Quem diria que, um dia, a correria para aeroportos, filas de check in e viagens em assentos apertados fariam tanta falta. Em um mundo quase em pausa por causa da pandemia, a possibilidade de viajar se tornou um sonho distante, seja pelas proibições atuais ou pela noção de que os problemas ainda vão levar um tempo para serem resolvidos completamente. Em um ensejo desse tipo, é quase como se a Microsoft e a Asobo Studio tivessem planejado tudo.
Flight Simulator está de volta, em 2020, para trazer uma das grandes franquias dos PC de volta, após um hiato de 14 anos. Mais do que apenas retornando, a série abre as portas para todo um novo público, não apenas pela ideia de termos um título sendo lançado no Xbox Game Pass e com versão prevista para o console da Microsoft, como também por suas mecânicas. Todos, desde que tenham a máquina adequada em casa, podem aproveitar o novo título da série, e essa experiência pode soar de forma bastante diferente para cada pessoa.
Por isso mesmo, vou tomar a liberdade de não publicar uma análise tradicional, com nota e tudo mais. Escrever um review de Flight Simulator, daqueles tradicionais onde os pontos positivos e negativos da obra são exemplificados, seria complicado não só pelo fato de este ser um título absolutamente complexo, mas também pela ideia de que, como diz a anedota um tanto arrogante das redes sociais, este não é um jogo, mas sim, um simulador. Ambas as afirmações, na realidade, são verdadeiras, mas o que temos em mãos, também, é muito mais do que apenas estas duas palavras podem significar.
Portanto, vamos começar do início e falar dos aspectos técnicos de Flight Simulator, que apresenta um dos usos mais promissores e interessantes das tecnologias de cloud computing e inteligência artificial. A revolução há tanto tempo citada pela Microsoft e já usada em Crackdown 3, de forma nada impressionante, aparece aqui de forma factual: todo o mundo está disponível no título e você pode, literalmente, encontrar sua casa e os locais que frequenta nele.
Basicamente, se um lugar está disponível no Bing Mapas, ele está em Flight Simulator. A inteligência artificial entra em cena para transformar o que é um mapeamento 2D feito via satélite, presente no serviço, em casas, estruturas, prédios, galpões, estradas e tudo mais em elementos com volume e altura quase correspondente às reais. Claro, se trata de um sistema automatizado que substitui arquiteturas reais por texturas, às vezes, genéricas e sem personalidade. Mas você não vai se importar muito com isso na primeira vez que voar baixinho com um 747 sobre a casa dos seus pais que você não vê pessoalmente desde março.
Não dá para matar a saudade, mas pelo menos, dá para se divertir um bocado, principalmente, quando notamos algumas bizarrices causadas pela combinação destes sistemas. Ficou notório, por exemplo, o monstro de Melbourne, um prédio de nada menos do que 212 andares no centro da cidade australiana que, claro, não existe de verdade e foi gerado por um erro no cadastro dos dados de um prédio de 20 andares em uma plataforma colaborativa. Dá para ver as palmeiras que adornam a parte da frente do Expo Center Norte, na capital paulista, mas o shopping que fica do outro lado da rua foi transformado em um galpão, enquanto o Palácio de Buckingham, em Londres, se transformou em um prédio de escritórios.
Essa transformação de elementos de cenário também leva a situações que rompem as próprias normas da aeronáutica que um simulador deveria respeitar. O que falar, por exemplo, da possibilidade de pousarmos com um avião de carreira na pista da Daytona, nos Estados Unidos, ou de um prédio anormalmente alto posicionado ao lado de árvores bem na cabeceira da pista do Aeroporto de Congonhas, também em São Paulo? Fazendo jus à fama do local, inclusive, dependendo do tamanho do avião escolhido, você notará que a inteligência artificial é simplesmente incapaz de levantar voo ou pousar por lá.
