Gigante como a Yggdrasil

Assassin's Creed Valhalla

por Diogo Fernandes

Gigante como a Yggdrasil

A franquia deu um passo à frente, impossível de voltar. Quando Assassin’s Creed mudou o seu formato, deixando de retratar períodos históricos importantes para se aprofundar em povos e culturas, uma que sempre pairava no ar eram os Vikings. O que não chega a ser uma surpresa. Junto com a mitologia grega, os nórdicos talvez sejam os que mais possuem apelo dentro da indústria de games, que pincela vez ou outra jogos usando o tema, desde o antigo – e muito saudoso –  Valkyrie Profile ou o mais recente God of War – que mistura ambas. Em outras palavras, a Ubisoft tinha uma responsabilidade grande nas mãos.

Aliás, esse passo já tinha sido dado antes. O sucesso anterior com Odyssey já definia o tom do compasso que Assassin’s Creed Valhalla deveria ao menos tentar manter. O que aconteceu aqui, porém, foi que a Ubisoft criou algo ainda maior e o mais ambicioso jogo da franquia. Ao ponto de a grandiosidade do game te engolir aos poucos. O jogo vai ganhando camadas e mais camadas de elementos além da campanha principal, com um cenário tão deslumbrante em volta de cada ambiente que visitamos, que esquecemos de tudo. Até mesmo do motivo de estarmos ali.

Contudo, em algum momento, o clique acontece e nos puxa de volta para o caminho. Bom ou ruim, isso reforça a lembrança do rumo que a série tomou. Uma renovação necessária, já nem tão nova assim, que desagradou uns e maravilhou outros. A questão agora é que os ares de mudança em Assassin’s Creed nunca foram tão relevantes, e não me refiro apenas ao mundo aberto ou ao estilo empregado; o curioso é que poderia ser ainda mais. Começando pela protagonista. Sim, no feminino.

A Eivor

Indo direto ao ponto. É sutil, mas talvez tenha faltado coragem para assumir uma protagonista feminina na série principal. A solução empregada dentro da narrativa – até interessante, por sinal – é a de que, devido a um conflito no DNA analisado pela ANIMUS, não é possível definir com precisão o gênero de Eivor, permitindo assim o salto de um para o outro na hora que o jogador quiser.

Gigante como a Yggdrasil

Um papel feminino muito mais definido fica a cargo das inúmeras outras mulheres que compõem o jogo. De líderes do assentamento até linha de frente no combate, elas contracenam com Eivor, traçam estratégias, buscam aliados, aconselham espiritualmente, enfim, tudo o que compõe Midgard e além – literalmente – conta com uma presença firme desde o início do game.

Alguns bugs e coisas esquisitas acontecendo em um jogo de mundo aberto já é algo quase folclórico. Em Assassin’s Creed: Valhalla eles estão presentes.

Começando ainda como uma criança, Eivor ganha sua alcunha, Marca de Lobo, após um ataque sofrido durante uma fuga. Antes, tinha sido salva pela mãe enquanto seu antigo vilarejo era chacinado em uma guerra entre clãs. O jogo começa aí, sem definir o gênero e mudando o futuro da criança. O protagonista deveria ter morrido no ataque, mas Odin, aparentemente, tinha outros planos.

Caminhos cruzados

Em Assassin’s Creed 3, a guerra de independência durante a Revolução Americana servia mais como um pano de fundo para dar palco ao conflito entre assassinos e templários. Aqui, em Valhalla, a coisa se inverteu. O Credo – ou Os Ocultos – atua mais nas sombras do que nunca. Eivor e os outros vikings agem mais como uma ferramenta – de certa forma, talvez até manipulados -, atacando inimigos em comum enquanto acessam conhecimentos antigos – e a Hidden Blade –, antes exclusivos dos aliados recentes.

Um detalhe curioso: o game se passa mais de 300 anos antes de Altaïr surgir como o maior assassino da Ordem. E nessa parte da linha temporal do game, a arma característica dos assassinos ainda exigia o sacrifício do dedo anelar como iniciação no credo, uma prática que só foi contornada por Leonardo da Vinci na saga de Ezio, muitos anos depois. Evitando a mutilação, Eivor rejeita a alcunha “Hidden” da lâmina, pois um viking carrega todo tipo de aço afiado com certo orgulho e esconder a arma não faria o menor sentido.

Gigante como a Yggdrasil

Com isso, a forma como a ordem e os nórdicos se mesclam é bem feita e crível. Conceituando as constantes viagens para incursões, pilhagens e descobertas náuticas, seria natural, em algum momento, algum dos lados do conflito milenar trombar com algum norueguês buscando o Valhalla. E, obviamente, ambos os lados se encontraram, e nada forma uma aliança mais duradoura que inimigos em comum.

Sigurd, um irmão de criação de Eivor, conhece Basin, um líder e mentor do Credo misterioso e de comportamentos dúbios, bem longe daquele padrão estabelecido pela série, em uma das suas viagens e o traz até o assentamento do clã. A partir daí, inicia-se a fusão do viking com o assassino. Toda essa influência acontece no início de uma forma um tanto facilitada, a bem da verdade, mas visões divinas, um certo desconforto no status quo e, obviamente, a inalienável sede de vingança empurram Eivor para os braços da ordem rival dos templários.

