Life is Strange surgiu como um daqueles fenômenos que surgem de vez em quando na indústria. Pequeno e com toda a cara de indie, o novo título da desenvolvedora Dontnod, que até então era conhecida pelo nada legal Remember Me, em parceria com a Capcom, decidiu abordar um gênero que, apenas anos antes, havia sido revivido pela Telltale. Os adventures estavam de volta para alegria dos saudosistas e, quem jogou a saga de Max e Chloe, sabe que ele estava de volta em sua forma mais bonita.
Desde então, quase três anos se passaram, tempo suficiente para a tomada de algumas decisões corajosas. Ao abordar esse universo novamente, a desenvolvedora decidiu seguir por um novo caminho, deixando as consagradas protagonistas e o restante de suas histórias à cargo da Deck Nine, no spin-off Before the Storm. Já no primeiro episódio de Life is Strange 2, se percebe que a escolha por um novo rumo e uma trama inédita foi mais do que acertada – para uma empresa com tanto a dizer, o jogo jamais poderia chegar de outra maneira.
O capítulo inicial, Roads, começa sereno como qualquer fim de tarde. Entretanto, estamos falando de um jogo da Dontnod. Sendo assim, o caos e a tragédia não demoram a se abater sobre os irmãos Sean e Daniel Diaz, que veem o pai sendo baleado e morto diante de seus olhos em mais um daqueles casos trágicos e que se tornam corriqueiros na realidade americana. Já chegamos no jogo sabendo que nossas escolhas importam, mas começamos levando um tapa na cara inevitável.
É exatamente o que os fãs estavam esperando e muito mais, com uma grande demonstração de força. Os jogos precisam muito falar do nosso mundo. Life is Strange 2 faz isso e vai além.
O discurso político é claro durante todo o capítulo, mas não aparece da forma lacradora ou impositiva de outras tantas obras, que acabam gerando afastamento e hostilidade. Assim como seu antecessores, Life is Strange 2 é real, assustadoramente às vezes. Estamos diante de um game com elementos sobrehumanos, é verdade, mas não dá para afastar a noção de que uma história desse tipo pode estar acontecendo por aí, a qualquer momento.
Mais triste ainda é a concepção de que essa não é uma possibilidade, mas sim, uma realidade. O aspecto palpável, mais do que qualquer discurso, visual, abordagem ou importância dada às escolhas, continua sendo a grande força de uma franquia que ficou conhecida justamente por isso. É o fato de enxergarmos Sean e Daniel como a gente ou nossos semelhantes que faz com que o jogador se importe tanto. Em 15 minutos de episódio, o jogador já está capturado e, como aconteceu com Chloe e Max, com o coração apertado por não poder fazer nada a respeito do que está se desenrolando na tela. Como fica bem claro na fala de um dos protagonistas, o passado não pode ser mudado desta vez.
Uma família de latinos que mora em um bairro humilde e, agora, se vê envolvida em um caso de violência e despreparo policial, mas também de agressão a um oficial da lei, mesmo que não intencional. Em um país dilacerado por intolerância e questões raciais perenes, a justiça pode até ser cega, mas a balança que ela carrega nas mãos certamente pende mais para um lado. Quando a tragédia chega, literalmente, à porta de casa, Sean toma a única decisão possível: fugir.
Esse é o começo de uma saga em que a sensação de solidão e insegurança é constante. Sean e Daniel não estão apenas sozinhos, sem dinheiro e apenas com a roupa do corpo, também estão diantes de um interior dos Estados Unidos que, longe das cosmopolitas e avançadas capitais, reflete mais do que qualquer outra região os problemas do país. A mesma violência que os buscou em casa, agora, pode estar em qualquer lugar.
Nesse aspecto, ainda, a escolha de protagonistas não acontece por acaso e, de Life is Strange, o título poderia muito bem se chamar Life is Hard. Ao mesmo tempo em que investe na representatividade ao contar sua história, o título também escancara uma ferida aberta do mundo atual, que pulsa, sangra e dói em todos – ou, pelo menos, deveria.
Acima dessa fuga desesperada e impensada, entretanto, está uma sensação de impotência que acaba sendo mais triste do que os próprios eventos que deram origem a ela. Ao fazer com que a gente se importe com a dupla de personagens principais e, depois, nos jogar em uma situação de desesperança, a Dontnod consegue criar empatia e preocupação com mais dois protagonistas virtuais. A vontade é de ajudá-los, dar abrigo, comida e ajudar na comprovação de sua inocência. Mas a vida é dura e tudo o que podemos fazer é tomar as decisões que julgamos corretas e torcer para que o melhor aconteça.
Felizmente, Sean e Daniel não estão sozinhos e, como diz o maior dos clichês, têm um ao outro. E em uma situação de total desespero, os dois ainda encontram tempo para serem irmãos e se divertirem como no passado. O irmão menor serve como o vetor dos principais momentos de ternura do episódio, seja em uma brincadeira à beira do lago, uma luta de espadinha com gravetos, a dança que traz as lembranças de um velho game musical ou a referência a um game de terror que está entre os melhores de todos os tempos.
