Talvez mais do que qualquer outra mídia, os videogames fizeram da guerra um espetáculo. Ao nos transformar em soldados e heróis, os jogos deram a esses conflitos um glamour bem diferente daquele que se esconde sob os destroços de um campo de batalha. Acostumamo-nos aos sons dos tiros e das explosões, mas nunca demos ao que acontece do outro lado do disparo.
E é por isso que Valiant Hearts: The Great War, o novo game da Ubisoft Montpellier, se destaca tanto. Mais do que um belo visual, resultado da excelente UbiArt Framework — a mesma engine usada em Rayman Legends e Child of Light —, ele chama a atenção por humanizar um assunto tão pesado e que a indústria tratou de banalizar ao longo dos últimos anos. A guerra não é bonita e, mais do que heróis, ela produz vítimas.
Para isso, acompanhamos a triste história de quatro personagens que veem suas vidas virarem de cabeça para baixo com o início da Primeira Guerra Mundial. Emile, Freddie, Karl e Anna não são soldados, mas pessoas comuns que acabam sendo arrastados para dentro de uma briga que não era delas. E, cada um com seus motivos, eles precisam encontrar uma forma de sobreviver e de escapar dos horrores de um dos maiores conflitos da História moderna.
Essa é uma abordagem que muitos outros jogos tentaram fazer, mas poucos conseguiram com êxito. Valiant Hearts humaniza a guerra ao mostrar que ela não é feita de heróis, mas de vidas destroçadas e destaca exatamente esses dramas.
É claro que essas histórias se encontram e isso serve apenas para tornar tudo ainda mais interessante. Embora tenhamos personagens bem diferentes e lutando em lados opostos, a motivação básica é praticamente a mesma: sobreviver.
Assim, não há como não se identificar com a história do velho fazendeiro em busca de seu genro convocado pelo exército inimigo ou do voluntário americano que entra na guerra para se vingar daquele que destruiu sua vida. E é a partir disso que você percebe que não há heróis, apenas um bando de gente quebrada querendo sair dali.
Essa humanização é apresentada ainda de outras formas. Na arte, por exemplo, apenas os protagonistas possuem algum tipo de identidade, uma vez que os demais soldados são retratados de maneira uniforme, como se fossem parte de uma grande “massa”.
Já na narrativa, a utilização de cartas e diários apenas aprofunda o apelo emocional de cada uma dessas histórias. Embora haja um narrador, os relatos pessoais dão um peso muito maior à trama, estreitando o vínculo entre jogador e personagens.
E essa desconstrução que a Ubisoft propõe aos jogos de guerra vai além da narrativa. Contrariando tudo aquilo que os jogadores estão acostumados a ver em títulos do gênero, a história não é contada a partir da ponta de uma arma. Ao contrário daquilo que já vimos dezenas de vezes em jogos como Call of Duty, Battlefield e Medal of Honor, Valiant Hearts relata os dramas do fronte a partir de uma perspectiva bem diferente do já manjado FPS.
Apesar do estranhamento inicial, a decisão de fazer do game um adventure funciona muito bem. Primeiro porque o formato se encaixa muito bem na proposta de valorizar a narrativa e o desenvolvimento dos personagens. Além disso, a Primeira Guerra é historicamente conhecida como um conflito mais “parado”, com as batalhas sendo resolvidas principalmente em bombardeios e diretamente de trincheiras.
O único problema é que, apesar de a mecânica de um Point and Click funcionar muito bem, Valiant Hearts tropeça na falta de desafio. São vários puzzles, mas poucos aqueles que vão fazê-lo realmente quebrar a cabeça. Tudo se resume a encontrar alguns objetos para liberar seu acesso a novas áreas e nada mais.
Assim, o jogo não só pode incomodar a geração CoD que procura algo mais intenso, mas também aqueles que querem uma boa história aliada a um desafio considerável. Tudo bem que é interessante procurar a centena de objetos relacionados à guerra que estão espalhados pelo cenário, mas isso é apenas um extra e não parte da experiência central do game.
Elogiar o visual dos jogos criados com a UbiArt Framework já virou regra, principalmente depois de Rayman Legends e Child of Light. E, embora Valiant Hearts não seja uma exceção, o apelo artístico vai além de simplesmente arrancar alguns elogios.
O game conta com um estilo bem cartunesco e, de certo modo, inocente, que em nada condiz com a dureza de uma guerra. É estranho ver aquele desenhos bonitinhos sendo usados para retratar os horrores das trincheiras, a violência dos campos de prisioneiros ou as pilhas de corpos do campo de batalha.
E esse contraste serve exatamente para criar esse incômodo. É uma provocação para mostrar que não há beleza ali. Não importa o quanto você tenta maquiar aquela realidade, pois nada vai diminuir a crueldade e a brutalidade de uma guerra.
Aliado a tudo isso, temos todo o pano de fundo histórico utilizado para contar toda essa história. Pegando carona nas homenagens ao centenário da Primeira Guerra Mundial, a Ubisoft Montpellier abordou um período muito pouco trabalhado nas mídias em geral, o que já é motivo o suficiente para despertar o interesse de qualquer pessoa.
No entanto, Valiant Hearts constrói essa ambientação sem se apegar tanto aos detalhes históricos do conflito. Embora as principais batalhas e momentos estejam ali retratados muito bem, eles servem muito mais como background do que como a base da narrativa.
Esse formato funciona exatamente por trazer uma pegada quase que educativa para o jogo, mas sem cair naquele formato maçante e enfadonho muito utilizado em conteúdo pedagógico. Cada capítulo conta com contextualizações sobre o período, além de outras explicações que ajudam o jogador a entender mais da situação na qual os personagens se encontram, mas sem se tornar didático demais. Informação e interação são apresentados na medida certa.
Não há como negar que Valiant Hearts é um jogo bem diferente daquele que estamos habituados a ver nos consoles, principalmente vindo de um estúdio como a Ubisoft. Apesar de sua tradição com games AAA, o estúdio vem acertando a mão em projetos menores e com um apelo mais artístico. E não estamos falando apenas da parte visual, mas também de uma sensibilidade narrativa bastante rara nos videogames.
É claro que a falta de desafio pode afastar a geração Call of Duty que adora dar tiros, mas é exatamente esse apelo mais humano o seu grande diferencial. Uma guerra não é feita apenas de tiros e explosões, mas de vidas destruídas. E é por se atentar a essas histórias que Valiant Hearts se torna um excelente jogo.
Este game foi analisado no PlayStation 4.