A mistura apresentada em Velozes e Furiosos Encruzilhada (do inglês Fast and Furious Crossroads) é, no mínimo, inusitada. Temos, mais uma vez, um jogo baseado na série cinematográfica de sucesso, que deveria, inclusive, ter saído junto com o novo filme, se o coronavírus não tivesse estragado todos os planos. Porém, em vez das desenvolvedoras pequenas que normalmente estão envolvidos em projetos desse tipo, muitas vezes mais promocionais do que qualquer outra coisa, estão nomes bem reconhecidos do mundo dos títulos de corrida.
Estamos falando da Slightly Mad Studios, desenvolvedora da série Project CARS e recém-adquirida pela Codemasters, outro estúdio forte no mundo da velocidade. Distribuindo, está a Bandai Namco, que normalmente não aparece envolvida em títulos dessa categoria. Uma união que coloca ambas fora de suas zonas de conforto, mas que também aparenta ser o tipo de combinação que daria uma boa liga. Ao jogarmos, porém, questionamos se realmente dava para esperar algo assim.
A sensação que surge logo nas primeiras horas de Velozes e Furiosos Encruzilhada é de fim de festa, e isso, talvez, explique a falta de cuidado com um game que tenta simular as cenas vistas nos filmes com aquele nível de absurdez que já é de esperar. E a resposta está justamente no parágrafo anterior: estamos olhando para um game que marca os últimos momentos da Slightly Mad independente, envolvida no desenvolvimento de um jogo altamente afetado pela pandemia e que, provavelmente, não teve o melhor dos orçamentos e equipes. Uma ideia que faz mais sentido ainda quando pensamos que Project CARS 3 chega com o mesmo tipo de expectativa.
Velozes e Furiosos Encruzilhada traz tantos momentos constrangedores, bizarros ou simplesmente toscos que a experiência acaba sendo leve e, surpreendentemente, divertida.
Em uma primeira olhada, o jogo para PS4, Xbox One e PC soa como algo da geração passada, em visual e, principalmente, estilo. Encruzilhada soa como uma relíquia da época em que os estúdios começavam a olhar para os games como uma extensão de seus meios, investindo em títulos que até têm cara de serem profundos mas, na realidade, não alteram seus rumos centrais nem apresentam informações relevantes, Se é que podemos falar em cânon quando o assunto é Velozes e Furiosos.
O foco central da história são as personagens Vienna (Sonequa Martin-Green, de Star Trek Discovery e The Walking Dead) e Cam (Asia Kate Dillon, de Orange is the New Black e John Wick 3: Parabellum). Elas são mecânicas de mão cheia, mas também com um passado no outro lado da lei, que afeta até hoje seus envolvimentos e parcerias. É por conta desse tipo de negócio mal arranjado que elas acabam se envolvendo com uma máfia secular, que data ao período das Grandes Navegações, e acabam em uma trama que coloca os Estados Unidos em risco e une seus caminhos ao da Família do cinema.
Modelos de personagens mal acabados tornam Roman tem um dos melhores do título, enquanto Toretto aparece desproporcionalmente inchado e Letty parece estar se recuperando de uma crise de caxumba.
Da mesma forma que as personagens inéditas são interpretadas por atrizes de cinema, os personagens de Velozes e Furiosos também aparecem no game. Letty Ortiz (Michelle Rodriguez) acaba sendo o ponto de ligação entre a dupla e Dominic Toretto (um Vin Diesel claramente nada a fim de participar das dublagens) em missões que acabam envolvendo também o debochado Roman Pierce (Tyrese Gibson) e colocando todos em toda de colisão com Ormstrid, outro personagem inédito interpretado por Peter Stormare em mais um papel de maluco.
Olhar os modelos dos três personagens importados do cinema já evidencia estarmos diante de um game mal acabado. Enquanto Roman tem um dos melhores modelos do título, com direito a texturas de alta qualidade com manchas na pele, tatuagens em relevo e até uma barba mal feita, Letty parece estar se recuperando de uma crise de caxumba enquanto Toretto aparece desproporcionalmente inchado e com texturas, às vezes, que aparentam qualidade inferior, quase como se saído de um título de PlayStation 3.
O restante do game, também, apresenta essa mistura de altos nem tão grande assim e baixos absolutos. A base de Velozes e Furiosos Encruzilhada, claro, são as corridas, mas como forma de dar um toque de ação à mais, a Slightly Mad opta por veículos com “poderes”, com cada personagem tendo uma característica própria e útil em momentos diferentes das cenas. Cam, por exemplo, é a hacker, enquanto Letty foca no ataque a capangas usando lâminas que saem das laterais das rodas de seu veículo.
