Os hackers são parte integrante do imaginário popular, com sua capacidade de digitação assustadoramente rápida e o poder de realizar ataques em, literalmente, qualquer lugar e a partir de (ou em) qualquer dispositivo. Não é bem assim na vida real, claro, mas isso não impediu o tema de dar origem a uma das franquias mais divertidas e interessantes da Ubisoft, que apesar de ter patinado em seu primeiro título, parecia ter chegado às alturas que sempre almejou em sua sequência.
Prova disso é que, com Watch Dogs: Legion, a empresa investe mais no que está ao redor das mecânicas principais de hacking e invasão de sistemas do que, efetivamente, no cerne da questão. Estamos em um futuro não muito distante, iluminado por luzes de neon e cheio de traquitanas tecnológicas, mas que não parece tão fictício assim, enquanto o poder para mudar o povo emana do povo e, literalmente, de qualquer pessoa.
Como o nome já indica, e a referência ao grupo hacker Anonymous também, a legião é a maneira de levar o combate diretamente ao coração da mistura opressora de governo e corporativismo em que Londres se transformou — em um ensejo que chega a ser irônico levando em conta o estado atual da companhia que o lança (ou não). Após um atentado terrorista que deixou milhares de mortos e abriu crateras em diversos pontos da cidade, os Dedsec foram desmantelados, mas uma fagulha acaba os trazendo de volta. A missão é limpar o próprio nome, entender o que aconteceu e, acima de tudo, restaurar a liberdade da população.
Watch Dogs: Legion é o título mais aberto da franquia em variações e maneiras de se fazer as coisas. Tudo depende da forma como o jogador deseja agir e, principalmente, dos agentes que ele possui à sua disposição.
É esse o ensejo que abre as portas da principal característica do novo game, no qual, literalmente, qualquer NPC pode se tornar um agente da luta. Se nos títulos anteriores da série Watch Dogs os jogadores andavam de celular na mão, escaneando os populares em busca de dinheiro ou evidências, em Legion, a ideia é caçar aqueles mais favoráveis a se juntarem à causa e, também, os que possuem as habilidades necessárias para as diferentes missões e desafios que se colocam adiante. Esse é, sem dúvida, o ponto alto do game.
Basta explorar o cenário para encontrar as diferentes abordagens possíveis, desde invasões remotas usando câmeras e outros sistemas até armadilhas que podem incapacitar inimigos e câmeras para tornar uma entrada pela porta da frente possível. Dá para atacar por cima ou pelos flancos, usando aranhas-robôs para abrir portas ou drones de carga para que o agente em ação seja entregue de bandeja, dos céus à porta da sala de servidores da qual precisa extrair informações.
Dá para entrar atirando e passando por cima de tudo, também, se você assim preferir. Ou então fazer o total oposto, recrutando um médico antes de realizar uma missão de invasão em um hospital, no qual ele tem passe livre para entrar e sair tranquilamente. O mesmo também vale para seguranças e agentes da Albion, desde que, claro, mantenham a discrição e não entrem em áreas restritas (ou façam isso de forma furtiva). A não ser que você tenha um alto comandante agindo como espião, claro.
A Ubisoft faz isso, também, sem ser restritiva, o que significa que você até pode tentar partir para a porrada com uma garotinha hacker ou tentar uma abordagem furtiva usando o ex-militar com sangue nos olhos. Claro, as coisas sempre serão mais fáceis com o perfil adequado, mas Legion segue a velha sabedoria de que “é melhor feito do que perfeito”. O que importa, no final das contas, é desafiar o sistema e mostrar aos engravatados quem manda neste mundo colorido como os casacos cintilantes desse grupo hacktivista hipster, cheio de grafismos e referências visuais que atiram para todos os lados.
