Comprar PC nos anos 1990 significava receber não apenas a máquina em si, mas também o famoso “kit multimídia”, que costumava trazer uma série de CD-ROMs dos mais diferentes tipos. No meu caso, vieram Sonic CD, duas edições de uma revista digital (outro conceito que não existe mais) de gosto duvidoso e uma enciclopédia em inglês, que me ajudou muito em meus primeiros passos com a língua.
Mas entre todos, o que mais me marcou foi uma espécie de guia interativo, se é que posso chamar assim, sobre viagens. O usuário colocava a cidade de origem e destino e via informações como quilometragem, as rodovias que levavam até o ponto final e, na melhor parte, os pontos turísticos pelo caminho, com direito a fotos e descrições de cada um deles.
Eu era uma criança que adorava viajar. Nos idos dos anos 1990, isso sempre significava férias e idas à casa dos meus avós – foi em uma dessas, inclusive, que conheci Resident Evil, um simples evento que acabou significando muita coisa na minha vida. O nome do programa de viagens que eu rodava em meu velho computador foi apagado completamente da minha lembrança, assim como meu gosto por viagens – morando sozinho em outra cidade e namorando à distância, elas se transformaram, de algo efêmero e divertido, em uma inconveniência constante, em que a chegada importa bem mais do que o trajeto.
Jogar Euro Truck Simulator 2 com o mapa RBR, que simula algumas das principais estradas brasileiras, foi um grato retorno a essas duas situações. Tanto que, em um feriado de Carnaval em que pretendia evoluir meu perfil em Overwatch e melhorar as habilidades em PlayerUnknown’s Battlegrounds, foi nesse game que passei a maior parte do tempo, enquanto transportava cargas para lá e para cá pelas estradas nacionais.
Obra de Wagner Ferreira, o mod tenta replicar a mesma qualidade do jogo original, que já reproduz muito bem as estradas europeias. A cidade de São Paulo, com suas marginais e a rodoviária do Tietê, estão bem representadas, assim como uma boa parte de seu interior, a descida para Santos e também a Dutra, no caminho até o Rio de Janeiro, também com as cidades que ficam pelo caminho aparecendo da maneira mais fiel que um trabalho desse tipo poderia representar.
Já o game em si é mais um belo expoente da onda dos “simuladores de qualquer coisa”. Lançado em outubro de 2012 pela SCS SOftware, e sem exigir máquinas tão robustas assim, o game nos coloca na pele de um caminhoneiro, que deve lidar com o dia-a-dia da estrada, seguindo de um local para outro e evoluindo na profissão.
Isso significa seguir as leis de trânsito, ao mesmo tempo em que lidamos com a pressão de prazos curtos para entrega, motoristas imprudentes controlados pela inteligência artificial, gastos com gasolina, pedágio e paradas para descanso que nem sempre se encaixam com os fretes. Quem entrega a carga sem danos e de forma rápida ganha mais, quem tem seu próprio caminhão, também.
Foi difícil configurar o volante Thrustmaster T80 para funcionar com o game, mas o resultado dessa experiência valeu a pena o esforço. Foi bastante curioso ver o caminho da capital paulista até Santos, que fiz centenas de vezes nessa vida, reproduzido fielmente, com direito à subida da serra e descida obrigatoriamente pela pista “velha” – mas se o jogador quiser, pode ir pelos túneis novos. Ao mesmo tempo, seguir por um caminho desconhecido rumo ao Rio de Janeiro, tendo apenas o GPS como guia, representou um desafio à parte.
Punições por excesso de velocidade aparecem o tempo todo enquanto a indústria da multa está em pleno funcionamento e é interessante ver como os veículos controlados pela IA andam acima do limite na maioria do tempo, reduzindo apenas diante dos radares ou postos policiais. Motoristas viram sem dar sinal de seta ou param do nada no meio da pista, enquanto irmãos de estrada no sentido contrário cumprimentam com um sinal de luz. Dá para se sentir na pele de Bino, tranquilamente.
Desafiando o sistema
O sul do país ainda está mal configurado no mapa RBR. A BR-116 até existe no mod e é possível seguir por ela a partir de São Paulo ou do litoral do estado, mas suas conexões estão meio estranhas, além de diversos bugs serem encontrados pelo caminho. Uma viagem da capital paulista até Curitiba, então, tem um caminho bizarro como o melhor – seguir até Santos, pegar uma balsa para a França e, na sequência, outra até o litoral paranaense, seguindo de Paranaguá rumo à capital do estado.
Como uma viagem intercontinental não fazia o menor sentido naquela fantasia que tentava ser tão real, decidi traçar eu mesmo uma rota, seguindo até Cubatão e, de lá, entrando na BR-116. A mistura de trechos não programados com problemas encontrados pelo caminho fez com que a viagem levasse dois dias no mundo do game e quase 3h no real (metade do necessário para fazer esse trajeto de verdade).
A tensão de descer uma serra acidentada e de pista única com uma carga nas costas, o que poderia fazer o caminhão ultrapassar os 110 km/h rapidamente, se misturou a mais constatações impressionantes. No mapa RBR, a BR-116 ainda é o canteiro de obras de alguns anos atrás, enquanto o governo ainda trabalhava para acabar com a alcunha de “rodovia da morte” dada a ela. No trajeto, capotei duas vezes, além de ter travado em uma lombada mal programada na entrada de Jacupiranga. Seguir via Europa, nessa hora, não pareceu tão absurdo.
Estas, entretanto, são versões virtuais e um tanto bizarras de problemas efetivamente encontrados pelas estradas de todo o país. Durante pouco mais de um ano da minha vida, escrevi para revistas segmentadas voltadas para da Scania. Parte do trabalho envolvia entrevistar caminhoneiros, o que acaba levando a histórias que, às vezes, eram engraçadas, mas em outras, soavam escabrosas.
Em Euro Truck Simulator 2 não existem roubos de carga nem deslizamentos de terra ou protestos que impedem o tráfego por dias. Os maiores riscos são os motoristas malucos, as falhas mecânicas ou o sono que torna os reflexos mais lentos – ou a própria obra em progresso do mapa RBR, que ao mesmo tempo em que mostra de forma muito interessante o que está por vir, também representa uma pedra no sapato.
Até o momento em que escrevo esse texto, já são mais de 20 horas registradas em um jogo que, se fosse apenas descrito a mim, não me interessaria. Ao longo delas, também, o que tive foi um novo contato com memórias que eu nem lembrava ter – e olha que Minas Gerais nem existe ainda no mod.
No mundo real, eu não vejo a hora de cochilar no banco do ônibus para que a viagem passe mais rapidamente. De folga durante o feriado de Carnaval, em Euro Truck Simulator 2, muitas vezes adiei a hora de dormir – ou o cochilinho da tarde – para ficar dirigindo. Isso, por si só, atesta a qualidade do título (e também do mapa RBR).
Euro Truck Simulator 2 é exclusivo para PC e vive em promoção na Steam – em uma recente, paguei R$ 10 pelo game, mas seu preço padrão também é baixo, R$ 39,99. Já o Mapa RBR é um mod pago e custa R$ 30.