Far Cry Primal

Far Cry Primal

por Felipe Demartini

Uma volta ao passado para renovar as coisas

Tiros, explosões, bombas, tirolesas, wingsuits e torres de comunicação são itens comuns na série Far Cry. Quem jogou, principalmente, os games mais recentes da franquia, sabe do que estou falando. Mas o que acontece quando a Ubisoft resolve pegar a série e retroceder 12 mil anos no tempo, levando-a para a Idade da Pedra?

Na época do anúncio, muitos fãs temeram por uma perda da identidade da franquia, retirando dela seu principal apelo. Afinal de contas, como criar um FPS, que em seu nome, já traz a expressão “shooter”, em uma época na qual as armas de fogo não eram nem mesmo uma possibilidade tecnológica? A resposta veio como Far Cry Primal, representando uma bem-vinda renovação em uma franquia que, apesar da qualidade, já era reconhecida por alguns como “mais do mesmo”.

As mesmas mecânicas, um mundo novo

Estamos 10 mil anos antes de Cristo, uma época em que a humanidade já possuía domínio do fogo, mas ainda vivia do nomadismo. Não existiam o cultivo de plantas nem a criação de animais, e os homens e mulheres daquela época viviam do que encontravam pelo ambiente. Quando os recursos acabavam, mudavam de lugar, um comportamento que ainda duraria alguns séculos. Em Far Cry Primal, esse é um dos pilares básicos de sua sobrevivência.

Far Cry Primal, por outro lado, ainda se prende a uma negativa característica do passado e, mais uma vez, não exibe um enredo relevante, apesar do trabalho espetacular em recriar e reviver uma língua morta.

Se a confecção de itens e a caça já eram uma das mecânicas principais dos títulos anteriores da série, aqui, ela é a chave para seguir em frente. Absolutamente tudo depende dos itens coletados pelo cenário. Sua energia é recuperada com a carne obtida pela caça, enquanto as flechas e lanças usadas para isso são construídas a partir de madeira, pedras e plantas encontradas pela selva. Uma atividade sempre depende da outra, e saber lidar com todos esses aspectos ao mesmo tempo é essencial.

Outro aspecto periférico dos jogos recentes de Far Cry também toma o centro do palco aqui. Se antes, ataques de animais eram apenas uma inconveniência, aqui, eles serão seu pior pesadelo. Se a criação da arma de fogo alçou a espécie humana ao topo da cadeia alimentar, em Primal, você é o oposto disso. De caçador, o jogador se torna a caça. Dê mole na floresta e você será o próximo almoço de lobos, tigres, ursos, piranhas, jacarés e todo tipo de animal que vive por ali.

Far Cry Primal

No título, a Ubisoft entrega um mundo vivo e cheio de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Isso obriga o usuário a continuar se movimentando, a sempre seguir em frente e ficar de olho com o que está acontecendo em seu redor. Durante o caminho até uma missão, não é nada incomum dar de cara com uma matilha de lobos em plena caça, ou com um urso buscando uma colmeia de abelhas. Na maioria das vezes, o ideal é torcer para não ser visto, caso contrário, você se verá rapidamente no lado mais vulnerável desse combate.

O game pode até não primar pelo realismo, mas mesmo com uma notável falta de carisma, traz um sopro de ar fresco necessário para uma franquia que apenas beirava o abismo da saturação.

Tudo isso acontece em uma mata extremamente fechada e ainda distante da influência do homem. Sem carros e construções, o ambiente parece muito mais opressor. O jogador vai comemorar quando, pelo caminho, se ver diante “apenas” de um trio de neandertais, muito mais inofensivos do que os animais da floresta? Ouviu um rugido? Você pode estar sendo caçado. Anoiteceu? É melhor seguir os conselhos da sua mãe e ficar em casa, ou andar por aí com muito, muito cuidado.

E nesse ensejo, surgem mudanças de conceito interessantes. Como tudo e todos são caça, até mesmo os seres humanos mortos em combate aparecem no mapa como se fossem presas abatidas. E tudo, absolutamente tudo, é fonte de recursos, que podem fazer falta mais adiante, caso você não gaste um tempo coletando-os.

Far Cry Primal não traz grandes melhorias gráficas em relação ao quarto game da série. Por outro lado, a Ubisoft mostra que já sabe trabalhar melhor com os aparelhos da atual geração ao entregar um título que, ao contrário do antecessor, quase não sofre com quedas na contagem de frames por segundo. Das alturas, é possível enxergar longe no cenário sem que ele se construa diante dos seus olhos, enquanto, de perto, o nível de detalhes dos ambientes não deixa a desejar, apesar das repetições de texturas e objetos.

Algo velho, algo novo

Far Cry Primal

E se Far Cry Primal tem, em sua base, mecânicas e sistemas tirados diretamente dos jogos anteriores, isso também deu espaço para que a Ubisoft pensasse em novas mecânicas. E isso se deu por meio de um sistema de domínio de animais, que de ameaças, podem acabar se tornando vantagens estratégicas durante a sobrevivência na mata.

