O ano era 1999 e quem era rico o suficiente para ter computador e internet em casa não tinha muita coisa para fazer, visto que além do Bate-Papo UOL e sites com teorias da conspiração e emuladores, as opções não iam além de consumir lazer limitado a 256 Kbps de poder de download com seu discador IG. Isso até a chegada de um motor gráfico que facilitava, para quem entendia de programação, a criação de jogos de luta como vistos nos fliperamas.

A tecnologia vinha com todos os recursos clássicos como ajuste de velocidade, configuração de controles, dificuldade, batalhas simultâneas de até quatro personagens ao mesmo tempo e o mais incrível: poder criar e mesclar personagens de jogos ao seu gosto ou criar originais! O MUGEN havia nascido e mudaria o mundo dos jogos de luta.

Produzido pelo time Elecbyte, o MUGEN impactou os fãs de jogos de luta que podiam ter, de graça, uma engine que permitisse dar uma aplicação útil para os frames de personagens de jogos de luta que podiam ser ripados dos games emulados. Estávamos na melhor época pra esses jogos, o fim dos anos 1990, sem falar que dava para editar os gráficos dos personagens e criar outros novos usando o Paint, do Windows, e programar no Bloco de Notas, antes de criarem ferramentas de auxílio como o Fighter Factory.

Claro que, no começo, poucos personagens eram decentes e a maioria era um bando de assombrações sem regras ou lógicas de equilíbrio entre ataque e defesa, mesmo em jogos fechados. Entretanto, sempre foi divertido jogar essa bagunça e os fãs de anime foram os mais esforçados nessa divulgação; quem for mais velho deve se recordar de jogos de Dragon Ball Z ou Cavaleiros do Zodíaco que vinham em CD-ROMs de revistas de informática como brinde.

É óbvio que, com uma ferramenta que trazia não só os moldes pra se construir seu próprio jogo de luta mas também personagens e cenários, mostrando como a engine funciona, uma boa dose de independentes ia surgir. Foi assim que o mundo conheceu Kung Fu Man, o template que deu origem para vários personagens que viriam influenciar até as grandes empresas, que falaremos mais adiante.

Por enquanto, vamos nos ater ao nascimento de uma lenda que completa vinte anos em 2019 e ainda resiste mesmo com tantas opções mais modernas, que permitem monetização e acesso oficial a consoles quando o assunto é criar jogos de luta.

Não tem como falar de MUGEN e a base de criação de milhões de personagens sem citar os criadores que se destacaram com seu talento e capacidade de criar, com poucos recursos disponíveis na internet. Um dos mais talentosos, que impressiona até hoje, era Reubenkee, o gênio de Cingapura que extraía o máximo que a engine podia fazer. Seus três personagens que ainda são referência na cena: Evil Ryu, Evil Ken e Dragon Claw, um lutador original. Infelizmente, ele veio a falecer em 2007 por causa de um acidente, mas suas obras estão disponíveis até hoje, um curto e valioso legado.

Outros criadores das antigas que têm destaque até hoje são em maioria brasileiros como O Ilusionista, Fervicante e ON/OFF. Se você baixar personagens Capcom com muitos efeitos especiais ou versões KOF de personagens inéditos ou originários de várias franquias, certamente é obra de um destes três citados.

Hoje em dia, os de maior destaque são os membros do projeto Hyper Dragon Ball Z, que ganhou atenção até da Bandai Namco, que, dizem os boatos, teria se inspirado neste game para lançar Dragon Ball FighterZ. A versão MUGEN, entretanto, já tem mais de cinco anos e vem surpreendendo com a qualidade mostrada em cada detalhe, tanto nos personagens quanto nos cenários. A parte divertida é acompanhar essas evoluções de perto.

Mas onde essas pessoas se reuniam para trocar ideias sobre projetos, conseguir recursos como vozes de personagem, efeitos sonoros e aprender a programar no MUGEN em um período em que não existiam redes sociais? Foi aí que os fóruns da internet bombaram, principalmente os de criação de games. Junto aos de RPG Maker, os de MUGEN tinham milhares de visitações diárias e eram vários.

Nesse cenário, também, muitos dos mais famosos eram brasileiros, como o MugenBr, Brazil Mugen Team e Pão de Mugen, onde os maiores criadores se reuniam e compartilhavam conhecimento e também brigavam entre si, tudo pelo crescimento do cenário de criação de personagens gerando tretas homéricas. Acho que é devido a esses temperamentos que a engine era mais voltada para personagens individuais e poucos projetos para games fechados existem mesmo após 20 anos. A maioria deles era descontinuado, na época, por causa dos “conflitos de interesses”. Até hoje sinto falta de Art of Fighting 4.

Certamente podemos atribuir o fim dos fóruns de MUGEN a dois fatores: as pessoas que começaram em 1999 ou 2000 já enjoaram ou as tarefas da vida adulta os impedem de ficar tanto tempo criando personagens sem retorno financeiro. Temos também as redes sociais, que dominaram a atenção dos internautas, principalmente da geração Z.

