Partindo de uma visão totalmente diferente de muitos jogos indies, temos 198X, que tanto é uma narrativa dramática sobre um garoto mediano dos anos 1980 que acaba de conhecer os arcades, ao mesmo tempo em que faz o mesmo que muitos outros, uma releitura dos clássicos títulos que aqui são jogáveis em suas versões sinônimas. Isso tudo se soma à inovação de uma história contada em Pixel Art sobre um gamer e a tradição de trazer do passado estilos de jogos pouco utilizados hoje em dia.
Feito pelo estúdio sueco Hi-Bit Studios, com uma campanha de crowdfunding de sucesso, o game conseguiu realizar o sonho de muitos marmanjos nostálgicos pelos jogos antigos, somando gráficos em Pixel Art de uma qualidade suprema e trilha sonora do lendário compositor Yuzo Koshiro, o mesmo que ajudou a criar as trilhas de Streets of Rage, Sonic, Namco x Capcom, Shenmue e outros. Suas novas faixas, porém, em nada lembram esses títulos citados, pois a originalidade prevaleceu sobre as referências.
O ano é 198X, você controla o Garoto, um adolescente típico americano que vive em uma cidade também genérica, chamada Suburbia. Agora que está virando mocinho, ele começa a ter crises de aborrescente por levar uma vida normal, não ter muitas novidades na rotina e não ser de nenhum grupinho específico na escola, se isolando socialmente e sentindo-se melancólico pela própria falta de atitude, enquanto ocupa seu tempo livre com música no WalkMan, quadrinhos e TV. Isso dura até que decide sair pela cidade para vencer a inércia e descobre, na antiga fábrica em um lugar afastado do bairro de classe média que mora, uma casa de fliperamas.
Mesmo com medo e desconfiança, o Garoto entra na porta com luzes neon e lá dentro avista duas coisas que lhe impactam de súbito: várias máquinas de fliperamas com os maiores sucessos de uma década e o convívio pacífico das diferentes tribos sociais que ele conhecia, que, sem nenhum climão, conviviam e falavam sobre os games que tanto adoravam jogar e tinham ali um refúgio do mundo real e sua normatividade entediante.
Ao longo das cutscenes, que desenvolvem a história principal de 198X, vamos jogando cinco títulos diferentes que seguem uma ordem que remonta ao estado psicológico do Garoto e sua adaptação à essa nova concepção de lazer e como se sentiu alterado diante de quem via os jogos eletrônicos como coisa de vagabundo, perda de tempo e outros clichês de preconceito que ainda perduram, mas há 30 anos atrás, eram mais frequentes. Indo além dos questionamentos dramáticos que misturam filosofia e cotidiano do mundo pop, vamos abordar cada um dos jogos.
Beating Heart é o clássico Beat’em Up, estilo que sempre foi um arrasa-quarteirões nas décadas 1980 e 1990 nos Arcades tendo Final Fight e Double Dragon como os maiores destaques. É lembrado aqui pois controlamos um jovem que parece uma mistura de Cody Travers com Little Mac, de Super Punch Out, em cenários, inimigos e itens que fazem total referência aos clássicos e com uma dificuldade mediana. É o jogo de introdução da narrativa, muito curto, sem chefe de fase.
Out of the Void faz referência aos clássicos jogos de navinha, os shooters horizontais que ganharam destaque com títulos como Gradius e R-Type, que diferente dos Vertical Scrolls, tinha um adicional de território a ser vencido e mais imersão nas fases, mesmo que o objetivo fosse sempre igual: destruir tudo que surgir pela frente, melhorar as armas e derrotar os chefes. Tem dificuldade mediana e é um pouco curto, mas tem sub-chefe e chefão.
The Runaway é o clássico simulador de corridas como Out Run, Rad Racer e Top Gear, em que se deve correr o máximo possível antes que o tempo se esgote, forçando o piloto a ser muito ousado e arrojado para chegar a tempo no próximo checkpoint e renovar seu tempo enquanto precisa desviar do trânsito e fazer as curvas em altíssima velocidade. Apesar de não existir Nitro, é possível alcançar altas velocidades. Como metade do trajeto é narrativa, a jogatina é consideravelmente curta, onde só é preciso esperar o tempo acabar enquanto o Garoto faz metáforas de suas vontades em relação ao jogo, que representa uma fuga em alta velocidade por novas emoções.
Em Shadowplay, vem o clássico jogo de ação de plataforma, onde se controla um ninja com máscara infantil de raposa, muito comum em festivais japoneses e imortalizada na cultura pop como a máscara da ANBU em “Naruto”. Como o jogo simula estar sempre em corrida, só é necessário atacar tudo que se mexer, coletar as orbes que deixam seu ataque mais longo e sobreviver aos percalços do cenário como samurais, ninjas, espetos, buracos e, no final, um Youkai gigante. Com dificuldade levemente elevada e quatro cenários, é o desafio mais duradouro do jogo.
O último jogo, Kill Screen, é o mais pesado de todos na questão da temática, pois a cada inimigo derrotado, vem uma frase de desestímulo paternal, enquanto simula um RPG das antigas em primeira pessoa. Com quatro ações básicas, é uma mescla de Sci-Fi com medieval, assim tendo à disposição do jogador o ataque de Espada, Magia e Hackeamento, que seriam os três diferentes elementos do game. A chave da vitória é identificar pela aparência do inimigo qual natureza de ataque usar.
O jogador tem somente uma cura por combate e é esse o fator que faz o desafio final ser difícil de completar sem morrer, mas fácil no geral, pois o respawn não é tão punitivo. Tem três chefes e um boss final que não se derrota e é uma analogia à figura materna tóxica.
198X é, conceitualmente, um jogo de narrativa e que somou os diferentes gameplays para montar uma experiência de jogatina filosofal sobre a postura do jogador, dos jogos e das culturas tradicionais, criando uma simulação de contra-cultura e ativismo gamer caso tivesse sido lançado na sociedade dos anos 1980. Mas como isso não foi possível pela falta de internet na época, a revolução cultural que os games trouxeram só ocorreu dentro de cada um, contra o senso-comum e as cobranças da vida de um jovem em transição da adolescência para a vida adulta.
Falando especificamente dos jogos, os controles são simples e sem extravagâncias, mas permitindo muita precisão na hora da ação. As animações são tão boas quanto o Pixel Art e os efeitos sonoros tão bons quanto as trilhas sonoras do Yuzo Koshiro. Toda a história é narrada em inglês e, apesar de ter um texto bem construído, a voz do Garoto parece feminina e destoa da aparência heteronormativa do personagem. Caso seja essa a intenção, ele ser um garoto trans preso em um corpo que simula hétero cis por causa da opressão social da época, ficou bem encaixado, mas essa nuance não é citada na história.
Um ponto negativo é o jogo ser extramente curto, mesmo tendo criado uma experiência de sucesso em todos os cinco títulos, que são divertidos de se jogar, mas duram pouco. Mesmo existindo, após terminar, a opção de acessar diretamente os games fora da história central, eles continuam curtos demais para matar a vontade e ficam parecendo mais armadilhas para deixar os jogadores passando vontade e querendo mais conteúdo, visto que terá continuação. Talvez um 199X?