Logo no começo do game, o jogador já recebe uma coruja controlável, que faz as vezes da máquina fotográfica dos games anteriores. Com ela, dá para observar o que está adiante, marcar inimigos ou realizar uma verificação do local. Com os upgrades corretos, entretanto, também dá para utilizá-la em ataques furtivos que podem reduzir a vantagem numérica dos inimigos.

A Ubisoft entrega um mundo vivo e cheio de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Isso obriga o usuário a continuar se movimentando, a sempre seguir em frente e ficar de olho com o que está acontecendo em seu redor

Enquanto isso, a novidade de verdade vem por meio dos “animais de estimação”. Por meio do sistema de upgrades, o protagonista pode adquirir a habilidade de domar os bichos selvagens da floresta, trazendo-os para o seu lado. Isso vale desde as pequenas hienas ou felinos até os gigantescos ursos ou tigres dente-de-sabre, que podem servir como um bom método de detecção de agressores por perto ou como bons aliados na hora da caça.

É possível “summonar” diversos deles, de acordo com a necessidade dos combates, o que se torna essencial pelo fato de que eles, assim como o jogador, também podem morrer. Saber lidar com os diferentes atributos de cada pet para evitar, por exemplo, jogar uma hiena no combate contra um mamute, pode render uma vantagem estratégia que vai tornar a vida na mata muito mais fácil.

Far Cry Primal

Um segundo aspecto relacionado aos animais, entretanto, não funciona tão bem assim. Nas viagens entorpecentes que sempre fazem parte dos títulos da série, desta vez, é possível assumir o controle direto de alguns animais e entrar em confronto com outros. O modo “Batalha de Feras”, entretanto, não funciona tão bem assim, e na maioria das vezes, sofre com controles pouco precisos e combates mal realizados.

Outras novidades de Primal vêm por meio de um sistema de personagens, que trazem diferentes habilidades e missões para o jogador, e a evolução da própria aldeia da qual o protagonista faz parte. Com a realização de objetivos principais ou secundários, é possível aumentar a população e obter recursos para melhorar as ocas, habilitando novos itens e possibilidades que facilitam continuar jogando.

Far Cry Primal

O que se percebe é que a vida na selva se torna mais fácil na medida em que se aprende a lidar com ela. Quanto maior a sua experiência, melhor preparado você fica para seguir adiante, o que se reflete na variedade de habilidades e, quem diria, armas para serem usadas. Na maior parte do tempo, sim, você utilizará apenas arcos, flechas e lanças. Entretanto, é impossível negar o prazer obscuro de lançar uma granada de abelhas em cima de um grupo de inimigos, ou usar uma boleadeira para derrubar aquele arqueiro que está mirando à distância.

Um passado com pé no presente

Far Cry Primal, por outro lado, ainda se prende a uma negativa característica do passado e, mais uma vez, não exibe um enredo relevante. Apesar do trabalho espetacular em recriar e reviver uma língua morta, o proto-indo-europeu, essa possibilidade não é levada às últimas consequências. O que vemos aqui são personagens desinteressantes e tramas pouco profundas, além de mais um vilão subaproveitado, mas que dessa vez, não chega nem aos pés de Pagan Min ou Vaas Montenegro.

Far Cry Primal não traz grandes melhorias gráficas em relação ao quarto game da série. Por outro lado, a Ubisoft mostra que já sabe trabalhar melhor com os aparelhos da atual geração.

Sendo assim, o apelo do título fica concentrado quase que inteiramente na caça, exploração e coleta de recursos. E uma vez que se abre todo o mapa e se conhece todas as possibilidades do título, resta muito pouco para seguir em frente. Mais uma vez, a Ubisoft constrói um game mais interessante por seus objetivos paralelos do que pela campanha principal

Além disso, a tendência a reaproveitar elementos do passado aparece quando se nota que o mapa de Primal é extremamente semelhante ao de Far Cry 4. Ou não, já que você provavelmente só vai reparar nisso após ler o que estou dizendo aqui, ou alguma notícia sobre o assunto. Sim, temos riachos e lagos nas mesmas posições, um relevo semelhante e até uma variação de biomas parecida.

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Por outro lado, uma analogia possível pode ser feita com um apartamento completamente remobiliado. Sim, ainda temos ali a mesma arquitetura de antes, mas de resto, tudo está diferente, e a casa “parece nova”. Traduzindo a metáfora para o game, Far Cry Primal é mais importante pelo que se faz dentro de seu mapa, do que pelo ambiente em si. O título é variado e interessante o suficiente para que esse reaproveitamento, por si só, não incomode.

Não é comum vermos games de ação em primeira pessoa com uma perspectiva que vá além do tiroteio frenético. Cada vez mais, o realismo e a verossimilhança, e até mesmo a contemporaneidade, parecem ter menos espaço. Far Cry Primal pode até não primar por tais ideais, mas mesmo com uma notável falta de carisma, traz um sopro de ar fresco necessário para uma franquia que apenas beirava o abismo da saturação.

Far Cry Primal foi analisado no PS4, em cópia cedida pela Ubisoft.