Estima-se que o Brasil tenha um mercado gamer com algo na faixa dos 40 milhões de pessoas. É gente que, pelo menos uma vez por semana, se liga nas notícias, assiste a vídeos pelo YouTube ou consome, efetivamente, os títulos recentes ou mais clássicos desse segmento. A Ubisoft, hoje, atinge uma parcela de mais de metade de todo esse público. E ainda quer mais.

Diante do que foi a maior presença da empresa na história da Brasil Game Show estava Bertrand Chaverot, diretor geral da Ubisoft para a América Latina. Nos bastidores do estande da empresa, ele fala com naturalidade sobre os números hiperbólicos da companhia, que tem em 2017 uma de suas listas de lançamentos mais fortes de todos os tempos e o retorno de uma franquia consagrada, Assassin’s Creed, ao mesmo tempo em que lida com a possibilidade de uma aquisição hostil por parte da Vivendi.

E foi sob o som de um dos estandes mais barulhentos de toda a feira que falamos com o executivo sobre esse foco absurdo no Brasil, que no último ano foi concentrado, principalmente, na criação de conteúdo original, e quais são os próximos passos dessa estratégia. Será que finalmente teremos um título situado completamente por aqui? Foi o que o NGP tentou descobrir na entrevista que você lê agora.

Bertrand Chaverot Ubisoft

New Game Plus: Vocês também estão trabalhando cada vez mais forte com a criação de conteúdo. Como está sendo a recepção do público a tudo isso?

Bertrand Chaverot: Nós temos uma visão bem clara, desde 2013, que tínhamos que ser cada vez mais brasileiros, com um conteúdo local relevante e diversificado. Começamos com Facebook, Instagram e YouTubers, depois adicionamos toda a parte de transmissões ao vivo com a UbiTV.

Começamos com o “Panettoni” [Felipe Carettoni, ex-gerente de comunidades da empresa, hoje trabalhando com a Wargaming Brasil] e a Fernanda [Pineda, ex-apresentadora do UOL Jogos, hoje produtora na agência de conteúdo 301]. Foi um super sucesso e também nossa oportunidade de falar de outras coisas e convidar mais pessoas do ramo da música, TV e internet.

Essa é uma direção muito importante para nós, pois além de jogos, também temos livros, filmes e a Ubisoft ainda trabalha em seriados. Assim, temos que falar com nossa comunidade de maneira mais geral e abranger todo o universo geek. É isso que estamos fazendo neste ano com o [Guilherme] Sarda, o Gabriel [Sotobello] e a Luciana [Himura, respectivamente gerente de comunidade e apresentadores da Ubisoft] – um conteúdo relevante, global e, principalmente, honesto.

NGP: Como é o trabalho entre a Ubisoft Brasil e a matriz internacional quando o assunto é toda essa produção?

BC: De longe, somos o país mais engajado em termos de criação de conteúdo original. Essa é a primeira perna, a segunda é a aceleração de tudo isso com as plataformas digitais e o investimento de dinheiro em mídia para criar um círculo virtuoso. Tanto no campo de produção quanto de mídia digital estamos no “top” dos países.

Está todo mundo muito alinhado. Para cada jogo, temos guias e datas de embargo para divulgação de conteúdo. Quem sai dessa dinâmica recebe uma “pancada” e aprende para não fazer de novo. Mas nunca aconteceu, tudo é tranquilo e Europa, Estados Unidos e América Latina trabalham juntos.

Já no caso do que não tem data para ser divulgado, a Ubisoft dá muita liberdade para a criação de conteúdo. Ao mesmo tempo, nós aqui do Brasil também deixamos soltos os nossos parceiros, como a Malena, Damiani, Rato Borrachudo e outros YouTubers com conteúdo regular.

NGP: Recentemente, vocês também começaram a falar de outras franquias, marcas e empresas, algo que a gente não vê muito por aí, pois há sempre aquela ideia de não citar a concorrência. Foi difícil conseguir essa liberação com a Ubisoft?

BC: Esta foi uma decisão deste ano, que levou em conta o fato de atingirmos entre 20 milhoes e 24 milhões de brasileiros na soma de todas as nossas redes sociais. É algo louco de se pensar, pois não somos uma mídia de grande público, mas sim de um mercado que tem entre 30 milhões e 40 milhões de gamers. Só que estávamos sempre falando do nosso próprio umbigo e de como a Ubisoft é legal, então decidimos mudar um pouco as coisas.

Estamos em 2017 e precisávamos de uma estratégia mais moderna. Falar de “Game of Thrones”, música, tecnologia, é muito legal, e isso passa também por outras marcas como Dell, Xbox, NVIDIA e outros. Todo mundo gosta de Uncharted ou do novo FIFA, por exemplo. Então podemos falar de muitas outras coisas para fortalecer nossa produção, sem que isso signifique fazer propaganda de outros games. Na verdade, nem falei com o pessoal da matriz sobre isso. Foi nossa decisão, uma escolha inteligente e que fez sentido.

NGP: Dentro de todo esse ambiente de criatividade, como vocês estão lidando com uma possível aquisição hostil pela Vivendi?

BC: Essa é uma ameaça, pois a cultura da Vivendi é totalmente diferente da Ubisoft. Nós temos uma abordagem de liberdade e inovação, enquanto eles trabalham de forma mais industrial. É uma situação completamente antagônica, então estamos muito motivados em trabalhar para permanecermos independentes.

