Depois de 17 anos e dez jogos espalhados por três gerações de consoles, além dos games para dispositivos portáteis (e browsers também), eis que a primeira das três sagas idealizadas por Tetsuya Nomura chega a seu fim. O capítulo final da Dark Seeker Saga (ou Xenahort’s Saga, como chamam os fãs) foi enfim mostrado em Kingdom Hearts III, que saiu em 29 de janeiro para Xbox One e PlayStation 4.
Colocar as mãos em um game assim parece até um sonho que se realiza. E é até difícil encontrar as palavras certas para expressar o que contemplei e senti enquanto controlava Sora ao lado de seus outros dois inseparáveis terços, Donald e Pateta — afinal, três terços formam um inteiro!
Foram quase 40 horas de aventuras visitando mundos da Disney e da Pixar, todos repletos de magia e nostalgia, regrados a gráficos belíssimos que às vezes me confundiam de tão estonteantes, uma trilha sonora à altura dos padrões de qualidade da franquia, com direito ao selo Yoko Shimomura de emoção, e, claro, mostrando a conclusão de uma complexa e longa batalha contra a escuridão que os personagens vêm enfrentando a mais de uma década.
Mas, vamos tentar deixar um pouco as emoções de lado para falar devidamente sobre o game.
Em termos de gameplay, Kingdom Hearts III continua um completo caos, como sempre foi. Existem mecânicas novas, sim, mas antes de falarmos delas vale apontar o que voltou e, por tabela, o que melhorou — ou não. A câmera, por exemplo, continua parecendo desengonçada a princípio, mas eventualmente você se adapta e ela deixa de incomodar.
O velho Command Menu continua na lateral esquerda, onde o jogador escolhe entre uma das opções: Attack, Magic, Items ou Link, que permite invocar um aliado. O submenu de Attack, por sinal, ganhou uma nova função: se o jogador apertar o direcional direito enquanto o cursor estiver nesta opção, ele poderá escolher entre três Keyblades previamente equipadas nos Options.
Quanto aos personagens do seu grupo, sejam eles temporários ou não, todos possuem três barras com as quais você sempre deve ficar atento: a de HP (verde), a de MP (azul) e o Focus Gauge (amarela), que permite a execução de Shotlocks.
Jogue e siga seu coração. É a magia da Disney (e da Pixar) junto à nostalgia da Square em sua melhor forma neste que é o final da saga idealizada por Tetsuya Nomura.
Os Shotlocks são uma espécie de ataque especial em que se mantém o R1 pressionado durante as batalhas e mira-se nos inimigos, liberando vários golpes à distância. Há ainda os Situation Commands, que aparecem logo acima do Command Menu ocasionalmente, e é aqui que as batalhas ficam ainda mais interessantes.
Isso porque os Situation Commands oferecem duas oportunidades quando são ativados: a de executar um Formchange ou de invocar Attractions. Enquanto o primeiro é uma espécie de evolução do sistema Drive de Kingdom Hearts II (mas aqui, atribuído a cada uma das Keyblades, que se transformam e se tornam ainda mais poderosas); as Attractions são armas poderosíssimas trazidas para a batalha, inspiradas em um algum brinquedo da Disneyland.
Há também os Shortcuts, atalhos para comandos que podem ser equipados em diferentes configurações do joystick à escolha do jogador, deixando o menu semelhante ao Deck Commands de Kingdom Hearts: Birth by Sleep. Vale lembrar que o AntiForm também está de volta, mas agora assume o nome de Rage Form, e pode ser ativado quando o protagonista está com pouco HP.
Outro ponto legal de ressaltar é a respeito das magias que afetam não apenas os inimigos, mas também os cenários. Além disso, se o jogador usar muitas vezes a mesma magia, ela acabará se transformando automaticamente em um Situation Command, deixando os combos e a batalha ainda mais dinâmicos.
Já os Links, ou sistema de invocações, estão de volta e os jogadores podem contar com Meow Meow, Ralph, Simba, Ariel e Stitch. Diferentemente dos games anteriores, não é mais necessário explorar os mapas atrás dos Summons: agora eles são dados como recompensas em forma de Heartbinders após certos eventos em determinados mundos.
Os combos, por sua vez, são inúmeros graças aos diferentes Formchanges de cada uma das Keyblades. Ainda é possível estender a duração dos golpes, das Attractions ou ganhar novas habilidades (seja para lutar, se locomover e/ou soltar magias) conforme o jogador avança nos Levels dos personagens.
A cada novo nível, uma nova técnica é adicionada à lista de Abilites nas Opções e, para equipá-las, é preciso gerenciar seus APs. E por falar em habilidades, os Limits de Kingdom Hearts II também retornam, concedendo ataques especiais entre Sora, Donald e Pateta, ou com os personagens temporários do seu grupo (Hércules, Woody & Buzz, Rapunzel & Flynn, Sulley & Mike, Anna & Kristoff, Marshmallow, Jack Sparrow, e Baymax).
