As memórias ainda são muito recentes. Temos um Batman porradeiro no cinema, batendo de frente com o Superman, e outro nos games, deixando centenas de bandidos e vilões se alimentando por meio de canudinhos e sondas. E nesse meio, eis que a Telltale Games anuncia um novo jogo do Homem-Morcego. A animação se mistura às dúvidas – todos sabem do que a empresa é capaz em termos de narrativa, mas a ação não é necessariamente seu grande mote.
O resultado era tão misterioso que pouco se viu sobre o game, com as primeiras imagens aparecendo a portas fechadas, apenas para jornalistas, na E3. Esse segredo todo acabou servindo muito bem à proposta de Batman: The Telltale Series, que vem para mostrar um outro lado do personagem e revelar o Homem por trás do Morcego.
No primeiro episódio, Reino das Sombras, começamos com o personagem encapuzado, mas logo o foco se volta para Bruce Wayne. E é com o milionário que jogamos boa parte do capítulo, refletindo sobre decisões morais e a decência do que o órfão está apenas começando a fazer, usando armadura, máscara e capa. Um terreno no qual a Telltale sabe exatamente o que está fazendo.
Batman: The Telltale Series entrega um personagem cujas ações todos nós já conhecemos, mas o observa com um novo olhar.
São inúmeros as versões de Batman nas duas últimas décadas. Dessa forma, a produtora evita o caminho fácil e não conta uma história de origem, pelo menos, não no sentido comum da palavra. Temos aqui, sim, um conto de uma época na qual Gotham City era dominada pelo crime, mas este vinha das mãos de mafiosos e corruptos, não de maníacos de cara pintada.
E é justamente dessa pegada que vem o grande forte da Telltale. Quem conhece o Batman sabe de sua retidão de caráter e das regras escritas em pedra às quais ele se submete. No começo de sua luta contra o crime, entretanto, não era bem assim, e o jogo permite que o usuário entre de cabeça nessa construção de personagem, moldando as ações de Bruce Wayne e também do próprio Batman.
Algumas opções chegam a ser até óbvias – apertar ou não a mão de Carmine Falcone, um dos mafiosos mais poderosos da cidade, diante de uma plateia de convidados que inclui a alta sociedade de Gotham e alguns jornalista? Outras, entretanto, são mais sutis. Um dos propósitos de Batman é, justamente, dar aos criminosos algo a temer. E diante da polícia e das câmeras, o que é melhor fazer: espancar um bandido, passando uma mensagem, ou deixa-lo são e salvo para ser preso?
São questões que não fazem parte de Arkham, por exemplo, a mais recente série do personagem, mas que tornam o game da Telltale bastante especial. O sentimento é que o jogador está efetivamente criando o Batman ao lado de Bruce Wayne. Nesse sentido, também, ficam mais claros os caminhos que a história deve seguir, e ao contrário dos games anteriores da produtora, as decisões não são tomadas às cegas. Mesmo que a repercussão não venha de forma imediata, já dá para imaginar no que elas refletirão no futuro.
O que se percebe é um trabalho mal-acabado. A falta de polimento no visual e na jogabilidade, infelizmente, é uma marca da Telltale Games tanto quanto as boas histórias.
Essa ideia também justifica um fato que pode deixar muita gente chateada – pelo menos no primeiro capítulo, é Wayne, e não o Homem-Morcego, o personagem central. A jogabilidade acontece nos diálogos com Alfred, nas interações com Harvey Dent, candidato à prefeitura da cidade, e, principalmente, em uma situação altamente pessoal, capaz de mexer com os brios do protagonista e fazê-lo questionar a validade de um trabalho que está apenas começando.
Não vamos dar spoiler, mas é justamente nesse segmento da trama, desenvolvido da metade para o final do capítulo, que está o grande potencial do título e o ponto central de sua história.
Outra grande força está na diferença de personalidade entre Wayne e Batman. Dá para perceber que o milionário, fora da armadura, apresenta as mesmas fraquezas de personalidade de qualquer pessoa, muitas vezes se tornando reféns das circunstâncias e apresentando emoções, dúvidas e até tristeza. Quando ele veste a capa e ativa o modulador de voz, entretanto, tudo muda e ele é capaz de resolver qualquer coisa com as próprias mãos. É uma sutileza de caráter, fruto de um roteiro bem escrito.
Mas se a trama e as decisões morais carregam boa parte do peso de Batman: The Telltale Series, o mesmo não pode ser dito de sua jogabilidade. É claro, um jogo do Homem-Morcego não seria completo sem suas doses de ação e combates, e eles estão presentes aqui, mas aparecem como QTEs simples e, muitas vezes, sem graça.
Lógico, isso permite observar melhor os movimentos de batalha e também a reação dos personagens. Por outro lado, é frustrante notar que, muitas vezes, até mesmo errar o botão a ser pressionado faz com que a cena continue sem problemas, tirando alguns momentos-chave em que Batman é morto por equívocos assim. E você vai perceber isso da pior forma possível, quando problemas de jogabilidade farão com que o QTE apareça sem tempo útil para ser executado, causando uma morte inevitável, ou então, seguindo em frente como se nada tivesse acontecido.
E já que estamos falando em bugs, é importante lembrar os graves problemas de funcionamento que afetam a versão PC, com travamentos e quedas bruscas na taxa de frames. Em menor grau, eles também estão presentes no PlayStaton 4, cópia analisada pelo NGP, e se traduzem em falhas na transição de cenas, imagens que parecem slides e um problema esquisito que faz com que o áudio dos efeitos sonoros desapareça durante as cenas de ação, voltando apenas quando se reinicia o título.
O sentimento é que o jogador está efetivamente criando o Batman ao lado de Bruce Wayne.
O que se percebe é um trabalho mal-acabado. A falta de polimento no visual e na jogabilidade, infelizmente, é uma marca da Telltale Games tanto quanto a profundidade de suas histórias e moralidade.
Infelizmente, enquanto o segundo atributo parece ser cada vez mais ampliado pela experiência dos realizadores, o primeiro continua na mesma, com um motor gráfico ultrapassado que chega a tornar esquisitos, em alguns momentos, até mesmo o estilo artístico bem peculiar da empresa.
Batman: The Telltale Series é um dos poucos games da produtora a chegarem em português, mas quem depender das legendas para entender a história também deve enfrentar alguns problemas, principalmente com erros de conceito. O cargo de Harvey Dent, “distric attorney”, algo parecido com os procuradores gerais brasileiros, virou “advogado”, reduzindo sua importância, por exemplo. Erros assim podem até não interferir no andamento da trama, ao contrário dos momentos em que a tradução simplesmente não aparece, deixando quem não fala inglês ao léu.
O desafio de qualquer adaptação é, sempre, entregar uma versão que seja nova o bastante para justificar sua existência, ao mesmo tempo em que não altera as bases do produto original, tornando-o reconhecível aos fãs de longa data. É esse o maior trunfo de Batman: The Telltale Series, que entrega um personagem cujas ações todos nós já conhecemos, mas o observa com um novo olhar.
Mesmo com os sérios problemas de performance e sua jogabilidade um tanto estranha, o primeiro capítulo mostra que temos, aqui, um ótimo caminho a ser seguido. A ideia de que teremos um jogo bom já faz parte do DNA da Telltale. Mas aqui, quem sabe, foi plantada a semente para seu melhor título, devido à união de roteiro, personagens muito bem trabalhados e, acima de tudo, a força de um dos maiores ícones dos quadrinhos.
O jogo foi analisado no PlayStation 4.