E, em momentos assim, Life is Strange 2 normalmente traz as lembranças de nossas próprias vidas. Você pode estar lendo esse texto no seu sofá confortável e sob uma coberta quentinha, enquanto os protagonistas precisam dormir ao relento. Você pode ser cego às questões sociais que destroem o nosso mundo ou desses que discordam de uma realidade que está acontecendo diante dos olhos. Mas pelo menos nestes momentos, não dá para deixar de sentir empatia. Todo mundo já brincou, imaginou e, acima de tudo, se prendeu às lembranças de um passado mais feliz para passar por um momento complicado.
A escolha por um novo rumo e uma trama inédita foi mais do que acertada – para uma empresa com tanto a dizer, o jogo jamais poderia chegar de outra maneira.
É essa mistura de tristeza e desesperança extrema com ternura e um gigantesco sentimento fraternal que se firmam as bases de Life is Strange 2. Todos os momentos têm algum tipo de significado, mesmo que ínfimo, seja para a vida dos protagonistas ou para a moral envolvida no título. E aqui, ao contrário do que a maioria só diz, as decisões efetivamente importam e mudam o curso das coisas.
Até mesmo a menor das escolhas podem alterar os rumos. Afinal de contas, desta vez, estamos acompanhados de uma criança que, mais do que a melhor amiga de seu irmão, o tem como grande modelo de comportamento. A cabeça de Daniel não funciona da mesma forma que a de Sean, e nenhuma das duas trabalha na mesma frequência que a nossa. Por isso, é melhor tomar cuidado para não ver até mesmo uma ação completamente justificada acabar “mal interpretada” pelos olhos de um garoto com caráter ainda em formação.
Caso não tenha olho vivo, algumas consequências só serão descobertas ao final do capítulo, nas estatísticas de jogo ou, pior ainda, nos capítulos seguintes, quando algo acontecer de acordo com pequenos atos do passado.
Mais do que os temas políticos, é o amor entre esses dois irmãos que move as engrenagens de Life is Strange 2. Um é o suporte do outro nos momentos de dificuldade e eles parecem se complementar em seus defeitos. O texto bem escrito como sempre e a dublagem ajudam e muito, além da legendagem em português, apesar de a performance de Gonzalo Martin, que interpreta Sean, deixar um pouco a desejar, bem como as expressões faciais em alguns momentos mais intensos.
Ao colocar dois protagonistas que, provavelmente, passarão toda a aventura lado a lado, a Dontnod também aproveitou para incluir novas mecânicas. Já falamos que as decisões, às vezes, podem ser mais profundas e implícitas do que parecem, e o game também aproveita a broderagem dos Diaz para criar alguns elementos interessantes
Em um dos momentos do episódio, por exemplo, é possível pedir que o menor distraia um atendente ou popular, enquanto o mais velho realiza algum ato. Em outro, a cooperação entre eles acontece na escapada de uma situação bastante tensa, em trechos que chegam a lembrar até mesmo o recente A Way Out, da Electronic Arts, só que sem, obviamente, a parte cooperativa.
Por outro lado, tais sequências fazem até pensar que um elemento desse tipo não faria mal a ninguém, tornando toda a questão ainda mais profunda. Porém, dá para entender porque a Dontnod não seguiu por esse caminho; por mais que Life is Strange 2 ganhe novos elementos em termos de jogabilidade, um sistema de troféus mais complexos e até cenas um tanto repetitivas para demonstrar as habilidades de Sean como desenhista, o game veio para contar uma história e é nela que ele vai se concentrar.
E é exatamente isso que a plateia quer ver. Quem está esperando desde 2015 por um novo capítulo da franquia principal vai se sentir em casa aqui, encontrando um título que evoluir suas mecânicas muito bem e se mostra cada vez mais maduro, na mesma medida em que ousa mais para contar uma história maior e mais intensa, mas sem perder a proximidade e a identificação que transformaram Life is Strange em um sucesso indiscutível.
Os sinais desse amadurecimento aparecem em todo lugar, principalmente quando a Dontnod conserta um dos poucos erros graves do primeiro game ao respeitar a decisão do jogador do passado, de uma forma que o próprio Life is Strange original, em seu encerramento maniqueísta, não considerou. O discurso político bem colocado, o texto escrito de maneira doce, mas pesada e, principalmente, o coração que continua batendo forte, são as principais marcas desse crescimento.
Life is Strange 2 evoluiu graficamente e em temática para iniciar uma nova temporada, que promete ser melhor que a anterior não apenas em emoções e momentos dramáticos, mas também em relevância e ambição. É exatamente o que os fãs estavam esperando e muito mais, com uma grande demonstração de força.
Os jogos podem, e devem, falar de nossas vidas e do mundo ao nosso redor, principalmente para mostrar o quanto a vida é estranha e, acima de tudo, dura. Dolorosamente, na maioria das vezes. Puerto Lobos não poderia estar mais longe.
O jogo foi analisado no PS4, em cópia digital gentilmente cedida ao Canaltech pela Square Enix.