Existem jogos que servem como verdadeiros divisores de águas. Títulos como Resident Evil 4, Grand Theft Auto III, Call of Duty: Modern Warfare, entre tantos outros, mudaram para sempre a forma como os fãs enxergavam suas respectivas franquias, mas não apenas isso, seus próprios gêneros seguiram essa tendência e, junto, verdadeiras revoluções mercadológicas aconteceram. God of War poderia até ser encarado como tal, mas somente antes de seu lançamento. A verdade é que ele é muito mais do que apenas isso.
Rever Kratos cinco anos depois de Ascension, seu último game, ainda no PS3, é como reencontrar um bom amigo de infância. Vocês podem até não se falarem há um bocado de tempo, mas ainda dá para enxergar todos os traços daquele velho companheiro do passado. Apesar disso, fica claro que ele mudou bastante – ou, melhor dizendo, evoluiu em praticamente todos os seus aspectos.
Desde os tempos de God of War 3, muita gente se perguntava qual seria o caminho do personagem agora que todos os deuses do Olimpo estavam mortos. Que tipo de desafios poderiam ser colocados diante de alguém que, como o próprio título diz, é um Deus da Guerra que já havia atingido o patamar máximo de uma escalada de de violência das mais absurdas. O que seria uma dificuldade para alguém como Kratos?
A resposta para isso, exibida de forma magistral no novo God of War, está no âmago do próprio protagonista. Depois de enfrentar gigantes, divindades, deuses e criaturas místicas, o maior desafio acaba estando dentro de sua própria casa. As maiores vulnerabilidades de Kratos não são uma vacilada no combate ou o peito aberto, sem armadura, mas sim, o contato com si mesmo e a busca pela própria personalidade. Tudo aquilo que passa longe do que ele, conforme o passado já demonstrou, nasceu para fazer.
Além dos gráficos estonteantes e da jogabilidade precisa e fluida de que falaremos mais adiante, o que brilha mais no novo God of War também é aquilo que o torna mais relevante do que nunca. Arrancar a cabeça de gigantes é fácil; complicado mesmo é mostrar carinho por Atreus, seu filho, em um momento de dificuldade. E é justamente por meio dessa humanidade recém-adquirida que Kratos, de Deus da Guerra, acaba se tornando gente como a gente.
Assim como no passado, a trama de God of War tem origem em uma perda. Kratos está derrubando uma gigantesca árvore, que carrega nas costas como se fosse um leve pacote, para completar a fogueira do ritual de cremação de Faye, sua esposa. A seu lado, está o filho e, logo de início, percebemos que o protagonista recuperou aquilo que motivou sua vingança original. Dá para ficar feliz, mas desde já, percebemos que há algo de estranho.
Kratos deixou de ser uma máquina de guerra e, agora, tem sangue correndo pelas veias. Sua maior vulnerabilidade – a própria emoção – é também o aspecto que o torna mais interessante.
As cinzas de sua mulher e filha originais ainda estão grudadas a seu corpo, mostrando que o passado não ficou tão para trás assim. As bandagens nos braços escondem as queimaduras das Lâminas do Caos e a memória de um passado violento, do qual Kratos parece disposto a esquecer. Ele faz isso fora de seu habitat natural, no ambiente de uma nova cultura e mitologia. Agora, ele deseja ser só mais um, mas não parece muito confortável com isso.
A aparência do protagonista, bem mais velho, demonstram que muito tempo passou, mas para ele, é como se tivesse sido ontem, principalmente quando monstros atacam de repente, fazendo com que ele tenha que lutar para proteger sua cria. Nesse momento, vemos Kratos novamente brilhando naquilo que ele sabe fazer de melhor. Ao mesmo tempo, porém, o abismo da estranheza só aumenta.
Toda a experiência com God of War alterna entre esses dois pólos. Ao mesmo tempo em que temos os combates violentos e viscerais pelos quais a franquia ficou conhecida, embarcamos em uma jornada incrivelmente pessoal e intimista, que consiste, “simplesmente”, em cumprir o último desejo de Faye e levar suas cinzas até o topo de uma montanha.
É um ensejo bem diferente do visto nos jogos originais, mas não menos épico. E isso não acontece simplesmente pelo fato de que Odin está sempre observando e o exílio de Kratos não era tão secreto quanto ele imaginava. A jornada pessoal levará Kratos, Atreus e o jogador a uma viagem pela mitologia nórdica que nem mesmo os próprios habitantes desse universo conhecem muito bem.
O Deus da Guerra vê o filho como inocente e afoito, características que são fruto de uma criação, aparentemente, superprotetora. Muito do que ele sabe vem de mitos e histórias contadas pela mãe, enquanto o pai o protegeu por saber que o mundo, lá fora, é cão. Mais um dos tantos erros e acertos, incertezas ou garantias, que ele terá que enfrentar diretamente agora.