Na comparação com os anteriores, esse é o título mais aberto da franquia em termos de variações e maneiras de se fazer as coisas. Tendo as habilidades corretas, é possível, literalmente, realizar missões sem dar um único disparo ou invadir sistema algum, apenas usando habilidades de engenharia social e ofuscação que são habilidades hackers tanto quanto o domínio de plataformas online. Tudo depende da forma como o jogador deseja agir e, principalmente, dos agentes que ele possui à sua disposição.
Analisar perfis de possíveis agentes e entender melhor como as diferentes habilidades e vantagens funcionam é uma das partes mais legais de Watch Dogs: Legion. Profissões, alinhamentos e habilidades fazem diferença fundamental no planejamento das ações, assim como alteram as estruturas do mundo aberto em si. A abordagem dos guardas a uma senhorinha invadindo uma área restrita é diferente daquela vista quando o invasor é um homem negro, por exemplo.
Passeando pelos cenários, que reproduzem lindamente a cidade de Londres e todos os seus monumentos, pontos conhecidos e arquitetura, também dá para ver de perto a opressão que a Albion impõe sobre os cidadãos. Longe das missões principais, secundárias ou de recrutamento, dá para ajudar indivíduos comuns que estão sendo agredidos ou tendo sua privacidade violada pelos guardas, com isso fazendo com que eles se tornem favoráveis à causa dos DedSec e se juntem mais facilmente à luta.
Outros, porém, não são tão facilmente dobráveis, exigindo vantagens próprias ou missões para a resolução de problemas pessoais antes de se unirem ao grupo. E quando falamos de membros do próprio sistema, como juízes, promotores, guardas, agentes de inteligência ou oficiais do governo, as coisas podem ser ainda mais complicadas. Nem todos são dobráveis e alguns têm um ódio pela DedSec que é maior do que o bom senso, simplesmente se recusando a participar do combate ainda que a história mostre qual lado está certo.
Uma missão a um escritório da Albion, durante nossos testes, fez com que um recrutado em potencial (com direito a missões em andamento para esse fim, inclusive) cortasse todos os laços com o grupo hacker depois que um dos agentes o apagou com uma gravata, no caminho para um objetivo. Ele era importante pois reduziria o tempo de personagens capturados na prisão, mas uma falha no planejamento, que não levou isso em conta, serviu para derrubar tais planos — e também mostrar como os eventos do título se misturam.
Com tudo isso, e aos moldes da maioria dos jogos de mundo aberto da Ubisoft, realizar missões secundárias de recrutamento e adesão de agentes, muitas vezes, acaba se tornando mais interessante do que seguir a campanha central. Você vai querer passar longas horas analisando possíveis candidatos e evoluindo habilidades para ter acesso até mesmo àqueles mais hostis, ou simplesmente buscando indivíduos peculiares como idosos ou jornalistas, criando um rol de habilidades para que a legião esteja perfeitamente forte no momento de combater diretamente a Albion.
Andar de carro, observar as luzes da cidade e pensar nas diferentes possibilidades sempre será mais instigante do que, efetivamente, as colocar em prática, em um game que pode soar repetitivo depois de somente algumas horas
Vale a pena citar, ainda, a adição de um modo de morte permanente, que aumenta tais apostas ainda mais. No jogo “normal”, digamos, agentes mortos durante missões ficam “presos”, com o jogador tendo de aguardar um tempo variável até que eles possam ser usados novamente. O permadeath, entretanto, faz com que os abatidos fiquem mortos para sempre e adiciona o perigo de, caso a DedSec fique sem ninguém, o jogador encare uma tela que não via há algum tempo, a de game over, e tenha que recomeçar a luta do zero.
Tal elemento torna o planejamento ainda mais importante, assim como o bom uso das habilidades e da observação dos cenários. A nossa recomendação é iniciar o título com o modo de morte permanente desabilitado até aprender como o mundo de Watch Dogs: Legion funciona para, na sequência, aumentar o risco envolvido e experimentar o título da forma como, acreditamos, ele foi feito para ser jogado.
