Você é um funcionário público numa repartição de reciclagem de arquivos em plena Inglaterra dos anos 1960, numa sala ambientada com toda aquela decoração colorida, geométrica e cafona da época. Seu trabalho consiste em aprovar ou censurar notícias de jornais antigos, sendo que as felizes são salvas, e as trágicas, ou ruins, reprovadas. Uma reportagem te chama a atenção: os irmãos Hastings posam lado a lado, junto à manchete que anuncia que ambos ganharam um prêmio em agradecimento à coleta de lixo promovida na cidade.
Ao que tudo indica, você é o irmão mais novo, Arthur Hastings. Sua visão subitamente turva num amarelo sépia, e sons distantes de choro e lamentação remetem a uma lembrança infeliz, sugerindo que talvez aquele dia de condecoração não tenha sido assim tão salutar. À sua esquerda, na mesa de trabalho, um frasco de comprimidos abre possibilidade à então primeira importante escolha do jogo: tomar as pílulas Joy (alegria) e se livrar do sentimento angustiante, ou se recusar a tomá-las, e optar por manter viva a memória.
Assim começa We Happy Few, da desenvolvedora Compulsion Games, cujo gameplay parcial esteve presente no estande da Xbox durante a E3, com estreia marcada para 26 de julho próximo, também disponível na Steam. Sem muito alarde, o lançamento despertou a curiosidade do público no boca a boca, tendo sido, no último dia da feira, bastante difícil conseguir agendamento para teste. Um game que me deixou uma sensação raramente experienciada em outros jogos: o de horror arrebatador, que repele mas também instiga para que se descubra o que aconteceu ao protagonista.
Joys são drogas em comprimido que ajudam os residentes da cidade fictícia de Wellington Wells a viver civilizadamente, sob uma falsa premissa e projeção visual de ordem e felicidade. Sabe-se que um acontecimento trágico, chamado de “very bad thing” (coisa muito ruim), destruiu o município e matou parte considerável da população. Para lidar com a reminiscência dessa dor, os sobreviventes se entorpecem constantemente, o que os lança numa realidade virtual patológica, de pessoas sempre bem-humoradas, comida saborosa e paisagem urbana agradável, nada próximo à desoladora vida prática.
No comando de Arthur, o jogador experimenta, ao cessar a posologia da droga, sair pela primeira vez da matrix em que viveu por sabe-se lá quantos anos, e sofrer todas as consequências de uma violenta volta à realidade e aos desdobramentos da catástrofe “very bad thing”. O primeiro (e pior, ao meu ver) impacto da lucidez recobrada se dá numa festa em seu ambiente de trabalho, em que colegas surram e devoram doces de uma pinhata, ilusão incindida sobre um grande, destroçado e ensanguentado rato, do qual todos se fartam.
Diante da náusea de Arthur, as personagens se dão conta de que ele não está sob o efeito da Joy, e passam a persegui-lo para que se medique imediatamente. O intérprete então foge com o objetivo de cruzar uma ponte que conecta a cidade a outras municipalidades, em busca de respostas. Além, é preciso compreender como sua história está relacionada ao grande trauma, como as circunstâncias desencadearam a pavorosa situação presente, e o que a sanidade restabelecida o permite fazer em prol das outras pessoas.
Muitas não tem acesso à Joy, e vivem doentes, zumbis existenciais perambulando por Wellington Wells. A população sofre de depressão coletiva e amnésia dissociativa, e a desorientação muitas vezes a torna hostil, fazendo com que invista contra Arthur para matá-lo, o que enquadra o jogo numa espécie de survival roguelike.
A jogabilidade abarca a possibilidade de confecção de itens e interação com o mundo livre, fazendo com que cada casa arruinada tenha algo de novo a se explorar, e moradores com quem dialogar. As personagens têm feições pitorescas, de máscaras à la Guy Fawkes, quando sob o efeito da Joy, ou são um retrato da depressão causada pela abstinência da pílula. O visual do jogo é bizarro, perturbador, incitante ao desconforto que o próprio Arthur deve sentir tanto diante da alegria superficial quanto do semblante devastador dos homens despertos.
A associação temática com o presente é inevitável. We Happy Few aborda, acima de tudo, uma visão aristotélica de como a ausência de autocontrole e atribuição da felicidade a outrem (bem ou indivíduo) deslegitimizam a mesma, fazendo com que os habitantes daquele universo sustentem um estado de espírito inexistente, utópico. Poderia essa ser uma crítica ao consumismo, aos inúmeros mecanismos de fuga do ser humano, à inabilidade de lidar com suas próprias emoções, à força policial inglesa, a tudo isso.
O jogo parece compor aquela categoria especial de entretenimento repreensor, que talvez cause mais desconforto do que distração. Seja esse o caso, a Compulsion Games provavelmente cumpriu o seu papel.