Exploração e muito sangue

Brutal é o primeiro nome que vem à cabeça quando se trata do combate em Assassin’s Creed Valhalla. Há um upgrade do que foi visto anteriormente em Odyssey. A violência já era uma constante, agora, contudo, as animações viscerais com variações de golpes, sempre terminam, no mínimo, com alguma mutilação. Acertar os parrys corretamente abre a guarda do inimigo e o caminho para desossar o infeliz.

Tudo funciona muito bem durante os trechos básicos de combate, mas as batalhas contra chefes, no entanto, são muito limitadas. Algumas vezes, sentimos que o controle simplesmente não responde como deveria, e considerando um estilo de gameplay onde a precisão é a chave, isso é sentido com força nos níveis mais difíceis.

Gigante como a Yggdrasil

É agradável invadir alguma fortaleza ou mosteiro junto de outros membros do clã e ver o combate se desenrolando. Tudo ocorre bem, sem travamentos ou quedas de frames, mesmo em meio ao caos. E isso considerando a primeira versão do PlayStation 4.

A Ubisoft criou o mais ambicioso jogo da franquia. Ao ponto da grandiosidade do game te engolir aos poucos.

Explorar sozinho também é possível e acrescenta uma dose a mais de dificuldade. Essa, totalmente customizável, junto de outros elementos como a inteligência artificial dos inimigos quanto ao modo furtivo e questões de exploração do gigantesco mapa, sempre cheios de pontos brilhantes chamando a atenção.

Entre colecionáveis e umas poucas side-quests – ao contrário do que foi informado, elas ainda estão lá de uma forma bem menos impactante, sob o nome de “Eventos pelo Mundo” – há três tipos de categorias: Riquezas, Mistérios e Artefatos. Sem a menor dúvida, eles irão proporcionar o maior número de horas dentro do jogo. Algumas são mais inspiradas do que outras. Até demais.

Gigante como a Yggdrasil

Destacando aqui dois pontos: as áreas onde um breu sinistro e maldito toma conta de determinada região. O responsável pelas side-quests de Símbolos Amaldiçoados se inspirou tanto que mereceria algumas sessões de terapia, por via das dúvidas. E o Orlog, um jogo de dados e sorte que, se deixar, te faz esquecer da campanha, do Credo, do raio que o parta e do que mais for possível. Bem viciante.

Problemas em Midgard

Não deveria, mas alguns bugs e outras coisas esquisitas acontecendo em um jogo de mundo aberto já é algo quase folclórico. Em Assassin’s Creed Valhalla, eles estão presentes em situações mais curiosas do que problemáticas, que ocorrem mais nos mares ao navegar e, principalmente, nas telas de loading. O que vai de fato incomodar são detalhes mais simples que, sem explicação, ficaram de fora.

O HUD de informações, retículo de mira, bússola e uma gama bem grande de outras opções são plenamente customizáveis, enquanto o detalhamento de side-quests é inexistente. Uma vez dentro delas, quando seu objetivo é vago, perde-se um tempo – e paciência – para concluí-las.

Tudo funciona muito bem durante os trechos básicos de combate, mas as batalhas contra chefes, no entanto, são muito limitadas.

Há uns problemas de game design, como alguns colecionáveis expostos no mapa que dependem de avanço na campanha para acessá-los, ou pior, plenamente acessíveis, mas que por algum motivo impedem o andamento da missão principal, nos obrigando a voltar em algum ponto salvo anterior e torcer para não ter corrompido nada. Coroando os problemas, alguns crashes ocorrem de vez em quando durante as cutscenes.

Tudo passa a impressão de que o console mais antigo não consegue processar tão rápido a transição do modo in game para as cenas, algo que, talvez, uma atualização possa resolver. Mas até lá, cada cena chega junto com uma desconfiança.

O horizonte

Há um empecilho ao jogar Assassin’s Creed: o presente. Caso o jogador que caia de paraquedas no título, se não acompanha desde os primeiros jogos, vai se sentir perdido. Desde seu início, o trecho em específico é bem linear, com bons personagens e seus momentos. Situado no mundo real, até mesmo a Covid-19 já se encontra inserida em seu contexto, através de conversas por e-mail, por exemplo. Merecia um compilado ou um resumão antes do jogo.

O ponto geral a ser levantado com Assassin’s Creed Valhalla, entretanto, é que a Ubisoft conseguiu novamente trazer um jogo excelente da franquia durante o período de transição de geração. Obviamente, tudo estará bem mais bonito e mais rápido nos novos consoles, mas, assim como antes, o gás restante na geração mais antiga cumpriu com dignidade muito bem o seu papel.

Gigante como a Yggdrasil

Assim como existe um hype e um desejo grande de conhecer o desenrolar do embate entre os assassinos e os templários em outros eventos mundiais – as Grandes Guerras, por exemplo, após os aperitivos excelentes tanto em Assassin’s Creed Unity e Syndicate–, os Vikings também eram muito aguardados e toda expectativa valeu a pena. Eivor entra para o hall dos grandes nomes do Credo, mesmo sem ter pedido por isso e de percurso conturbado.

O personagem soube usar os segredos e cumprir objetivos alheios, ora apontando ao seu favor, ora a contragosto. E, por isso, fica claro que, de uma forma ou de outra, terá a glória de estar no banquete ao lado de Odin no Valhalla, onde, em uma mistura atemporal e não-espacial, guardará pacientemente lugares dignos para que Altaïr e todos os outros mestres assassinos também se sentem quando chegar a hora deles.

O game foi testado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Ubisoft.