Deus Ex

Deus Ex: Mankind Divided

por Caio Vicentini

Humanidade redefinida

A ficção científica sempre foi um ótimo lugar para estudar como nossa sociedade se comporta diante de novas tecnologias, e o que ela própria diz sobre nós. Séries de televisão como “Twillight Zone” e “Black Mirror” são ótimas em fazer o trabalho desconfortável de mostrar o que às vezes não gostamos de ver. Deus Ex: Mankind Divided usa a segregação cibernética por conta de enxertos biônicos para mostrar como podemos nos separar com medo do desconhecido, e como esse temor pode aflorar o preconceito e o conflito.

Isso não é dizer que o novo jogo da série cyberpunk da Eidos tenha como o único propósito fazer um comentário social, mas entre tantos jogos que usam da ficção científica como mera desculpa para colocar gadgets inexplicáveis e batalhas futuristas, é revigorante ver, finalmente, um jogo fazer uso dela e ter algo a dizer no processo.

A história de Mankind Divided se passa dois anos após os eventos de Human Revolution, com Jensen saindo da Sarif Industries e entrando em uma força tarefa da Interpol, especializada em ataques terroristas envolvendo aprimorados. Enquanto no primeiro, o clima era de possibilidades com os avanços que os aprimorados traziam, neste jogo o ambiente é de tensões e conflitos que começam a gerar uma grande cisma na humanidade. Por conta do Incidente do jogo anterior, na qual todos aqueles com aprimoramentos sofreram um curto circuito e foram levados à insanidade, matando milhões de pessoas no processo, os humanos temem a presença de aprimorados em ambientes públicos.

Uma das melhores coisas na ambientação é justamente mostrar com sutileza como essa separação de grupos acontece. Em Praga, onde grande parte do jogo se passa, os metrôs separam vagões para pessoas normais e aquelas com aprimoramentos (com a polícia indo atrás de Jensen caso ele desobedeça), além de locais proibidos e revistas obrigatórias da polícia nas ruas. Os paralelos a serem feitos com nossa sociedade e história são praticamente inevitáveis.

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Mas o clima de tensão tem um culpado por trás, aliás, um que vem se revelando desde o jogo anterior e finalmente deu as caras agora. Os Illuminatis se revelam no final de Human Revolution como aqueles que vêm manipulando a mídia e as grandes indústrias para tomar controle dos rumos da sociedade, mas com Jensen descobrindo o grande plano deles, finalmente poderíamos ver o confronto com os grandes vilões da série se desenrolar. Ou assim era de se esperar.

Muitas perguntas e poucas respostas

Mankind Divided tem um problema de ritmo sério quanto ao seu enredo, abrindo inúmeras pontas que não são amarradas, e terminando de maneira abrupta. Ao ver incrédulo os créditos aparecendo, a sensação deixada é a mesma de quando finalizei a versão vanilla de Destiny.

É revigorante ver, finalmente, um jogo fazer uso da ficção científica e ter algo a dizer no processo, e não usar isso como mera desculpa para colocar gadgets inexplicáveis e batalhas futuristas.

Muitos acontecimentos são citados repetidamente, mas sem nenhum desfecho, como o fato de Jensen não se lembrar de eventos dos dois anos que separam os jogos, e receber nesse intervalo aprimoramentos experimentais sem consentimento. A aliança de Jensen com o grupo de hackers da Juggernaut Collective nunca é totalmente explicada, e pouco auxilia para o desenvolvimento da história.

Mas nem tudo está perdido nesse departamento, pois quando se trata das decisões que podem ser tomadas, e suas ramificações, o jogo mostra que a Eidos aprendeu com seus erros em Mankind Divided. Tudo que é feito, ou que deixa de ser feito, é relevante para os rumos da história, dando um peso quando nos questionamos se tomamos a decisão certa. O novo sistema de diálogos, na qual é preciso ler e interpretar o comportamento de personagens chave da história, para conduzir os rumos da conversa a seu favor, é tão tenso quanto recompensador quando conseguimos o resultado desejado.

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Ambiente opressor

Saindo de Detroit e se mudando para a República Tcheca, o jogo se passa quase que inteiramente em Praga, uma cidade fortemente anti-aprimorados, com polícia e barricadas em todo lugar. A mudança é bem vinda, pois se afasta da paleta de cores amareladas, muito constantes no jogo anterior. Elas ainda se fazem presentes em alguns trechos do jogo, mas há uma variedade cromática muito maior dessa vez, principalmente andando na cidade à noite, com os bares e lojas cheios de neons.

Os visuais e texturas são impecáveis, fazendo passear pela cidade (quando a polícia não está te revistando) um deleite para os olhos, que contam com ótimos efeitos de iluminação tanto em ambientes fechados como abertos. É de se elogiar também como foi feita a mistura de elementos mais modernos, como as estações de metrôs e prédios corporativos, com elementos mais tradicionais da arquitetura europeia, nas residências da periferia.

Por conta do escopo menor em relação à Human Revoluton, os desenvolvedores tiveram a chance de tornar Praga um lugar com diversas rotas e caminhos a serem descobertos. Fazer missões na cidade é extremamente recompensador para aqueles que exploram cada centímetro dos lugares, achando dutos de ventilação e paredes frágeis para abrir caminho.

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Os personagens também têm um detalhamento incrível, com atenção para dar a impressão de artificialidade nas peças mecânicas, e não apenas uma textura metalizada em cima da pele. O mesmo não pode se dizer sempre das animações, principalmente quando a câmera aproxima-se do rosto de NPCs durante os diálogos e podemos perceber os problemas de sincronia labial.

Mankind Divided tem um problema de ritmo sério quanto ao seu enredo, abrindo inúmeras pontas que não são amarradas, e terminando de maneira abrupta.

Ainda que a dublagem original tenha seus problemas, eles não se comparam com quão atroz ficou o resultado na localização. Com vozes que não combinam com seus respectivos personagens e até mesmo uma falta de emoção em algumas das falas, a impressão é que foi um trabalho feito às pressas e sem muito cuidado.

Armas do futuro

Ainda que os aprimoramentos não tenham a devida explicação dada dentro da história, eles fazem uma ótima adição para o combate do jogo. Assim como edições anteriores, o jogador pode escolher diversas abordagens para as missões, indo completamente sorrateiro e evitando contato com o inimigo, ou destroçando tudo que vê pela frente.

Para isso, Jensen conta com uma árvore rica de habilidades, englobando habilidades de combate, hacking e de movimentação em geral. É quase impossível conseguir todas as habilidades sem recorrer às microtransações do jogo (que apenas descobri a existência depois que eu terminei a campanha pela primeira vez), então é necessário ter em mente que tipo de jogabilidade se encaixa com o seu perfil.

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As habilidades são muito interessantes e quebram a monotonia de se infiltrar e atirar em cada um dos inimigos, com pequenas rajadas de raios que desnorteiam os inimigos até uma blindagem temporária contra munições pesadas. Mas o jogo acaba por recompensar mais quem escolhe uma abordagem mais cautelosa ao recompensar com mais pontos de experiência por terminar cada missão sem ser percebido. É um detalhe pequeno, mas que a longo prazo pode desencorajar a curiosidade de explorar possibilidades que o jogo tanto incentiva.

Apesar de seus tropeços na história, Deus Ex: Mankind Divided é mecanicamente e tematicamente o melhor da série. Com uma grande variedade de opções de customizações e um level design a altura de todas essas possibilidades, é uma entrada digna para a série.

O jogo foi analisado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Square Enix.