Às vezes, uma segunda chance é tudo o que se precisa. Quantas vezes você não se arrependeu de algo e tudo o que você mais queria era voltar a passado para tentar de novo? Fazer tudo diferente, corrigir seus erros e seguir por um rumo totalmente oposto. Todo mundo já sonhou em controlar o tempo para consertar algo em sua vida. E, com Life is Strange, a Dontnod conseguiu sua tão desejada segunda chance.
Com o novo jogo, o estúdio pegou parte do conceito de Remember Me – no caso, o controle de memórias – e o adaptou para algo com bases muito mais simples e sólidas, evitando cometer os mesmos deslizes de 2013. E o resultado é excelente.
E não é complicado entender o porquê. Apesar de toda a fantasia em torno do controle do tempo, a premissa de Life is Strange é assustadoramente humana: o arrependimento. Todos nós carregamos uma culpa dentro de nós e temos de lidar com as consequências disso. Seja por ter feito algo, deixado de falar alguma coisa ou mesmo por uma escolha equivocada, esse sentimento sempre está ali, nos corroendo por dentro. E, assim como as habilidades da protagonista, às vezes é preciso de um elemento que desconstrua toda nossa realidade para que possamos ter coragem de tentar mais uma vez e pôr as coisas em seu eixo – por mais assustador que isso tudo seja.
No fim das contas, todos nós só precisamos de uma segunda chance.
E essa “desconstrução” começa exatamente na jogabilidade. Só que, em vez de quebrar a lógica de escolhas e consequências que a Telltale introduziu aos Adventures modernos, a Dontnod usa a noção do Efeito Borboleta para aprofundá-lo.
Parece um pouco confuso à princípio, mas basta começar a brincar com passado e presente para entender o quanto isso reflete no futuro. Sabe aquelas decisões que você tomava em The Walking Dead e se arrependia logo em seguida? Pois elas continuam existindo em Life is Strange, só que de uma forma diferente. Afinal, o poder de controlar o tempo permite que você encare todas as consequências imediatas de suas escolhas, porém você ainda terá de decidir por uma.
Saber previamente as respostas às suas ações não torna as coisas mais fáceis. Na verdade, torna tudo ainda pior, pois você se sente muito mais responsável pelo desencadeamento daquilo e ainda mais pelas possibilidades que você descarta. Visualizar diferentes futuros e ter de escolher somente um é uma sensação horrível.
Isso sem falar que, como estamos falando do primeiro de cinco episódios, ainda é muito cedo para prever o real peso de algumas decisões. Enquanto algumas escolhas parecem bobas e de pouca importância, outras deixam claro que só vamos sentir o real impacto mais para frente. E, mais do que isso, nem sempre aquela boa impressão criada agora vai resultar em algo positivo nos episódios seguintes.
Por outro lado, o controle do tempo serve também para criar situações diferentes dento do jogo, servindo como ferramenta de solução de alguns puzzles. Não se trata de nada muito complexo ou inovador, mas da velha ideia da tentativa e erro sendo aplicada na brincadeira entre presente e passado. Ainda assim, uma saída justa para não limitar o recurso apenas a ouvir diálogos diferentes.
Só que, para tornar todos esses sentimentos críveis e humanos, é preciso de um rosto. E, nesse quesito, Life is Strange se sai muito bem. Para isso, a Dontnod nos apresenta Max, uma menina tímida que um belo dia descobre de ser capaz de voltar no tempo e desfazer algumas ações. Sabe aquelas vezes em que você sonhou em ter um Ctrl+Z para a vida real? Pois é mais ou menos assim que funciona.
É a partir disso que você começa a conhecer um pouco mais da história da garota e dos demais alunos de Blackwell Academy. E é quando as coisas começam a ficar realmente interessantes.
Isso porque os poderes de Max são apenas uma alegoria para tratar de arrependimento, decisões e consequências e, acima de tudo, relacionamentos humanos. E, nesse ponto, Life is Strange não deixa nada a desejar àquilo que vimos nos jogos da Telltale ou em qualquer outro título.
Boa parte dessa condição se dá por conta da dinâmica entre a protagonista e sua melhor amiga de infância, Chloe, com quem ela não fala há alguns anos desde que se mudou para Seattle. E é quando ela volta para a cidade onde cresceram que toda a culpa pelo passado começa a surgir e o relacionamento entre elas ganha forma.
Pode parecer um drama adolescente bobo, mas é exatamente ao apostar na banalidade da vida cotidiana que a Dontnod mais acerta ao criar empatia com o público. Embora as questões de Remember Me fossem bastante atuais e pertinentes, é ao discutir sobre amizade, aceitação e abandono que Life is Strange mais consegue dialogar com o jogador. Todo mundo já foi ou ainda é um pouco de Max, tentando ser aceito, achar seu lugar e, acima de tudo, lidar com suas culpas e arrependimentos.
Só que o jogo está muito longe de ser apenas um episódio interativo de Malhação. São essas questões mundanas que fazem com que o jogador se identifique com aqueles personagens e se importe com aquele mundo, dando muito mais peso às suas escolhas. E, mais do que isso, a fácil relação do universo de Life is Strange com o nosso ajuda a tornar sua mensagem ainda mais forte.
