando há algum tempo pela mata sem encontrar um novo marcador, enquanto o ambiente parece estar se tornando mais escuro. Claro, temos um caminho a seguir, mas a forma é tudo, menos linear. É melhor prestar atenção, caso contrário, você ficará perdido rapidamente.
Essa ausência de indicadores artificiais também se aplica à busca por itens e objetivos da história. Ao chegar a um acampamento, por exemplo, você terá que encontrar o caminho por si só e se virar para achar itens e chaves, muitas vezes sem qualquer direcionamento. Não estranhe se encontrar um artigo aparentemente aleatório, que somente será útil bem mais adiante, ou uma porta trancada sem possibilidade de abertura. Tudo tem uma explicação e o game segue seu próprio ritmo, que não é o mesmo de Daniel e, com certeza, também não o do jogador.
Chama a atenção, ainda, um sistema de criação de poções que envolve a coleta de plantas e a fabricação quase literal das misturas. Usando receitas, os jogadores saberão quantidades e a necessidade de triturar ou ferves raízes, folhas e pétalas, tendo de seguir as indicações com exatidão. O bom uso das ervas dá vantagens na jogabilidade, ajuda a ultrapassar obstáculos e, em alguns casos, é um elemento lúdico e envolvente para dar prosseguimento à história.
Os puzzles dão o toque final de uma mistura como poucas, com enigmas interessantes e inteligentes que também se aproveitam da falta dos indicadores artificiais do game. Prepare-se para traduzir escritos antigos com as próprias mãos ou anotar códigos no caderno, como se fosse o próprio protagonista – afinal, somos mesmo. Ou não?
Someday You’ll Return não é uma obra perfeita e apresenta seus problemas, principalmente no que toca o quão detestável é seu protagonista e também a barriga criada pelos diálogos enfadonhos e cheios de pseudoalegorias que, muitas vezes, não levam a muita coisa. São elementos de terror manjados que não agradam tanto assim, mas surgem como uma imposição narrativa e, principalmente mercadológica, assim como a atualização pós-lançamento que desfigurou o aspecto lúdico de alguns elementos do game.
Em um update, a CBE Software adicionou uma poção que torna Daniel quase invisível aos seres das profundezas, tornando os momentos de furtividade uma inconveniência tanto quanto em sua versão original, mas por um motivo diferente, já que agora deixam de fazer sentido. O mesmo vale para a remoção de puzzles e elementos de exploração que, de acordo com a desenvolvedora, reduziu o título em algumas horas. Onde há problemas efetivos, porém, a produtora não mexeu.
A revisão aconteceu em meio ao processo desta análise e nos obrigou a retomá-la desde o início para verificar o que mudou. E na tentativa de melhorar o game, a desenvolvedora se esqueceu de aspectos realmente ruins, como as falhas no carregamento de cenários que fazem com que o jogador simplesmente caia no limbo caso siga por um caminho distante do planejado pelo game e o fato de alguns itens terem prompts de coleta que aparecem fora de lugar ou não surgem de maneira nenhuma. Em ambos os casos, recarregamentos a partir do último checkpoint são necessários e adicionam um sentimento de frustração.
Nesse processo, também notamos que a verdadeira força de Someday You’ll Return não está naquilo que a produtora alterou, mas sim, no que o título tem por trás das cortinas e, porque não, apresenta naturalmente. Como game de terror, a obra acaba se saindo como um grande título de exploração, tanto da floresta quanto do macabro. E isso é bom, desde que encarado da maneira certa.
O game foi analisado no PC, em cópia cedida pela CBE Software.