Quando eu entrei no NGP, uma das minhas metas era só escrever sobre aquilo que eu realmente tivesse domínio. Nada de análises apressadas feitas contra o tempo ou coisa parecida. Eu queria a liberdade para, quando fosse falar sobre um jogo, saber tudo sobre seu universo e suas mecânicas. E é por isso que peço desculpas pela demora na resenha de Middle-earth: Shadow of Mordor.
Não apenas porque levei quase um mês para finalizá-la, mas porque me estendi muito mais do que deveria para isso. E a razão para isso é simples: a Monolith conseguiu criar uma experiência tão incrível inspirada no universo de O Senhor dos Anéis que eu simplesmente não queria abandoná-la. Somente agora que a Platina brilha em minha coleção e que não há mais nada para se fazer pelas planícies sombrias de Mordor é que eu arranjei tempo para falar sobre o jogo.
Somente isso já deveria ser um indicativo do quanto o título me agradou. No entanto, Shadow of Mordor vai muito além de ser um simples lançamento divertido e consegue inovar em aspectos muito importantes, sendo uma verdadeira lição sobre como criar algo inédito a partir de um mundo já explorado à exaustão. Ele é o passo adiante que faltava.
A esta altura do campeonato, você já deve estar cansado de ouvir falar do Nemesis System e de como ele funciona bem em Shadow of Mordor. Afinal, trata-se de uma lógica diferente de lidar com inimigos e de como você influencia o mundo ao seu redor. No entanto, depois de quase 30 horas decapitando orcs, é possível perceber como a novidade vai ainda mais longe.
É claro que é muito legal perceber que seus adversário são indivíduos únicos, com seus medos, fraquezas e vantagens e que vão se lembrar do protagonista caso cruzem caminhos mais de uma vez. É uma forma interessante de evoluir a inteligência artificial de um jogo e fazer com que seus oponentes sejam mais do que simples carne para você fatiar.
Em Shadow of Mordor, nada é estático. O ecossistema do mundo funciona sem a interferência do jogador.
Porém, o novo sistema se destaca por fazer com que aquela Terra-Média realmente pareça crível. O maior desafio de um jogo de mundo aberto não é criar um cenário grande o suficiente para o herói correr e pular à vontade. A dificuldade está em povoá-lo da forma mais realista possível. E é aí que Shadow of Mordor chama a atenção.
O game não depende do jogador em momento algum para que as coisas aconteçam. A trama de Talion usa por vingança são apenas apenas pequenos pontos no turbilhão de acontecimentos que antecedem o retorno do Sauron. O grande mérito do jogo é fazer com que as criaturas que habitam aquele local interajam das mais variadas formas possíveis sem que o jogador precise de fato interferir nelas.
Basta você ficar parado em algum ponto e perceber como aquele ecossistema se desenvolve naturalmente. O exército inimigo vai se organizar à sua maneira e a própria fauna local, com seus caragors, ghûls e graugs, vão interferir nisso. E as coisas ficam ainda mais interessantes quando você avança no tempo e percebe que os orcs possuem suas facções e que elas vão disputar entre si por poder, alterando não apenas o grau hierárquico, mas também a geopolítica da região – o que resulta em um sem fim de missões para o jogador.
Os Nemesis System é um avanço e tanto no uso da inteligência artificial, dando identidade aos inimigos e fazendo deles algo mais do que carne para ser fatiada.
Nada é estático em Shadow of Mordor. E essa noção de que você não é o agente da ação é algo bem diferente e ser encarado em um video game, onde estamos acostumados a ver o mundo girar à nossa volta. É claro que a presença de Talion vai mudar o rumo de muita coisa, mas ele não é fundamental para que aquele mundo continue vivo.
É a partir disso que o game realmente mostra seu verdadeiro potencial. Além do mundo vivo, em que missões surgem a todo o instante em decorrência das disputas entre os orcs, o Nemesis System representa um avanço gigantesco em termos de inteligência artificial.
Um inimigo que o derrotou em uma batalha qualquer pode ganhar importância e se tornar um dos generais do exército de Sauron, ao mesmo tempo em que ele pode desenvolver algum tipo de medo ou ódio pelo protagonista por conta de uma batalha no passado. Sabe aquele orc que você deixou para morrer em meio às chamas? Pois agora ele quer vingança e vai se tonar muito mais violento ao menor sinal de fagulha.
Enquanto esse sistema de medo e vantagens ajuda a tornar as coisas bem mais estratégias – o ideal é nunca enfrentar um capitão às cegas, sempre procurando se informar sobre esses detalhes antes de uma luta –, o Nemesis fica ainda mais interessante graças ao poder de Talion de dominar a mente de seus inimigos e fazê-los lutar ao seu lado. Se Shadow of Mordor oferece toda uma lógica hierárquica, o herói pode se aproveitar disso em benefício próprio, seja colocando grupos em confronto ou mesmo infiltrando um aliado nas tropas inimigas.
Esse tipo de mecânica é exclusiva das versões de Shadow of Mordor para a nova geração e mostra um pouco do que essas plataformas podem oferecer em termos de processamento. Mais do que isso, o game da Monolith serve como o começo de uma nova era em que os jogos realmente apostam em mundos inteligentes e não apenas em manequins que estão ali à sua disposição para serem derrotados, como os Bonecos de Massa dos Power Rangers. Pense nas infinitas possibilidades que esse tipo de IA pode oferecer em uma dezenas de outros títulos e você poderá perceber o quanto Middle-earth: Shadow of Mordor é importante.
