Magos, cavaleiros de armadura cromada e brilhante, monstros terríveis, fábulas e lendas estão entre os aspectos comuns no mundo dos RPGs. São diversos os expoentes do gênero, que vão desde as fantasias tecnológicas criadas pela Square até os panoramas abertos e livres criados pela Bethesda, seja no passado ou em um futuro apocalíptico. Tudo para criar um mundo diferente e fantasioso, trazendo o jogador para uma realidade completamente diferente da sua.
Kingdom Come: Deliverance é mais um exemplo dessa safra de títulos que transportam o jogador para um outro mundo. Mas, aqui, a desenvolvedora Warhorse Studios não precisou de magia, fantasia e mitos para fazer isso, muito pelo contrário – os pés foram mantidos no chão e o realismo serve como trampolim para uma verdadeira jornada em um mundo medieval.
No título, controlamos Henry, um jovem que vê sua família ser massacrada diante dos próprios olhos durante uma invasão a seu pacato vilarejo. O local tem importância estratégica devido à produção de prata, se tornando essencial em uma conspiração política cujas pegadas chegam até o trono da Boémia do início do século XV. O protagonista é um dos poucos sobreviventes, e ao fugir para a cidade vizinha, acaba se envolvendo numa trama que envolve desde a evolução pessoal do personagem até um movimento de resistência contra a tirania e as brigas políticas para que o herdeiro legítimo do trono possa o assumir.
Ao criar um universo ambicioso, rico e completamente mutável, a desenvolvedora parece ter se esquecido dos elementos básicos que fazem um jogo ser o que é.
No ambicioso título de Daniel Vávra, autor dos capítulos iniciais da série Mafia, não há Jornada do Herói. Ou até existe, caso o jogador deseje ser virtuoso e bondoso, agindo como se estivesse em uma missão de salvação mundial. Se preferir, pode seguir pelo mundo sendo um escroque, agindo com violência e, claro, sofrendo as consequências disso.
Com nomes de peso por trás e uma pegada desse tipo, Kingdom Come: Deliverance é daqueles jogos que chamam a atenção mesmo para quem não é fã do gênero – caso deste que vos escreve. Isso também valeu para investidores privados e distribuidoras, após uma campanha de financiamento coletivo de sucesso. Uma pressão gigantesca, fruto de objetivos colossais, que geraram um resultado extremamente interessante quando descrito, mas difícil de se jogar.
O título desenvolvido pelos checos da Warhorse Studios impressiona pela escala, e aqui, não estamos falando apenas de seu mundo aberto, que é, sim, gigantesco. O trabalho em Kingdom Come: Deliverance foi além disso, criando um universo cujas engrenagens rodam como um complexo maquinário, em que cada peça pode, ou não, ter importância no funcionamento das outras.
Mulherengo e infantiloide, Henry é, na melhor definição possível, um babaca, com quem o jogador não terá a menor empatia, mesmo após as tragédias que o atingem.
Vilas enormes podem ser exploradas após viagens por florestas densas e grandes descampados, enquanto centenas de quests secundárias se misturam às missões da campanha principal. A sensação, entretanto, é que todas elas levam a história para frente, já que as atitudes em um momento podem decidir o destino de diálogos que virão depois.
Vá se encontrar com um monarca sangrando e machucado, mesmo que isso tenha acontecido após um combate vitorioso, e você será destratado. Entre sujo em uma igreja e você receberá os comentários hostis dos populares, ao mesmo tempo que negociações comerciais pouco amistosas podem virar completamente em seu favor caso você tenha uma espada das boas na bainha ou carregue o sangue de seus inimigos na roupa.
É preciso comer, dormir e se banhar. Também é necessário ter lábia para sair de situações complicadas ou usar a força para os momentos em que apenas a conversa não será suficiente. Saber se portar diante da nobreza e ajudar aos pobres abrirão oportunidades de ouro e facilitarão seguir em frente, enquanto agir com mão de ferro traz seus benefícios, mas, também, violentas consequências. Tais mecânicas funcionam por meio de sistemas complexos que exigem boas escolhas de diálogos, habilidade no manejo de armas e até um pouco de estratégia.
As possibilidades são tantas que acabam gerando uma experiência única para cada jogador. Durante o processo de análise de Kingdom Come: Deliverance, observamos streamings ao vivo de outros jogadores realizando as exatas mesmas missões, mas com diálogos e reflexos completamente diferentes por conta de ações passadas, roupas vestidas ou estado de saúde.
As diferenças iam das mais simples às mais significativas. O problema é que trafegar por esse mundo não será tarefa das mais fáceis. Ao criar um universo ambicioso, rico e completamente mutável, a Warhorse parece ter se esquecido dos elementos básicos que fazem um jogo ser o que é.
Logo de início, já dá para sentir o peso extremo nos controles, tanto usando teclado e mouse quanto o joystick. Aqui, temos a desculpa de estarmos controlando um cidadão comum, sem treinamento de combate e que vivia uma vida pacata. Ela seria plenamente aceitável não fosse o fato de, mesmo ao longo de sua evolução, as coisas não mudarem muito.
A habilidade com espadas e armas pode até evoluir, bem como a velocidade e resistência do protagonista, mas, ainda assim, não há muita distância entre o personagem importante na história da Boémia e o moleque que enfrenta um bêbado logo no começo do game, em uma discussão que só pode acabar em briga de forma que o tutorial de batalha seja exibido.
Socos e chutes são dados de forma extremamente lenta, assim como espadadas e cavalgadas. Sem habilidade ou com toda experiência de combate, movimentos travados e animações repetitivas tornam os confrontos desbalanceados a favor dos oponentes, que ainda contam com bugs que permite que eles voem na direção do jogador ou se movimentem de maneira irrealmente veloz.