Tais habilidades, porém, são usadas de forma repetitiva ou simplesmente ruim, como na péssima ideia de transformar o hacking em um desafio de QTEs em alta velocidade ou obrigar o jogador a pressionar sucessivamente o botão para utilizar um gancho enquanto desvia do tráfego e de obstáculos pelo caminho. Isso sem falar em um esquisitíssimo strafe, com os veículos sendo capazes de dar um “totozinho” de lado nos oponentes, essenciais nos momentos em que precisamos tirar inimigos de combate e que se repetem ao longo de todo o título.
Existem, porém, momentos que saltam aos olhos e que vão chamar a atenção de quem se comprometer a seguir até o final da aventura, que dura cerca de quatro horas. Destaque, por exemplo, para a fuga de uma avalanche no deserto do Marrocos, que apesar de ter pedras que se comportam como os aerólitos de Chapolim, constitui uma cena bem divertida, assim como a perseguição final e completamente absurda envolvendo um foguete espacial que está rumando em uma reta infinita em direção a Nova Orleans.
O game se limita a reproduzir cenas já vistas nos filmes ou fazer menções a elas, com carros que tem “poderes” especiais que se resumem a QTEs em alta velocidade ou combates repetitivos e bizarros.
São respiros de interesse em meio a cenas que são, literalmente, trazidas dos filmes e apenas reproduzidas para que o jogador possa participar. A ação acontece em cenários sem personalidade nem características próprias, que mudam de acordo com a localização geográfica que a história deseja retratar. E no roteiro básico e sem grandes destaques, inúmeras menções a diferentes momentos enfrentados pela Família, afinal de contas, eles realmente estão tendo deja vus e passando pelos mesmos perigos novamente.
Mais arriscada para os jogadores, entretanto, é a performance do título em si, que sofre com quedas na taxa de quadros por segundo e problemas de carregamento. Acostume-se a ver carros inimigos desaparecendo na sua frente e brotando mais adiante, como se você estivesse jogando online e com direito a missões que falham por motivos assim. Isso sem falar, claro, nas paredes invisíveis criadas para que o usuário siga pelo caminho determinado pelos desenvolvedores (e somente por ele).
Falando em online, aliás, Velozes e Furiosos Encruzilhada também possui uma porção multiplayer, que remete às principais cenas de ação da campanha. Aqui, os carros são como personagens que podem receber experiência e melhorias de acordo com a vitória nas operações, enquanto os usuários são mocinhos ou bandidos que devem dominar, destruir ou proteger pontos ou veículos específicos em grupos de três contra três.
Nesta análise, porém, não falaremos do funcionamento destas fases em si pelo simples fato de que foi impossível jogá-las. Durante nosso período de testes, mais de uma semana depois do lançamento, simplesmente não foi possível encontrar partidas online funcionais, e na única vez que o lobby foi completado, a conexão caiu antes mesmo que a batalha começasse. Fica difícil, até mesmo, saber se o problema está nos servidores ou em uma suposta ausência de usuários.
No final das contas, o mais impressionante é que Velozes e Furiosos Encruzilhada acaba constituindo uma experiência divertida. Não é o tipo de entretenimento que faça valer o full price que vem sendo cobrado por ele nos consoles e PC, longe disso, mas em suas quatro horas de duração, existem momentos constrangedores, bizarros ou simplesmente toscos o suficiente para tornar a experiência leve e descerebrada no bom sentido.
Tudo o que se espera da franquia cinematográfica está lá, ainda que apresentado de forma meio tosca. A história não é das melhores, muito menos a jogabilidade os gráficos, mas o que temos aqui é aquele “bom jogo ruim”, principalmente se experimentado ao lado de amigos ou criadores de conteúdo que também são fãs da saga. Um game para não se levar a sério, no final das contas, e se você conseguir fazer isso, acabará conseguindo extrair o pouco de qualidade que há aqui.
Caso contrário, passe longe deste que, sem dúvida nenhuma, é um dos piores jogos de corrida da geração, se é que ele pode ser incluído de verdade no gênero. Uma mancha negra no currículo da Slightly Mad antes de seu suposto momento mais alto e, também, uma forma muito negativa de encaminhar o fim de sua parceria de anos com a Bandai Namco.
O jogo foi testado no PlayStation 4. Esta análise também foi publicada no Canaltech.