Até hoje, mais de duas décadas desde o “advento da internet”, há quem diga que a rede ainda é terra de ninguém. Enquanto no “mundo real” os crimes, ameaças e bravatas costumam – ou deveriam – ter consequências, as redes sociais ainda são vistas como o local onde tudo é permitido, nada é proibido e todos estão seguros.
Esse aspecto acaba levando muita gente a assumir, online, uma faceta bem diferente daquela com que encaram a vida, os expedientes de trabalho e os dias de estudo. A moça que se acha esquisita na escola vira uma bully virtual de primeira grandeza. O garotinho tímido e de poucas palavras no colégio transforma-se em uma metralhadora de insultos assim que assume o controle de um militar em Call of Duty.
Dá para dizer que a ideia geral de quem tem esse tipo de reação pela internet são uma de duas. Ou a pessoa aproveita o teórico anonimato e distância para revelar sua verdadeira face ou acredita que, pelo mesmo motivo, insultos e agressões virtuais têm menos poder daquelas feitas presencialmente. Na maioria das vezes, as brigas começam e terminam sem vítimas ou culpados.
Em outras, porém, o dano é bem real. As notícias de suicídios relacionados ao cyberbullying eventualmente povoam os noticiários em países como o Brasil, onde a internet já é parte integrande da vida de boa parte dos jovens. As notas, porém, costumam dar ênfase maior à vítima e aos efeitos do que foi feito a ela do que aos agressores, fomentando ainda mais a ideia de que a rede é a terra da impunidade.
Até certo ponto, infelizmente, essa ideia não é de todo errada. Se o processo de capturar criminosos virtuais, como hackers, já é suficientemente complicado, o que dizer de casos vistos como “menores”. O indiciamento, aqui, envolve a participação de grandes empresas do mundo da tecnologia, que muitas vezes dificultam o processo por não quererem ver mais uma inserção de seus nomes junto a notícias negativas.
Quando a justiça finalmente dá a atenção a casos assim, o que se vê normalmente é uma tentativa de transformar o acusado em exemplo, de forma a coibir pela ameaça uma prática cada vez mais comum e difícil de ser investigada. O que se vê é uma pessoa pagando de maneira muito maior que o crime cometido, de forma a assustar os outros que atuam de forma semelhante.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com Aaron Swartz, o criador da tecnologia RSS e da rede social Reddit. Acusado de pirataria ao compartilhar livremente uma série de artigos acadêmicos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), ele se suicidou no início de 2013 enquanto encarava uma possível pena de 35 anos de prisão, além de US$ 1 milhão em multas. E, tomadas as devidas proporções, é o que tem acontecido com o americano Justin Carter.
O lugar errado, na hora errada
Em fevereiro de 2013, após uma partida fracassada em League of Legends, o jovem de 18 anos decidiu confrontar o time vitorioso por meio do Facebook. Os acontecimentos da partida em questão são desconhecidos, mas sabe-se que algo irritou Carter tão profundamente que o levou a comentar na rede social de maneira bastante agressiva, para dizer o mínimo.
“Eu tenho problema na cabeça sim, acho que vou atirar contra um jardim de infância”, dizia a primeira mensagem, seguida de outras duas que dão continuidade a uma ideia doentia. “E ver o sangue dos inocentes chovendo. E comer o coração ainda batendo de um deles.” Frases fortes e violentas, mas provavelmente, ditas sem conhecimento da extensão de seus efeitos.
O problema disso tudo é que tais bravatas foram publicadas menos de dois meses após um tiroteio em uma escola primária de Sandy Hook, no estado americano de Connecticut, um ataque que resultou na morte de doze crianças e seis adultos. O mundo ainda estava chocado com a violência, o que levou um canadense não identificado pela justiça a dar uma atenção a mais aos comentários de Carter, entregando-os à justiça do país de forma quase imediata à publicação.
De lá, o caso seguiu para o Centro Regional de Inteligência da cidade de Austin, no Texas, que realizou uma checagem sobre os antecedentes e documentação do garoto. A descoberta era de que ele residia a menos de 100 metros de uma escola primária, razão suficiente para que ele, no dia seguinte, tivesse sua prisão decretada pela polícia.