A melhor resposta é criar jogos cada vez mais maravilhosos, fazendo com que as vendas cresçam e, junto com elas, o valor da empresa na Bolsa. Assim, ficaremos grandes demais para sermos comprados. E acho que estamos conseguindo.

A Vivendi também está entendendo que pode ser muito difícil trabalhar na sinergia entre duas culturas tão diferentes sem perder muitos produtores. É muito fácil para um criador de Far Cry ou Assassin’s Creed sair da empresa, montar uma produtora própria ou ser contratado por uma concorrente.

Os próprios fundadores da Ubisoft [apenas dois dos cinco irmãos Guillemot permanecem na empresa – Yves, que é o CEO global, e Gérard, que dirige os estúdios de cinema da companhia] sairão com muito dinheiro e pode ser muito fácil para eles abrir uma produtora e contratar os melhores desenvolvedores.

Assim, a Vivendi pode acabar comprando uma casca vazia por € 8 bilhões, uma empresa que perdeu boa parte de seu time criativo. Não dá para fazer uma aquisição hostil desse tipo, no século XXI, em uma empresa como a Ubisoft, que não tem fábricas nem máquinas, mas trabalha com capital humano.

NGP: Já tivemos artistas brasileiros e músicas nacionais em Just Dance. Dublagem e legendas em português já são o padrão. Depois de todo esse foco em conteúdo por aqui, qual você acredita que será o próximo passo para a Ubisoft por aqui?

BC: O mercado merece tudo isso. Estamos em um bom patamar e a pirataria reduziu. Vamos continuar com a produção local enquanto tivermos a oportunidade e queremos investir na organização de eventos, sejam eles online ou presenciais, com regras e prêmios. Queremos investir no mercado local para criar propostas bem concretas e recorrentes, que cresçam a cada ano.

Just Dance tem uma comunidade incrível e maluca, que gosta de fazer festa. Isso vai desde crianças até pessoas mais velhas. Poderíamos fazer torneios de vovós no Brasil, com senhoras de 70 anos de idade, pois elas também curtem o game. O Brasil é o único a ter a Just Dance Tour, [um torneio com etapas regionais em diversas cidades] que vale vaga para a final em Paris. Em todos os outros países, isso é feito online.

O Brasil está muito carente de eventos desse tipo, principalmente nas cidades de tamanho médio, pois tudo acontece em São Paulo e Rio de Janeiro. Então, vamos para Recife, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Manaus e Salvador, todas têm uma demanda reprimida muito grande. Por isso, os primeiros resultados da Just Dance Tour têm sido muito positivos.

Somos também é o único país a ter um torneio local de Rainbow Six: Siege, além do torneio mundial, em que os jogadores nacionais também participam. Estamos usando todas as nossas plataformas digitais e o conteúdo para acelerar isso, contando a história dos times e dos jogadores, até para abrir uma porta de entrada para o grande público.

NGP: Vocês têm contato com os desenvolvedores internacionais de jogos, dando sugestões ou apontando eventuais problemas encontrados nas demos a que vocês tem acesso?

BC: Em todas as equipes de produção da Ubisoft existem os “community developers” (desenvolvedores de comunidade, na tradução), que são os responsáveis pelo contato com os times de cada país para conversar sobre problemas e colher novas ideias.

NGP: E aquele Far Cry no Brasil, quando vem?

BC: Ter um jogo que se passa totalmente no nosso país é um dos meus sonhos. O que posso te dizer é que estamos trabalhando com todos os times globais da Ubisoft na tentativa de conseguir isso.

Assassin's Creed Origins

NGP: A Ubisoft teve sua maior presença na BGS em 2017. Qual você acredita que será o grande jogo de vocês neste ano, por aqui?

BC: Nosso catálogo está muito rico, mas acredito em Assassin’s Creed Origins. Toda a base de fãs estava esperando um jogo assim, mais bonito e com um sistema de combate aprimorado, trazendo uma camada de RPG. Além disso, os mistérios, a cultura e a história egípcias devem capturar um público mais casual também.

Essas pessoas não se interessam em passar 20 horas matando tartarugas, robôs ou alienígenas. Elas querem algo mais bonito e que traga conteúdo, que seja digno do tempo investido. Por isso, acredito que o título vai vender muito.

Além disso, no ano que vem, temos Far Cry 5, que conta com a base de fãs mais fieis entre os produtos da Ubisoft. Desde o terceiro game da série, e mesmo em Primal, que foi muito diferente, os jogadores permaneceram conosco. E agora que ela retorna ao padrão da série, deve bombar também.

NGP: Ano após ano, a Ubisoft continua se mostrando bastante visionária em seus jogos, trazendo títulos com temas bem atuais, mesmo estando há anos em desenvolvimento. Qual a reação de vocês quando viram o tema do jogo aparecendo nas páginas dos jornais?

BC: O discurso de Far Cry 5 é muito forte, com supremacistas brancos e extremismo religioso. Nós estamos muito cientes dos riscos e de nossas responsabilidades. Por isso, temos um comitê editorial que trabalha com os times de desenvolvimento analisa todos os problemas éticos que podem estar por trás da ideia de cada jogo.

Quando a realidade nos surpreende dessa forma, é importante lembrar que nós fazemos video game, não programas políticos ou proselitismo religioso. Produzimos entretenimento pelas mãos de times multiculturais, que trabalham com muito carinho e de forma a respeitar a todos.

Além disso, fico feliz que The Division não tenha acontecido ainda, mesmo com o Natal deste ano já estando bem perto. [risos]

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