Claro que ainda existem sites e fóruns sobre o assunto, mas como eram antigamente, poucos resistem, como o Mugen Guild, certamente o mais famoso mundialmente, seguido do Infinity Mugen Team, onde estão grandes projetos de jogos completos, além do OpenBOR, engine de criação de jogos estilo Beat’Em Up, onde muitos criadores estão trabalhando em projetos de FanGames que atraem a atenção dado seu esmero, como o Avengers United Battle Force e o jogo do He-Man que já citamos aqui no site.

As palavras de DeleteBR em sua carta de despedida é cheia de agradecimentos, pois só quem se engaja em projetos de criação de games dependendo apenas do apoio e esforço de amigos digitais sabe como isso funciona. Trabalhar de madrugada e só pelo prazer da realização e compartilhamento é um espírito esse que migrou para a indústria dos jogos indies, assim como muitos criadores e seu projetos pessoais e originais, vide Trajes Fatais.

Na matéria sobre a decadência dos jogos de luta, mostramos que ocorreu um grande intervalo de lançamentos entre 2001 e 2008 de grandes títulos de jogos em 2D, que quando saíam, eram em sua maioria 3D, pois as empresas estavam largando o sistema de fazer jogos em Pixel Art dada a evolução gráfica dos consoles. Hoje, só a Arc System Works mantém os Sprites 2D em seus BlazBlues, Persona Arenas e Under Nights, pois até a obra-prima Guilty Gear migrou pro 3D.

Certamente, dada essa escassez de novidades, os criadores passaram a se aventurar na edição e conversão de personagens para estilos gráficos diferentes, como um Ryu no estilo King Of Fighters XIII ou Ryo Sakazaki no estilo Street Fighter III, mas os grandes destaques eram os personagens originais ou edições incomuns que deram fama ao MUGEN mesmo após 10 anos de existência.

Certamente você já viu Homer Simpson lutando contra Peter Griffin, Ronald McDonald enfrentando o velhinho do KFC ou, ainda, personagens que eram somente citados em jogos oficiais e ganharam vida graças a esses heróis do mundo indie. Também temos personagens de jogos 3D adaptados para 2D e não devemos esquecer da maior característica dos MUGENs: a bagunça de centenas de personagens

Quem não está habituado com a cena pode estranhar jogos com mais de 100 ou 1000 personagens, pois alguns criadores disputam qual jogo tem mais deles na tela de seleção. O maior que encontrei foi de 3.200 personagens, o que deixa os quadros de seleção minúsculos e quase irreconhecíveis. Em se tratando de projetos mais organizados, temos alguns que assumem o papel de continuações de franquias famosas ou spin offs feito por fãs e o mais impactante, talvez o que chamou a atenção das empresas grandes, foi o épico King Of Fighters Zillion.

Sofrendo atualizações há quase 10 anos e com um layout e efeitos visuais às vezes superando a SNK, o projeto colocou personagens antigos, novos e originais do time de criação em um jogo fechado, usando artwork especialmente criada para cada um dos personagens que receberam atualizações baseadas nos títulos oficiais mais recentes. Temos Iori sem chamas, Another K’, Alba Meira, de KOF Regulation A, e até Lucy Fernandez, que na época ganhou o prêmio de melhor personagem do ano a ponto de a Arc System se basear nela para criar Litch Faye Ling, de Blazblue.

Como a SNK encerrou sua produção de personagens no estilo 2D, certamente as edições serão o único meio de produzir conteúdo novo baseado nos jogos mais recentes, mas o excesso de detalhes desestimula a se fazer um personagem completo com suas dezenas de animações.

Além de juntar personagens com sistema de luta diferentes em um mesmo jogo, com cenários de games clássicos ou originais, essa falta de limites na criatividade criou lutadores que inspiraram até grandes empresas. Além da Lucy Fernandez que já falamos na matéria sobre Trajes Fatais, temos Kyozalid, que inspirou Nameless de King of Fighters 2002 como exemplo.

Vale lembrar que muitos destes criadores também foram trabalhar em empresas de games e a SNK estava contratando Mugen Makers para seu time de criadores anos atrás, resultando em KOF 14, que, apesar dos seus tropeços iniciais, conseguiu cumprir sua missão. E como promessa é dívida, a SNK investiu em mais títulos da antiguidade dela, começando por Samurai Spirits.

Os anos se passaram, alguns criadores conseguiram espaço na indústria de games, outros deixaram de lado e poucos ainda mantém fazendo personagens para MUGEN depois de duas décadas. Atualmente, o único projeto que causa comoção é o já citado Hyper Dragon Ball Z. Quem sabe os novos jogos de luta não reacendam a chama da criação nos fãs?

O MUGEN pode ser baixado até hoje, diretamente do site da Elecbyte, junto com toda a documentação e guias para criação de jogos. Já os títulos criados por fãs estão disponíveis nos fóruns ou páginas oficiais de cada projeto.

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