E o ponto mais importante disso tudo é que, apesar da habilidade de dar Ctrl+Z em qualquer uma de suas ações, Max ainda precisa lidar com escolhas e com as consequências de suas decisões. Mesmo com o poder que todos nós sonhamos em ter, ela não se isenta dessa responsabilidade. A diferença é que esse dom vai ajudá-la a quebrar a redoma que ela criou para si, fazendo-a sair de seu casulo e a encarar tudo aquilo que ela havia decidido ter enterrado no passado –justificando o nome do primeiro capítulo, Chrysalis.
Life is Strange traz ainda outros momentos de “conexão” entre personagem e jogador. O game possui vários momentos de respiro, ou seja, aqueles em que você pode deixar a missão principal de lado para conhecer um pouco mais daquele mundo. Max está a todo momento compartilhando seus pensamentos com você, seja com impressões sobre seus colegas ou mesmo sobre sua vida e seus demônios.
Assim como já acontecia em Beyond: Two Souls, por exemplo, você pode simplesmente sentar em uma mureta e ficar observando a paisagem ou deitar na cama para esvaziar a cabeça por alguns instantes antes de ir até seu próximo ponto de interesse. E, por mais que pareçam perda de tempo, essas pequenas ações são as mais interessantes de todo o jogo, pois nos ajuda a compreender a visão de mundo da protagonista e também a entendê-la um pouco mais.
E, embora ainda estejamos muito no começo desta história e sendo devidamente apresentados a seus personagens, já é possível visualizar uma trama maior que se desenha sutilmente em meio à banalidade da vida cotidiana. Além do próprio poder que Max desenvolve de repente, há o mistério por trás do desaparecimento de uma aluna de Blackwell Academy e até mesmo algumas estranhas visões que a protagonista tem do futuro. No entanto, essas questões são apenas pinceladas e servem somente como aperitivo para o que está por vir.
Mais do que isso, Life is Strange aborda também questões bastante delicadas e bem polêmicas, como bullying, drogas, violência doméstica, aborto e até mesmo estupro. Novamente, por ser o primeiro episódio, todos esses temas são tocados apenas de maneira sutil e superficial, mas é fácil perceber o quanto eles vão crescer com o desenvolvimento da trama. E é muito bom ver os video games amadurecendo e lidando de maneira inteligente com assuntos tão adultos quanto esses.
Outra segunda chance que a Dontnod decidiu abraçar está no lado artístico. Enquanto Remember Me tentou seguir um lado mais realista e hiperdetalhado para nos mostrar uma Paris futurista, Life is Strange aposta em algo bem mais estilizado para nos contar essa história atual. E a decisão não poderia ser mais acertada.
Tanto que o jogo vem chamando a atenção por conta dessa estética desde seu anúncio, uma vez que o mundo criado pela produtora chama a atenção por conta de seu traço e suas cores. Ele deixa de lado os detalhes e as texturas para criar algo mais próximo do desenhado que se encaixa bem com o espírito dos personagens.
E o resultado final é bastante positivo. Life is Strange consegue ter um viés bem mais artístico e sem ignorar a física e, sobretudo, o desempenho que fazem da Unreal Engine 3 ser um dos motores mais populares e versáteis do mercado. O único ponto negativo nesse quesito fica por conta das expressões faciais, que está bem mequetrefe em personagens secundários e com vários problemas de sincronia labial.
Contudo, a arte do jogo não seria nada sem a sua trilha sonora. São canções flertam bastante com um estilo predominantemente indie folk que permeia todo o jogo, fazendo dele um típico “filme indie” – como o próprio trailer já havia antecipado.
Embora o primeiro episódio de Life is Strange, Chrysalis, possa ser terminado em pouco mais de 1h30, ele tem muito a oferecer a quem quiser se dedicar um pouco mais a ele do que simplesmente seguir as missões básicas da história. E não me refiro apenas aos dramas e histórias paralelas dos personagens secundários, mas de todos os temas e questões que o game levanta.
Ele consegue abordar esses assuntos de maneira inteligente, se aproveitando da narrativa envolvente e do ótimo recurso de jogabilidade para criar a profundidade necessária tanto para que nos importemos com aquelas pessoas como para que nos vejamos na pele daqueles personagens.
Embora a história principal ainda esteja no começo e com muitas coisas a serem desenvolvidas, Life is Strange já atingiu uma maturidade que poucos jogos ousaram alcançar – inclusive os tão aclamados títulos da Telltale.
Mais do que isso, ele consegue usar sua jogabilidade para dialogar com o próprio jogador, lembrando um pouco daquilo que havíamos visto em Braid. Só que, ao contrário do jogo de plataforma que tem uma visão mais pessimista sobre essa ideia de voltar atrás e tentar de novo, Life is Strange encara as coisas de forma mais positiva, quase que motivacional. Ele nos faz olhar para nosso passado em busca de coisas que poderíamos consertar se tivéssemos um poder semelhante. De sair do casulo que criamos para nos proteger da culpa e seguir em frente. Que criemos nossas próprias segundas chances.