O comando aparece na forma de um Situation Command. Vale dizer que agora não é mais necessário escolher com quem o protagonista irá explorar os mundos, pois a party comporta até cinco bonecos juntos, tornando tudo ainda mais bagunçado e divertido.
Por fim, há o Flowmotion, que retorna de Kingdom Hearts 3D: Dream Drop Distance e permite que os personagens alcancem locais muito altos com facilidade, bastando interagir com certos elementos — como, por exemplo, quicar em blocos flutuantes ou rodopiar em torno de uma estalactite para pegar impulso, e assim por diante.
A mecânica também pode ser usada para combate, mas dominá-la, em geral, é um tanto difícil. Fica a expectativa para que depois Kingdom Hearts III melhore essa habilidade de verdade — ou que retirem ela de uma vez, amém.
Sora agora tem um Gummiphone, uma espécie de smartphone para se comunicar com Tico e Teco e também com seus demais amigos durante as cutscenes. No jogo mesmo, ele serve como as Opções, onde o jogador pode escolher equipamentos, usar itens, selecionar habilidades, consultar o Jimminy’s Journal, dentre outros.
Por ser uma espécie de aparelho celular, o Gummiphone também serve para registrar fotografias. O Photo Mode do game garante momentos engraçados entre os integrantes do grupo dependendo do momento, em especial se forem selfies; e, claro, serve para registrar os Lucky Emblems, símbolos em formato do Mickey Mouse que estão mais do que bem escondidos pelos mundos.
Encontrá-los é um ótimo incentivo, já que as recompensas são itens exclusivos, geralmente equipamentos que quebrarão o maior galho, e, mais importantemente: quanto mais emblemas, mais chances de ver a cena secreta do jogo, liberada logo após os créditos. Há também inúmeros minigames para matar o tempo, os quais podem ser acessados pelo Gummiphone após o jogador encontrar os QR Codes em baús especiais pelos mapas.
Há também minigames bastante pontuais, como os de colheita no mundo do Ursinho Pooh e também o de cozinhar com o Little Chef em Twilight Town. Este último, por sua vez, precisa de ingredientes, os quais serão coletados explorando os mundos do game. Quanto mais diferente for o material, mais complexa será a receita — e mais estrelas o restaurante ganhará quando houver êxito no minigame, o que requer certa habilidade e timing na execução.
O Gummi Ship também está de volta, mas, antes de você torcer o nariz, a nave de exploração intergaláctica está bem mais fácil de manejar e os comandos foram revisados, tornando o gameplay dessas partes muito tranquilo e prático. Quem gosta de shoot em’ up pode até acabar se divertindo enquanto viaja de um mundo para outro, explorando as galáxias e além.
Por fim, o adorável Moogle está de volta em sua Moogle Shop, vendendo ou adquirindo itens dos personagens, além de sintetizar equipamentos exclusivos. Por sinal, vale explorar bem os mundos e achar todos os tesouros (e/ou participar dos minigames pontuais de cada mundo, como o Flantastic Seven ou Frozen Slider) para ganhar materiais raros e, assim, evoluir suas Keyblades ou forjar a Ultima Weapon.
Kinhdom Hearts III não é recomendado para jogadores de primeira viagem, isto é, aqueles que sequer encostaram em um game da franquia antes. Em termos de gameplay, ele é bastante intuitivo e os jogadores aos poucos entendem como tudo funciona; quando menos perceberem, os jogadores estão executando intermináveis combos aéreos emendados em Formchanges e magias e finalizados com uma Attraction.
É simplesmente bem gostoso de jogar e, embora seja muita informação e muitos comandos para se aprender, além de diversos minigames para participar, uma coisa vai levando a outra e todo o processo de aprendizagem (ou de refamiliarização) acaba se tornando bem natural. Porém, o mesmo não pode ser dito da história.
Colocar as mãos em um game assim parece até um sonho que se realiza. E é até difícil encontrar as palavras certas para expressar o que contemplei e senti enquanto controlava Sora ao lado de seus outros dois inseparáveis terços.
Apesar de existir um Theater Mode para reassistir todas as cutscenes do game cada vez que se terminar um dos mundos e uma opção de The Story So Far no menu inicial, que resume (e muito) os principais acontecimentos dos últimos games, qualquer iniciante pode se sentir: a) extasiado; b) perdido; c) sobrecarregado; d) todas as anteriores. E quem se aventurou em pelo menos um dos títulos anteriores, vai sentir no mínimo apenas uma dessas alternativas.