E uma das coisas que mais me encantou no título foi o seu poder de me surpreender. Quando a Monolith anunciou Shadow of Mordor, eu fiz parte do time que torceu o nariz por achar que ele seria apenas mais um jogo inspirado no universo de Tolkien que deveria passar batido pelos consoles. E a polêmica envolvendo Assassin’s Creed apenas reforçou meu preconceito.
No entanto, eu não poderia estar mais errado em relação a tudo isso. Apesar das primeiras impressões apontarem para algo pouco criativo, Middle-earth: Shadow of Mordor consegue diferenciar muito bem a inspiração da cópia.
Shadow of Mordor tem muito de Batman e Assassin’s Creed, mas o grande atrativo ainda é aquilo que ele traz de original
Ainda que essa distinção seja nebulosa para muitos, o game não nega a influência de outras franquias em sua essência. É fácil identificar as heranças das séries Assassin’s Creed e Batman: Arkham em sua movimentação e combate, respectivamente. No entanto, o título não se baseia nesses elementos, usando-os apenas como base para apresentar algo novo. Ele não tenta maquiar o que foi usado como referencial e faz com que essas mecânicas já familiares do público sirvam para destacar aquilo que há de realmente inédito.
Por outro lado, não há como negar que o estúdio poderia ter caprichado um pouco mais na hora de emprestar certos recursos. Não há nenhum problema em reaproveitar algo que vai funcionar em seu título, contanto que haja um aprimoramento naquilo que é falho. No caso de Shadow of Mordor, todos os problemas de movimentação que temos ao explorar o cenário na franquia da Ubisoft ou mesmo a câmera esquizofrênica do Homem-Morcego voltam a dar as caras por aqui.
Se o novo Middle-earth consegue se destacar por conta de uma excelente e inovadora mecânica, é claro que ele teria de tropeçar em outro aspecto. No caso, o principal problema do jogo é exatamente sua história, que muitos apostavam que seria um dos pontos mais interessantes do título.
De certo modo, revisitar o passado da Terra-Média e saber um pouco mais sobre Celebrimbor é realmente instigante. Afinal, ele foi o responsável pela criação dos Anéis do Poder e peça importante em toda a história daquele universo – embora nunca tenha aparecido em quaisquer um dos livros principais de Tolkien. Porém, esse é o maior nível d profundidade que você vai encontrar.
Isso porque a trama central, focada em Talion e na sua busca de vingança contra os generais de Sauron é deveras desinteressante. Não apenas pelo clichê, mas porque o jogo não consegue fazer com que você se importe com aquilo. O jogo até tenta fazer com que você crie empatia pelo personagem e pelo seu drama, mas não funciona. E isso fica ainda mais evidente quando surge uma grande revelação no final do jogo e ela não consegue impactá-lo em momento algum.
E, talvez, parte da “culpa” dessa passividade do roteiro seja da própria jogabilidade. Controlar Talion é muito mais divertido do que ser o próprio. O sistema de combate e as possibilidades criadas pelo Nemesis System são tão imersivos que você não quer saber do quanto o herói quer morrer para voltar para sua família. Tudo o que interessa é disparar uma flecha contra o inimigo. É como se os jogos do Batman fossem centrados no quanto ele sofre por ser um órfão e não no fato de ele ser o maior herói de Gotham.
Isso sem falar que ele contraria muito daquilo que é considerado cânone na obra e que certamente vai deixar muitos fãs incomodados. Afinal, se todo mundo via que Sauron estava voltando, por que ninguém fez nada em relação a isso? É claro que estamos falando de mídias diferentes, mas a própria Monolith fez questão de deixar claro que o jogo se passa entre O Hobbit e O Senhor dos Anéis, o que cria umas incongruências desnecessárias.
A verdade é que Middle-earth: Shadow of Mordor não precisava ser um jogo inspirado na obra de Tolkien. O sistema de hierarquia funcionaria em qualquer outro título, incluindo algo original. É claro que se aproveitar de toda a mitologia que os fãs adoram cria um apelo de marketing incrível, mas não há como negar que ela também traz seus problemas.
Apesar desses pequenos problemas, estamos diante de um dos melhores jogos deste ano. Ele não só traz uma mecânica extremamente divertida em termos de combate e estratégia, mas de algo completamente diferente do que estamos acostumados a ver até agora. A Monolith conseguiu dar um passo a mais em relação à evolução da inteligência artificial e fazer com que isso tornasse o mundo do game muito mais rico, variado e interessante.
O título tem seus problemas, mas não é nada comprometedor ou crítico o suficiente que ofusque todos os seus acertos. O Nemesis System representa um avanço enorme em termos de criação de mundo e de como ele se comporta. Como mencionado anteriormente, ele deixa de colocar o personagem como o principal agente da ação, fazendo dele apenas mais uma parte dentro de um enorme ecossistema.
Assim, Middle-earth: Shadow of Mordor pode ser o primeiro de uma nova geração de jogos que vão aproveitar muito mais este recurso. O potencial existente nele é enorme e e tendência é que, com o tempo, esse sistema seja aprimorado mais e mais. E, caso isso realmente aconteça, este game será lembrado como seu precursor. Talion pode não ser lembrado como o mais icônico ou carismático dos protagonistas, mas certamente como o responsável por uma mudança na forma como interagimos com o mundo à nossa volta.