Enquanto isso, o usuário fica lá, tentando bater no ar e compensando o lag na detecção de pressionamento dos botões, ao mesmo tempo em que toma surras de vagabundos e guardas. Em alguns momentos, vale mais a pena passar uns dias na cadeia do que tentar enfrentar a justiça e lidar com os péssimos comandos de batalha.
Navegar pelos menus também não é tarefa fácil. No inventário, a poluição visual chama a atenção. Na tentativa de imitar a arte e estilo visual de um livro da época, a Warhorse criou menus nada intuitivos e cheios de elementos desnecessários, entregando um amontoado esquisito e pouco prático, que usa mal os botões. Tenha paciência e tente não ficar frustrado ao pressionar o botão errado no joystick e prefira o mouse para navegar, caso esteja no PC.
Durante o game em si, a interface é limpa e com pouquíssimos elementos. O GPS, aliado comum em games de mundo aberto, não aparece aqui – afinal de contas, essa tecnologia não existia nem em sonho nesta época. Indicadores mostram o caminho a seguir e a distância até os objetivos, enquanto medidores exibem o sono e a fome do personagem principal.
O que dizer, entretanto, quando eles simplesmente somem durante a exploração? Eles podem ter sido desativados contra a vontade do usuário, por pressionamentos indevidos dos botões ou simples bugs, em uma situação fácil de resolver. Em outros momentos, eles desapareceram devido a problemas de programação e somente reinicializar o título pode resolver o problema.
Esse aspecto traz outro problema por si só, relacionado ao sistema de salvamento. Os checkpoints são esporádicos, normalmente aparecendo apenas durante as missões, enquanto o processo pode ser feito a qualquer momento usando um item específico – com quantidades limitadas e capazes de deixar o protagonista bêbado.
Ou seja, caso um bug desse tipo seja encontrado, é preciso gastar um deles ou, então, seguir até a próxima missão, seja ela qual for, para economizar – uma opção “salvar e sair” está em desenvolvimento, segundo os desenvolvedores, mais ainda não havia sido liberada até a publicação desta análise.
O RPG conta ainda com diversas outras falhas de programação, como paredes invisíveis, itens que desaparecem do inventário e golpes que não acertam os oponentes, mesmo que tenham encostado neles. Falhas na legendagem – que não está disponível em português – aparecem a todo momento. Atualizações liberadas ao longo de nosso processo de análise melhoraram um pouco as coisas, mas o game ainda está longe do plenamente funcional.
Kingdom Come: Deliverance apresenta um trade-off, trazendo um mundo complexo, mas com jogabilidade ruim. A balança, entretanto, pende mais para o lado da negatividade por conta do protagonista, Henry. Mulherengo e infantiloide, o personagem é, na melhor definição possível, um babaca completo, com quem o jogador não terá a menor empatia, mesmo após a morte da família. Afinal de contas, momentos antes, estávamos xavecando a dona do bar em troca de desconto na cerveja e jogando fezes na casa de pessoas por discordarmos de suas opiniões políticas.
Esse aspecto se torna ainda mais forte no desenvolvimento da trama, que para cada situação interessante e com diferentes possibilidades, traz um desenvolvimento clichê e problemático. O game tem uma certa obsessão por sexo e violência, sem falar nos momentos simplesmente machistas – elementos que refletem as características do período histórico em que o jogo está situado, é verdade, mas são abordados sem o devido cuidado.
Situações de abuso sexual aparecem com certa frequência, com muitas delas podendo ser refletidas em situação de sedução. A donzela indefesa, recém-salva das garras de malfeitores, podem acabar caindo de amores pelo cavaleiro em armadura não tão brilhante assim, em uma sequência de diálogos que soa, no mínimo, bizarra e ampliam ainda mais o caráter escroto do personagem principal.
Há ouro a ser encontrado aqui, mas para ser encontrado, o jogador precisa ser resiliente em meio às diversas falhas do game.
Diálogos mal colocados, alguns contando até com expressões e ditados modernos, fortificam ainda esse distanciamento por parte do usuário. Em um mundo tão extenso, fica difícil dar atenção e profundidade a absolutamente todas as conversas e missões – afinal, estamos falando de um time de desenvolvimento composto por 150 pessoas.
Ainda assim, não dá para ignorar a estranheza quando disputas comerciais ou discussões são resolvidas por falas que não fazem muito sentido ou são pouco conclusivas. Você pode não falar nada demais e ver sua contraparte partindo para a porrada, ou então, enxergar o andamento do papo seguindo para caminhos indesejados quando a reação do ouvinte não condiz com sua fala.
Todos os personagens, sejam eles protagonistas ou NPCs, apresentam a mesma expressão de peixe morto, o que torna o envolvimento com a história ainda mais difícil. Mesmo diante de um massacre, a expressão de Henry permanece travada, em mais um dos tantos aspectos negligenciados pela equipe da Warhorse Studios, que acabam depondo contra a profundidade exibida no restante de seu produto.
Em Kingdom Come: Deliverance, a habilidade mais importante é a resiliência, mas quem tem que a desenvolver é o próprio jogador, e não Henry. O título apresenta um mundo cheio de camadas, com ambição e diferentes possibilidades, mas simplesmente mal executado, com pouca atenção para elementos básicos e essenciais em uma aventura desse tipo.
Há ouro a ser encontrado aqui, mas ele está encoberto por mecânicas mal implementadas, dezenas de bugs e diversos problemas. Em termos medievais, é como se a Warhorse tivesse se preocupado absurdamente com os temperos e tempo de cozimento de um delicioso javali para o banquete, servindo-o ao lado de uma cerveja choca e aguada.
O jogo foi testado no PC, em cópia cedida pela Deep Silver.