São elementos, também, que não estão sob o controle de Kratos, ao contrário da decisão de arrancar primeiro os membros ou a cabeça de um oponente. Sendo assim, faz sentido que, ao mesmo tempo em que temos total controle do personagem combatente, com seus golpes e melhorias, não podemos fazer nada a não ser observar enquanto ele tenta, muitas vezes sem o efeito desejado, instruir seu filho ou contar uma história a ele.
Se Kratos não é dos melhores nos momentos em que uma interação pessoal é exigida, é nos combates que ele mostra seu verdadeiro talento. A nova jogabilidade é o segundo tripé de God of War, com mudanças extremamente bem-vindas que mantiveram o clima violento e insano dos originais, mas tornaram as coisas muito mais viscerais e pesadas.
Ao aproximar a câmera do protagonista, deixando de lado a perspectiva fixa e distante dos anteriores, a Sony Santa Monica entrega as cenas de batalha mais interessantes de toda a saga. Dá para sentir, nos controles, o peso do machado Leviathan e o ódio que Kratos transmite a cada pancada. Ele não perdeu a mania de gritar enquanto ataca os oponentes sem dó, com o áudio transmitindo, juntamente com vibrações do joystick, toda a violência de cada um desses golpes.
O button mashing do passado retorna, mas aqui, apenas pressionar os botões não será suficiente. A violência é a solução para todos os confrontos, logicamente, mas a forma de aplicação desse potencial destrutivo exigirá certa habilidade do jogador no uso de poderes, combinações de botões e combos entre machadadas, magias e flechas disparadas por Atreus.
Em mais uma mostra de que está afinada com o mercado atual de jogos, a desenvolvedora retrabalhou completamente as batalhas para tornar God of War mais intuitivo do que nunca. Cada jogador tem seu estilo e, da mesma maneira, as estratégias que funcionam com um tipo de inimigo não valem para todos. Saber buscar pontos fracos e o momento de esquivar é tão importante quanto acertar a hora de bater.
Por meio de um sistema de runas, talismãs, acessórios para o machado e poderes especiais, a Sony Santa Monica entrega uma jogabilidade complexa e que adere ao estilo de cada jogador. Você prefere partir com tudo para cima dos inimigos ou é desses que busca sempre a melhor oportunidade para atacar? Aja como quiser e escolha as magias apropriadas para cada situação.
O mesmo vale para o sistema de habilidades e as armaduras usadas por Kratos e Atreus. Gosta de lutar de perto, o que acaba tornando o protagonista vulnerável? Invista em peças que aumentam a defesa e o poder de ataque, enquanto coloca o filho para ser uma distração e buscar itens de recuperação. Gosta de jogar o machado de longe? Invista em um maior potencial de acerto crítico. As opções são diversas e o campo é totalmente aberto, principalmente se você explorar bem os cenários, sempre repletos de itens.
Entretanto, para fazer isso, será preciso navegar por um mar de menus nem sempre muito claros. Além das letrinhas miúdas que aparecem, principalmente, na exibição de tutoriais, as telas de melhorias não apresentam uma clareza que seria muito bem-vinda, com opções pouco objetivas e que não dão uma visão geral cristalina do que pode ser melhorado e quais os reflexos disso no combate.
God of War está mudando o tempo todo e, por conta disso, nem sempre dá para tomar uma decisão acertada. Além disso, muitas vezes, é difícil enxergar o reflexo de upgrades além das mudanças visuais, uma vez que, na mesma medida em que o jogador está sempre melhorando, os inimigos também apresentam dificuldade crescente. O melhor, aqui, é apostar mais na própria habilidade e maestria nos comandos e menos nos números exibidos na tela.
Com isso, em alguns momentos, as mecânicas chegam até mesmo a ter aquele leve cheirinho da série Souls, principalmente quando uma boa estratégia e domínio das habilidades possuídas permite derrotar aquele inimigo cuja força está bem acima do potencial de Kratos e Atreus. Morrer é triste, principalmente quando ouvimos os gritos do garoto diante da queda do pai, mas vencer, nesse ensejo, é bem recompensador.
Se você ficou impressionado com os visuais de Uncharted 4: A Thief’s End, espere só para ver o que God of War reservou para você. O que temos aqui é, sem sombra de dúvida, um dos títulos mais bonitos e artisticamente inspirados desta geração. Quando, no futuro, a origem do “Modo Foto” for explicada, o reinício da saga de Kratos será um bom exemplo para justificar sua existência.
A taxa de quadros constante, mesmo quando pedaços de corpos, partículas e inimigos preenchem a tela, são mais uma demonstração de que, a cada novo exclusivo de peso, os títulos first-party da Sony aumentam a barra do que o PlayStation 4 é capaz de fazer. Mesmo na versão Fat ou Slim do console, já dá para perceber que God of War é um dos games mais bonitos desta geração.
O maior desafio da vida de Kratos se desenrola no que é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores jogos de 2018 até agora e, também, um dos maiores desta geração de plataformas.