Carter foi acusado de ameaça terrorista de terceiro grau, um crime que engloba ameaças falsas ou não que possam resultar em evacuação de edifícios ou na morte ou ferimentos graves a terceiros. O jovem ficou preso durante seis meses, encara uma pena de até dez anos de prisão e teve uma fiança no exorbitante valor de US$ 500 mil paga por doadores anônimos após seu caso se tornar público e causar comoção na internet.
Nesse meio tempo, ele sofreu o inferno. Já diagnóstico como depressivo e adepto de um humor “negro”, na visão de amigos e paretes, Carter sofreu todo tipo de agressões durante seu tempo atrás das grades, incluindo um estupro. Além disso, os oficiais da justiça texana teriam forjado uma confissão, após afirmar ao garoto que ele seria libertado se confessasse a intenção de cometer um crime. Em sua inocência, o jovem aceitou tais termos e falou sem a presença de um advogado.
Para o advogado de Carter, Don Flanary, trata-se de uma tentativa clara de transformar o garoto em um exemplo. Com a popularidade do caso e a falta de recursos da família do acusado, ele passou a trabalhar de forma gratuita e lutar não apenas pela inocência de seu cliente, mas também pelo arquivamento completo do caso e uma revisão das técnicas pelas quais a polícia do Texas agiu para criar a acusação.
Segundo extensa reportagem publicada pelo Dallas Observer, as provas usadas contra o jovem jamais sustentariam uma acusação caso o crime tivesse ocorrido no “mundo real”. A acusação se baseia em uma captura de tela com apenas um trecho da troca de mensagens entre Carter e alguém identificada como Hannah Love, e nunca localizada. Todo o restante do caso se baseia na acusação obtida sob pressão e no histórico de depressão do garoto, além de uma medida cautelar obtida contra ele por uma ex-namorada, dois anos antes.
Segundo Flanary, uma busca na casa de Carter não localizou objetos suspeitos. Ele não possuía armas, recortes de jornal que indicassem algum tipo de planejamento nem nenhum documento ou prova de que estaria planejando um ataque. O jovem nem mesmo ouvia metal pesado ou jogava games com violência extrema, duas características sempre citadas em casos como esses.
A história ganha contornos ainda mais tristes quando se observa uma mensagem enviada por Jennifer Carter, a mãe de Justin, em um comentário a uma postagem do filho, um ano antes dos problemas com a justiça. Quando ele postou sobre odiar a si mesmo e estar pensando em se matar, ela respondeu: “Você precisa pensar no que está postando. Você tem pessoas preocupadas com sua segurança…” Um triste prelúdio do que ainda estava por vir.
Minimizando o dano
Por mais que não exista nenhuma maneira possível de controlar o que as pessoas querem dizer – e isso nem mesmo é desejável – desenvolvedoras e fabricantes de consoles começam a tomar medidas para diminuir o nível das troladas virtuais e, pelo menos, tentar evitar que casos como o de Justin Carter voltem a acontecer.
No Xbox One, por exemplo, a Microsoft é capaz de detectar automaticamente xingamentos e ameaças ditas durante partidas online, aplicando banimentos de alguns dias ou semanas a seus jogadores. A Sony se diz capaz de fazer o mesmo, mas por enquanto, ainda não aplicou nenhum tipo de tecnologia desse tipo.
Já empresas como a Electronic Arts apostam na integração da própria comunidade para garantir a saúde de seu ambiente online. Nos títulos mais recentes da série FIFA, por exemplo, existe um sistema de reputação online pelo qual os próprios usuários podem indicar o respeito e fair play de seus adversários virtuais. Irritadinhos e desonestos acabam sendo renegados a partidas online com outros jogadores com o mesmo perfil.
Já a Riot Games, a desenvolvedora de League of Legends, criou um sistema chamado The Tribunal, uma organização que trabalha com voluntários para policiar as partidas do game. Alguns milhares de jogadores fazem parte dessa iniciativa que, apesar de estar longe de ser onipresente, tenta, pelo menos, minimizar o número de trolls na comunidade online.
A empresa não se pronunciou oficialmente sobre o caso Justin Carter. As teorias de conspiração online, porém, afirmam que foi a própria Riot – na figura de seu co-fundador Marc Merrill, o Tryndamere – quem pagou a fiança do garoto. Ele aguarda julgamento em liberdade.