Isso porque a história da saga Kingdom Hearts, num geral, não é difícil ou muito complexa. O problema é que é muita informação jogada em diferentes games de variadas plataformas — apesar deste argumento ser ferozmente refutado pela existência das coletâneas Kingdom Hearts HD 1.5 + 2.5 ReMIX e Kingdom Hearts HD 2.8 Final Chapter Prologue, que reúnem todos os títulos lançados até então.
Contudo, a expectativa é que qualquer game que se preze precisa estabelecer sua trama de forma que jogadores novatos e veteranos entendam tudo. E isso está lá em Kingdom Hearts III: seja na opção The Story So Far, no Jiminy’s Journal durante o game, nas recorrentes recapitulações a acontecimentos anteriores durante cutscenes… Mas nada disso parece suficiente, uma vez que o game não está legendado em português brasileiro.
Este único e grande fator é o que mais complica o game em termos de resistência nas mãos de novos jogadores, em especial as dos brasileiros que não estão tão familiarizados assim com a língua inglesa. Entretanto, se os gráficos estonteantes, a nostalgia da Disney e da Pixar, e a belíssima trilha sonora te convencerem, vá sem medo. Acredite em seu coração.
Passados os contrapontos sobre a trama, vamos aos pontos fracos da história. Uma vez que tecnicamente o jogo está excelente, com exceção de uma mecânica ou outra — cof cof, Flowmotion, cof cof — e de um ou outro recurso que (continua) mal-explorado — cof cof, Links, cof cof —, resta falar do plot.
Como já comentado por aqui, Kingdom Hearts III é o capítulo final da primeira saga (de um total de três) idealizadas por Tetsuya Nomura. A expectativa é certamente muito alta para ver como tudo vai se desenrolar. Mas, acima disso, este não é o fim, como já foi deixado muito claro anteriormente pelo diretor, roteirista e criador da franquia.
Em termos de fechamento de arcos, Kingdom Hearts III os executa como nenhum outro, trazendo velhos e queridos rostos de volta e outras personas non-gratas também, tudo para colocar os devidos pingos nos is de cada história. O problema, porém, é que o andamento da trama é bem arrastada.
Tudo é resolvido, de fato, apenas após o fim do último mundo do game, iniciando uma longa sequência de batalhas contra chefes e cutscenes grandes (e bem emocionantes). É recompensador ver o desfecho de tudo e de todos, mas o game não estimula rejogar tudo pelo puro prazer de reviver cenas e/ou lutas. Tudo o que resta é terminar as sidequests e/ou pegar itens que ficaram para trás, simplesmente por fazer.
Os personagens possuem características muito bem definidas e, por ser um capítulo de término de saga, não há tantas evoluções: ao invés disso, a narrativa abre alas para as conclusões, como bem havia de ser, permitindo que os protagonistas brilhem como nunca. E claro, como não poderia deixar de ser, há inúmeros momentos engraçados ao lado de Sora, Donald e Pateta. Inclusive, talvez este seja o Kingdom Hearts mais divertido.
Existem ainda muitos momentos que quebram a quarta parede ou que usam de metalinguagem para dialogar com o jogador e que merecem destaque — que venham mais desses! Por fim, como estamos falando de Kingdom Hearts, é possível perceber nas entrelinhas de diálogos bem específicos o que o futuro da série reserva. Parece até que Tetsuya Nomura, de fato, sempre trabalha em um dos títulos já pensando nos dois próximos.
Minha aposta é que, além de mais mundos da Pixar, os próximos games se aventurem em mundos de outros títulos da Square-Enix. Talvez por isso, inclusive, Final Fantasy não tenha tido presença forte neste game — e isto, aliás, está sendo um fator muito decepcionante para muitos fãs da saga, muito embora, particularmente, eu os veja representados nos próprios personagens originais da franquia, isto é: Sora, Riku, Kairi, Roxas, Axel, Xion, Terra, Ventus, Aqua, etc.
De toda forma, mesmo sem ter absorvido toda a bagagem anterior necessária para jogar Kingdom Hearts III (esta que vos fala se aventurou em quatro games da série apenas, incluindo o primeiro e o segundo), toda a experiência com este que é o capítulo final da Dark Keeper’s Saga foi marcante.
É difícil não se emocionar em certos momentos e, ainda que a conclusão seja um pouco confusa, já que deixa pontas soltas a serem exploradas no futuro, é impossível não sentir falta de se aventurar ao lado de Sora, Donald e Pateta, não cantarolar o tocante tema de encerramento do game junto da maravilhosa Hikaru Utada, ou não criar expectativas para o que Tetsuya Nomura planeja. Portanto, que nossos corações sejam sempre os nossos guias pelos próximos tempos.
O jogo foi testado no PS4, em cópia cedida pela Square Enix. Essa análise foi publicada originalmente no Canaltech.