Isso é fruto não apenas de um trabalho técnico apurado, mas também de permissões garantidas pelo ensejo escolhido. A mitologia nórdica, com seus diferentes reinos, mistérios e personagens, é campo extremamente fértil para mudanças visuais e cenários dos mais diferentes tipos, que vão desde densas florestas e cavernas escuras até grandes construções feitas de ouro e conectadas entre si por pontes de luz.
Se você já tinha se impressionado com a Bifrost dos filmes do Thor, espere para ver a versão dessa viagem apresentada em God of War. A passagem entre reinos e diferentes biomas, também, servem como um marco do tamanho da jornada de Kratos e Atreus, mostrando que não apenas eles estão mudando, mas também o ambiente ao seu redor. Relembrar o caminho percorrido e ver o tanto de coisa que ficou para trás causa um sentimento de progressão e, mais uma vez, gera a evolução que é o grande tema do título, dentro e fora de sua trama.
No conjunto visual, a Sony Santa Monica exibe ainda um cuidado que vai desde o micro, como as folhas sob os pés dos personagens ou as marcas de erosão em uma parede de pedra, até o macro, com imponentes estruturas e estátuas dedicadas aos deuses que adornam o horizonte.
Esse aspecto converge diretamente com um outro – God of War é um título longo e cheio de coisas para fazer. Os desenvolvedores estimam que a aventura pode ser finalizada em cerca de 20 a 30 horas, mas como cada cenário e tela traz caminhos alternativos, segredos a serem desvendados e enigmas para resolver, essa soma pode facilmente aumentar caso o jogador seja cuidadoso.
God of War, acima de tudo, é um game para se jogar com calma. O próprio peso da movimentação de Kratos, um brutamontes com uma agilidade até surpreendente para seu tamanho, faz com que a progressão pelos cenários se torne mais lenta. Até estamos em um mundo aberto, mas, logicamente, não existem veículos. A quantidade de caminhos alternativos e segredos em cada cantinho só torna tudo mais vagaroso, mas não massante.
Há de se argumentar, entretanto, que tal aspecto gera uma perda de foco em alguns momentos. O objetivo final é entregar as cinzas de Faye à montanha e, claro, é possível seguir diretamente para ela, encarando apenas objetivos principais. Ignorar as missões secundárias, porém, nem sempre será tarefa fácil por conta da já citada falta de clareza em alguns menus e, também, pela própria construção orgânica do título, sem loadings nem interrupções a não ser que o jogador morra.
Se você ficou impressionado com os visuais de Uncharted 4: A Thief’s End, espere só para ver o que God of War, talvez o jogo mais bonito da atual geração de consoles, reservou para você.
Há um contraste constante entre a postura soturna de Kratos e um Atreus curioso, que parece estar viajando o mundo pela primeira vez. O garoto não hesita em prestar auxílio quando solicitado e enche o protagonista de perguntas e incentivos para desviar do caminho, enquanto o antigo Deus da Guerra apenas quer cumprir seu objetivo e voltar para casa – mas não hesita em seguir por outra rota caso deseje.
Diálogos sobre isso mostram, novamente, a atenção da Sony Santa Monica aos detalhes e acrescentam até um toque de humor a um título pesado e cheio de significados. Nesse aspecto, ainda, destaque para a dublagem em português incrivelmente bem trabalhada, com um Ricardo Juarez que, apesar de estar interpretando Kratos apenas pela segunda vez, já se mostra incrivelmente confortável no papel.
É por meio da voz dele, do americano Christopher Judge ou qualquer outro intérprete do idioma que o jogador escolher, que embarcamos na história sobre alguém que se esqueceu como é ser humano. No passado, Kratos não era muito mais do que uma violenta máquina de guerra, uma visão compartilhada tanto pelos deuses que entregaram a ele seus poderes quanto pelos jogadores que o controlavam.
Mesmo tanto tempo depois, no campo de batalha, o “Bom de Guerra” se mostra plenamente confortável. É fora dele, no âmago de seu ser, porém, que está o maior desafio que o protagonista já enfrentou em sua vida e, também, o maior acerto do novo God of War – a transformação de Kratos em um personagem com quem o jogador se importa e, incrivelmente, é capaz até mesmo de se identificar.
Ao criar um reinício, e não um reboot para God of War, a empresa atrai os novatos, com uma jogabilidade moderna e uma trama relevante, mas também dá aquele abraço apertado até mesmo nos fãs mais puristas, que verão ali uma versão de seu personagem favorito que não é necessariamente nova, mas sim, mais madura e, acima de tudo, mais interessante do que jamais foi.
O maior desafio da vida de Kratos se desenrola no que é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores jogos de 2018 até agora e, também, um dos maiores desta geração de plataformas. Assim como o personagem parece incapaz de deixar seu passado para trás, seja por forças internas ou externas, a Sony Santa Monica entrega um game que não aliena ninguém – somente o próprio protagonista, que, agora, tem carne, osso e sangue correndo pelas veias, talvez a pior vulnerabilidade para alguém que se intitula o Deus da Guerra. Ou, então, exatamente aquilo que ele – e nós – precisávamos.
O game foi analisado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Sony.