A abordagem variada, aberta e cheia de possibilidades, porém, trouxe um ônus considerável. Não é como se a franquia Watch Dogs tivesse a melhor das histórias e tivesse a narrativa como um foco importante, mas a ausência de um protagonista e de um fio condutor da história faz falta aqui. E mesmo com o modo permadeath, a falta de conexão entre jogadores e personagens torna a experiência um bocado negativa.
Ainda que tenha diferentes personagens, Legion tenta tocar sua trama como a dos outros games da série, tendo diálogos entre os agentes e centrando a história na DedSec, na inteligência artificial onipresente Bagley e em Sabine, a líder do grupo hacker. Só que eles, por mais que estejam envolvidos nos acontecimentos, não são agentes diretos deles; você é. E estará controlando um aleatório.
A ausência de um sistema de criação de personagens, como temos em XCOM, ajuda ainda mais nesse distanciamento, na medida em que o estilo de vestuário e as abordagens também podem ser pouco relacionáveis e altamente hipsters. Aqui, entretanto, estamos falando de um tipo de conexão individual, que parece insípida em relação a um universo que tinha tudo para instigar, mas não o faz, justamente, pelo seu argumento central e por um sistema de criação aleatória de NPCs que tem muitas repetições.
A nossa recomendação é iniciar o título com o modo de morte permanente desabilitado até aprender como tudo funciona para, na sequência, experimentar o título da forma como, acreditamos, ele foi feito para ser jogado.
É uma ideia semelhante à de grupos hacktivistas que existem no mundo real, que apostam na ideia de máscaras e ações coordenadas para se portarem como legião. Mas em Watch Dogs Legion, apesar dessa ideia, você efetivamente estará controlando um agente, e somente ele, agindo diretamente na raíz do problema, já que o modo online do game só chega em dezembro. Mas não, suas ações representam o coletivo, ou, pelo menos, deveriam.
A falta de evolução em termos de elementos e jogabilidade, em relação ao segundo game da série, também chamam a atenção negativamente nesse sentido, pois lá, tínhamos uma explosão de personalidade, desde a cidade de San Francisco até a trilha sonora muito bem curada e seu protagonista, Marcus. Londres é bela, as músicas também são ótimas, mas em Legion, é como se esse elemento central tivesse sido substituído por vários, mas sem as devidas adequações, o que torna o resultado menos envolvente.
Junte a isso a trama que nunca foi das mais instigantes, e aqui, assume ares quase previsíveis e clichês, apesar das boas referências e dos momentos legais aqui e ali. A repetição em termos de missões também acaba incomodando, principalmente na insistência em objetivos que envolvem a interação física com terminais em um universo que fomente a ideia de que, como no nosso, tudo está caminho para a virtualização e o funcionamento remoto. A legião do novo Watch Dogs passará muito tempo invadindo lugares e lidando com downloads por proximidade, e menos praticando os golpes e roubos cinematográficos de que, muitas vezes, ouvimos falar no noticiário real.
Nesta Londres autoritária e futurista, mas nem tanto, passaremos um tempo mais interessante recrutando agentes do que, efetivamente, os colocando para lutar. Andar de carro, observar as luzes da cidade e pensar nas diferentes possibilidades sempre será mais instigante do que, efetivamente, as colocar em prática, em um game que pode soar repetitivo depois de somente algumas horas, ainda que apresente potencial virtualmente infinito.
A legião é forte, astuta e habilidosa, mas apenas como cada um de seus membros. Essa é a verdade universal de Watch Dogs Legion, que coloca um grupo popular diante do sistema e mostra que é possível mudar as coisas, ainda que essa seja uma resistência sem face. Um dedo do meio na casa dos poderosos, mas sem a força que um gesto desse tipo poderia, e deveria, carregar. A ironia que aparece quando pensamos nos responsáveis maiores por este título, no final das contas, acaba não sendo tão curiosa assim.
O jogo foi testado no PC em cópia cedida pela Ubisoft. Esta análise também foi publicada no Canaltech.