Há várias formas de dizer o que é ou não arte — e, ainda assim, parece que os video games não conseguiram encontrar uma forma de se enquadrar na categoria. Muitos títulos já tentaram apelar para visuais únicos, enquanto outros traziam uma série de simbolismos para que o jogador bancasse o intelectual em busca de respostas e interpretações. Porém, paralelo a tudo isso, inFamous: First Light traz um viés muito mais relevante da arte: a contestação.
Em uma indústria tão preocupada com o total de vendas e a recepção do público, a Sucker Punch ousou ao fazer do DLC/expansão de inFamous: Second Son uma crítica social. Mais do que aprofundar o passado de uma coadjuvante da campanha principal, o jogo surpreende por dialogar com o mundo à sua volta, trazendo críticas à sociedade e, acima de tudo, fazendo o jogador pensar. Seu maior mérito é mostrar o mundo por outro viés, abrindo espaço para a reflexão.
E ele faz isso da maneira mais básica possível: a partir de seu enredo. Embora a gente esteja sempre preocupado com a jogabilidade de um título ou com seus gráficos, os video games ainda são sobre contar histórias. No caso do prequel de inFamous: Second Son, essa trama aparentemente simples ganha contornos bem mais profundos e interessantes ao abordar, de forma corajosa, tópicos delicados que, acima de tudo, nos colocam na pele do outro.
Como inFamous: First Light já saiu há algumas semanas, é até um pouco desnecessário comentar os detalhes de sua trama ou mesmo de suas mecânicas. Narrando fatos que antecedem aquilo que vimos no jogo de PS4 lançado no início deste ano, o extra conta um pouco do passado de Fetch — a condutora com poderes de néon que ajuda Delsin em vários momentos —, ampliando seu background e repetindo a fórmula que funcionou muito bem anteriormente.
First Light lembra que a função da arte não é apenas ser bonita, mas dialogar com o mundo à sua volta — algo que os games parecem ignorar.
Só que essa é uma análise bem superficial daquilo que a expansão realmente tem a oferecer. Desde sua primeira aparição, a personagem se revelou uma figura bastante interessante e isso é aprofundado por aqui. Assim, conhecemos uma garota que se descobre como alguém diferente da maioria das pessoas e, por isso, é abandonada pelos pais e perseguida por todos. Para se manter viva e sã, ela entra no mundo das drogas e da criminalidade, fazendo trabalhos para um traficante local para manter seu irmão a salvo.
Pareceu familiar? Assim como aconteceu com os X-Men na década de 60, a Sucker Punch conseguiu criar uma excelente metáfora sobre a sociedade atual, expondo seus preconceitos e nos fazendo encarar a questão exatamente sob os olhos do oprimido. Não se trata apenas de um jogo sobre alguém com poderes coloridos, mas do que a exclusão e a perseguição podem fazer com uma pessoa.
O game não chega a levantar nenhuma bandeira abertamente, mas não é preciso ser nenhum gênio da semiótica para traçar um paralelo entre a história da condutora e a de milhões de pessoas que sofrem algum tipo de preconceito mundo afora — neste caso, mais especificamente dos homossexuais.
E, o mais triste de tudo é saber que os únicos “exageros” são os poderes. A violência, a existência de alguém que se aproveita dessa vulnerabilidade, o uso das drogas como ferramenta de fuga e até mesmo as intervenções do governo em questões assim estão ali, mesmo que de maneira mais alegórica.
Assim como aconteceu com os X-Men na década de 60, a Sucker Punch conseguiu criar uma excelente metáfora sobre a sociedade atual, expondo seus preconceitos e nos fazendo encarar a questão exatamente sob os olhos do oprimido
É por isso que ouso tratar First Light como arte e não apenas como algo meramente comercial. Ele não se preocupa em ser somente bonito – embora os visuais continuem incríveis – e nem apela para algo pseudointelectual. Seu diferencial é exatamente usar os recursos do meio para iniciar o debate e, acima de tudo, nos colocar na pele de quem vive isso todos os dias.
É o tipo de sensibilidade que parece ainda estar em falta do lado de fora dos consoles. Como dito, o foco dos video games ainda é contar histórias e o que vai separar algo comercial daquilo que tem uma pegada mais artística é a forma como essa história é contada. No caso de inFamous: First Light, ele foge do óbvio e provoca o jogador — embora muitos nem se deem conta do debate que envolve a trama.
Por fim, a Sucker Punch fez um excelente trabalho na própria construção da personagem. Em tempos em que o debate sobre a participação das mulheres nos video games volta à tona, é bom ver que ainda há alguns títulos que conseguem explorar essa questão de maneira decente. Fetch é uma ótima protagonista feminina, ficando distante dos clichês que envolvem o gênero.
Assim, não temos nenhum drama envolvendo romance e nem mesmo uma sexualização desnecessária da personagem. O mais próximo disso são os diálogos envolvendo Shane, que são propositalmente ofensivos para acelerar a relação de desprezo do jogador com o vilão.
Isso não faz de inFamous: First Light um jogo imperdível, mas não há como negar que é sempre muito bom ver grandes títulos saírem do lugar-comum e flertarem com temáticas mais espinhosas. Ainda que ele não traga essas polêmicas de maneira escancarada, é possível vê-las com facilidade nas entrelinhas.
E é muito bom que isso aconteça. Se os video games realmente sonham em ser arte, eles precisam não apenas saber dialogar com o mundo ao seu redor como também fugir da obviedade. Não se trata apenas de apertar os botões na hora certa, mas de usar esse conjunto de mecânicas para transmitir uma mensagem, seja ela qual for. Embora isso ainda falte coragem para muitas produtoras, é bom saber que ainda há alguns poucos dispostos a arriscar.
P.S: Se, apesar de toda a discussão levantada acima, sua maior preocupação ainda é saber se ele é bacana, com gráficos da nova geração e se valem os US$ 15/R$ 31 cobrados na PSN, pode ficar tranquilo. Ele continua bonito e divertido, apesar de não ser tão grandioso quanto Second Son — embora ele tenha muito mais a oferecer do que um conjunto de explosões coloridas.
O game foi analisado em cópia cedida pela Sony.