Equipamento especializado
Quando falamos dos cerca de 40 aeroportos criados especificamente para o game, assim como as centenas de monumentos desenhados pela equipe ao redor do mundo, porém, a coisa muda completamente de figura. Se Flight Simulator já enchia os olhos quando sobrevoávamos as praias de São Vicente, imagine quando fazemos uma passagem bem pertinho do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, ou sobrevoamos toda a extensão da Grande Muralha da China, em passeios que muitos de nós, reles mortais, não podemos fazer de verdade.
Cidades como Nova York, Paris e Los Angeles, por exemplo, também extraem ao máximo do potencial gráfico do título. Em mais um dos conceitos de acessibilidade trazidos à tona pelas empresas envolvidas, é possível, sim, rodar Flight Simulator em um PC mais modesto, mas nem tanto assim. O game, claro, vai funcionar no Xbox One S em algum momento futuro, garante a Microsoft, mas nos computadores, sua placa de vídeo vai sofrer um bocado, com a produção exigindo uma bela dose de ajustes por parte do usuário.
Prova disso é que as configurações recomendadas do título exigem nada menos do que uma GPU Geforce RTX 2080, uma das mais poderosas do mercado, e mesmo nas especificações mínimas, um modelo GTX 970 é citado para que o título rode da maneira mais básica possível. Boa sorte tentando fazer tudo rodar em 4K a 60 quadros por segundo — é possível e vale a pena, mas vai exigir absolutamente tudo o que esse potencial demonstra.
Da mesma forma que um PC poderoso é necessário para aproveitar o máximo de Flight Simulator, os jogadores mais casuais também vão sentir que, na combinação de joystick com teclado, também não estão tendo acesso à melhor das experiências. Pode parecer óbvio que um simulador de aviação exige um manche para ser aproveitado, mas com o controle, dá para sentir uma certa sensibilidade exacerbada nas alavancas analógicas, com pequenos toquinhos levando a aviões descontrolados, alertas de estol ou perdas de controle. Seja carinhoso com os botões, porém, que vai dar tudo certo, ou confie no copiloto para corrigir eventuais problemas.
Aprendizados
Do pequeno detalhe de uma avenida com carrinhos de mentira passando, de uma decolagem atrapalhada em um aeroporto descampado ao potencial de complexidade de Flight Simulator, temos um produto que mais do que feito para impressionar e entreter, também foi criado para educar. Longe da parte casual, na qual apenas controlamos flaps e a aceleração dos motores dos aviões, assim como a inclinação deles, o que temos em mãos é, sim, um simulador completo de aeronáutica, capaz de ensinar conceitos desse universo para os entusiastas e, também, ser usado por profissionais que tenham os equipamentos devidos.
Isso torna a intenção da Microsoft e da Asobo Studio, de abrir as portas para os novatos e amadores, ainda mais louvável. À primeira vista, o painel de um avião de carreira é uma massa incompreensível de botões e alavancas. Quando passamos o mouse sobre eles, notamos que todos são interativos, mas podem estar desativados de acordo com a configuração de auxílios feita pelo jogador. Mas que fique claro: com o conhecimento necessário, você poderá entender tudo aquilo e pilotar, virtualmente, um avião como se estivesse voando na realidade.
Flight Simulator é acessível de forma semelhante a um bom simulador de corrida, como os da Codemasters, que possuem ajustes finos de experiência para que o jogador vá, aos poucos, manipulando mais e mais elementos do veículo. Entretanto, um carro é mais simples do que um avião, e essa diferença também se apresenta na complexidade das opções e, também, no linguajar, com até mesmo a tradução para o português brasileiro não demonstrando claramente o que todas as opções podem fazer.
Não dá para ser um piloto, claro, sem estudar muito, e o título é praticamente um convite para que o usuário mergulhe no mundo da aviação, tanto dentro do simulador quanto fora dele. Extrair o potencial completo do título não é tarefa para todo mundo, mas como dito, todos encontrarão um pouco para si aqui, nem que seja, apenas, para dar uma olhada nas belas paisagens de todo o mundo, ver os locais do cotidiano de um outro ângulo ou visitar lugares que, em tempos de pandemia ou não, jamais imaginaríamos observar de perto.
O título foi testado no PC, em cópia cedida pela Microsoft. Este texto também foi publicado no Canaltech.