Blasphemous

por Ulisses Lopes da Silva

Blasfêmia de jogar

Entre tantos projetos de Metroidvanias no Kickstarter em 2017, estava difícil garimpar uma joia que se destacasse dos demais. Foi no Twitter que um time pequeno de espanhois mostrava uma Pixel Art muito bem trabalhada, em um GIF animado de um cara grotesco com máscara da Idade Média decepando um pobre flagelado medieval. Em outra cena, um bebê cego gigante pegava esse personagem maldito e o desmembrava como se faz a um inseto, com muito sangue em uma ambientação gótica católica pesada.

As imagens fizeram muito alvoroço e, assim nasceu, o hype de Blasphemous, um game de plataforma que mistura muitos elementos além do Metroidvania, com uma mitologia familiar para nós, latino-americanos, e muita heresia!

Muita calma aos mais sensíveis religiosamente, pois o jogo não aborda nenhum personagem que as pessoas cultuam como sagrado. O foco é o universo expandido da visão romana sobre a demonologia, criada pela literatura fantástica da Idade Média, que inspirou pintores com suas famosas visões do inferno e epopeias famosas como “O Inferno de Dante”, que remontam aos pecados e expiações por meio de torturas ou auto-flagelação, sem citar nome de deuses, santos ou autoridades.

Blasphemous é uma obra-prima com peso gráfico e cultural, cujos mistérios violentos os jogadores terão o maior prazer em desvendar.

Blasphemous é um romance jogável sobre um herói chamado Penitente, que para expiar o pecado do mundo, vai atrás dos pecadores para executá-los em nome da santidade. O título aborda a relação humana com as regras de conduta religiosa e quem não faltou às aulas de catecismo vai perceber muitas referências.

O título usa mitologia e referências históricas, portanto reais, de como se manifestava a cultura medieval europeia quanto à religião. Por isso, os inimigos remetem a pessoas torturadas, presbíteros pecadores, hereges condenados, penitentes e seres mitológicos para impressionar as pessoas, misturando um sagrado violento com o profano criado pelo homem.

O jogo não acontece em um mundo real, mas numa simulação de Espanha medieval durante a Peste Negra, que foi assimilada como uma punição divina pelos pecados humanos e, assim, liberando fome, doenças e claro, demônios.

Como já se pode notar, a violência é o grande diferencial neste jogo de plataforma não-linear, como os criadores o chamam, pois esse aspecto da execução era tratado na época como uma benção. Pregava-se que quanto mais se sofre, mais eficiente é a remissão dos pecados e, por isso, o gore é explícito e não tem referencial cômico como em Mortal Kombat. Blasphemous está mais para Bloodborne ou um Dark Souls 2D, com a somatória de uma referência gráfica que remete ao pavor e desespero psicológico, algo muito original.

A saga de um desgraçado

Brandindo sua espada Mea Culpa, o Penitente precisa purificar todos os pecadores com muita violência e, assim, encontrar a paz e purificação para seus pecados. Ele foi o único escolhido, entre tantos, para cumprir a missão de auxiliar outros penitentes e romeiros que buscam o mesmo caminho da purificação, mas somente ele tem como resolver as coisas do modo mais efetivo: na porrada.

Para isso, o jogador conta com as evoluções dos ataques e o ganho de novas habilidades como projétil, esquiva, ataque carregado, encompridar o combo básico, etc. Nada que um jogo de plataforma contemporâneo não tenha nos mostrado, com o adicional do botão de defesa que pode virar contra-ataque.

Apesar de tantas referências a jogos atuais, o mais homenageado é um velho jogo da Capcom chamado Demon’s Crest, de 1994, onde se controla o vilão icônico de Ghost’n Goblins, o capeta alado Firebrand, que sai em uma saga escapando da prisão em busca de poder e glória num mundo demoníac. Ele já começa enfrentando um chefe, exatamente como em Blasphemous, conseguindo novos itens de aumento de energia vital e mágica, recolhendo muita tralha pelo caminho, junto com a fixação por destruir estátuas e cálices gigantes.

O título Metroidvania começa difícil e vai ficando cada vez mais desafiador, o que de forma alguma é algo ruim

Claro que o Penitente não voa e dispara projéteis pela boca, mas o visual, trilha sonora e estrutura de estágios são muito parecidos. Nada que tire o brilho da originalidade do jogo, ao contrário.

Temos um jogo que começa difícil e vai ficando cada vez mais desafiador, o que de forma alguma é algo ruim. De maneira simples, o título proporciona uma gama de recursos de combates, precisão nos comandos e evolução constante que você vai até pedir por mais desafios instigantes, para testar sua força, habilidades e novos truques. Em menos de 30 minutos, você já terá caminhado por ambientes variados e enfrentado variados inimigos que requerem uma abordagem diferente para cada tipo de ataque.

Com a IA dos inimigos bem aplicada, o maior desafio será passar pelas fases do que matar os chefes, com o cenário exigindo tanto que enfrentar três demônias em um cenário em constante elevação com fogo na base não parece uma tarefa tão difícil. O jogador nem se importará que os frascos de energia não recuperam 100%, pois já superou algo pior. Claro que enfrentar os chefes é um desafio divertido, mas como se pode focar somente em um inimigo, tudo fica mais suave, diferente de enfrentar quatro monstros que desaparecem e voam em uma plataforma pequena central com chão que desmorona ao redor.

Ah, morre diabo!

O foco é o universo expandido da visão romana sobre a demonologia, criada pela literatura fantástica da Idade Média, abordando a relação humana com as regras de conduta religiosa.

As animações das cutscenes dão aquele ar de terror a mais, mesmo mostrando imagens que deveriam representar santidade e pureza. Os efeitos especiais são bem pesados e a trilha sonora dá aquele ar de cripta, mas é a composição dos cenários que vai imergir o jogador no inferno dos livros medievais, com pessoas empaladas, queimadas, congeladas em pavor, degoladas nuas e todo tipo de desgraça que se pode demostrar com detalhe.

Blasphemous

Como já referenciado antes, a violência é constante de ambos os lados e é possível fazer “Fatalities” nos inimigos caso seu ataque seja crítico e eles fiquem com pouca energia restante. Já deu para perceber que a Pixel Art é impecável, e o pessoal do The Game Kitchen não poupou esforços.

Eu não sei como pessoas sensíveis vão encarar esta obra-prima devido ao peso gráfico e cultural, mas a campanha bombástica no Kickstarter e tantos videos sobre mostram que Blasphemous já é um sucesso garantido de crítica e público. O título traz gameplay sólido e fases variadas, técnicas de combate inteligentes e variadas, história instigante com referências culturais e muita diversão em cada desafio. Os jogadores terão o maior prazer em descobrir esses mistérios até matar o diabo!

O jogo foi testado no PC, em cópia cedida pela Team17 Digital Ltd.