A série The Dark Pictures Anthology nasceu, ao mesmo tempo, como uma retomada dos diferentes estilos do terror e, também, como uma forma de os abordar em uma mídia diferente. Nascida de um game, por si só, amplamente de gênero, a franquia da Supermassive Games também se tornou uma característica da própria produtora, que a cada novo título, mostra mais conforto e amadurecimento em um estilo narrativo e amplamente focado nas escolhas do jogador, cujas decisões importam de verdade.
Foi assim no ótimo e surpreendente Until Dawn e, também, em Man of Medan, que abre a antologia de histórias para se contar no escuro. O mais recente lançamento, Little Hope, resolve problemas que ficaram em aberto no último, mas também, tem seus próprios. Nenhum, porém, é suficientemente grande para macular a história altamente intrincada, contada em três linhas temporais diferentes e daquelas que merece ser compartilhada com amigos, da maneira que o próprio título incentiva a fazer.
Na trama, um grupo de jovens em uma excursão universitária acaba tendo o ônibus desviado para a cidade que dá nome ao game, um local abandonado cuja história remete a depressões econômicas e, séculos antes, ao fanatismo religioso que levou à caça às bruxas. O time, com destaque para Andrew (Will Poulter, de Black Mirror: Bandersnatch), deve descobrir como sair dali e, como em toda boa história de terror, se vê mais envolvido do que imaginavam com as tramas e os horrores deste lugar.
Little Hope vai além em todos os aspectos, sendo um dos títulos de terror mais interessantes do ano, ainda que a abordagem passiva e baseada em QTEs possa não agradar universalmente.
As escolhas importam e isso vale desde o início, na impactante cena que abre o título e em um momento no qual o jogador ainda não sabe ao certo como agir. A ideia da Supermassive é entregar uma narrativa como a da própria vida dos protagonistas, na qual uma decisão tomada no começo pode ter impacto significativo na miríade de finais disponíveis, mesmo que não seja possível inferir nada desde o começo.
A ideia é que o jogador faça o melhor possível com as informações que possui e torça para que tudo dê certo, se é que isso é possível em um ensejo que envolve demônios, tramas religiosas, questões pessoais e uma cidade deserta e altamente inspirada em Silent Hill.
Entra, então, a figura do Curador (Pip Torrens, de A Garota Dinamarquesa e Preacher), a mais bem escrita e interessante de Little Hope. Ele é o responsável por contar essa história e, também, levar o jogador pelos desígnios desse mundo. O personagem também dá dicas que podem levar a certos desfechos, entregando elementos de forma críptica e manipulando (ou não) as decisões em prol de algo que nem mesmo sabemos o que é.
Junte o elegante intelectual à trama secular, ainda que contada por meio de protagonistas um bocado detestáveis, mas com os quais você acaba se afeiçoando, e temos um dos grandes terrores deste segundo semestre, um período que já vem cheio de boas propostas como Visage e Amnesia: Rebirth. The Dark Pictures Anthology: Little Hope mantém firme o que já pode ser chamado como uma das tradições da Supermassive Games, ainda que ela tenha um caminho a trilhar e arestas importantes a polir nos próximos dois jogos dessa antologia.
Little Hope acerta onde seria mais difícil, entregando um enredo que se passa em três tempos e, mais do que isso, cujos reflexos se interligam entre si. Não vamos entregar spoilers aqui, bastando dizer que, da mesma forma que suas decisões do “presente” afetam o estado dos personagens, aquelas tomadas no passado e nos tempos ainda mais antigos também podem influenciar no andamento dos fatos atuais e, também, naqueles que já ocorreram ou não, com o famoso paradoxo da viagem no tempo não tendo vez aqui.
A própria ausência de fio condutor entre eventos de antes e depois, também, são um dos fatores de curiosidade para a própria trama. Enquanto os personagens encontram seus pares em diferentes linhas temporais, se é que efetivamente podemos chama-las assim, os eventos vão se desenhando, assim como os próprios elementos narrativos ou orgânicos do terror, na forma de situações bizarras ou impactantes e monstros bastante perturbadores, cuja gênese se dá, também, nas escolhas e eventos.
A sutileza do Curador em entregar pílulas de conhecimento e ajuda, que o jogador não sabem se são positivas ou negativas, entretanto, não se reflete no próprio andamento da história. É possível, sim, entender a trama e chegar a um final mesmo sem ver absolutamente todas as cenas, já que elas dependem de escolhas feitas e da própria sobrevivência dos protagonistas. Você saberá que não viu algo relativamente importante, porém pelos cortes secos que interrompem cutscenes ou cortam momentos empolgantes, com a cena seguinte nem sempre tendo uma ligação fluida com a anterior.
Nesse aspecto, a Supermassive Games obtém sucesso no mais complicado, mas acaba pecando no que seria, teoricamente, mais fácil de se alcançar. Mesmo que o jogador acelere o passo e não explore os cenários, deixando de coletar itens ou premonições que revelam mais sobre o enredo, ele ainda assim chegará a um final que fecha um círculo— entretanto, ao longo de todo esse tempo, saberá exatamente onde e como se encaixariam os diálogos ou elementos deixados para trás e deverá fazer de conta que não está vendo os momentos sem conexão direta entre si.
Fique de olho no Curador, o personagem mais bem escrito do game, com uma sutileza de diálogos e dicas que podem ajudar ou arruinar a jornada.
O problema gera um abismo entre o jogador e a trama, da mesma forma que os pequenos bugs que parecem afetar o movimento e a interação entre os personagens. Durante praticamente toda a aventura, o jogador terá como objetivo manter os personagens juntos, mas nos momentos de jogabilidade livre, eles podem travar em objetos ou simplesmente permanecerem parados, enquanto o destino está à frente.
Nos momentos de tensão, ver que alguém está ficando para trás pode ser um empecilho, enquanto, depois, quando o usuário percebe que isso pode acontecer, sempre estará se perguntando se o fato é um bug ou algo intencional para a história.
Deixar a exploração e a caminhada de lado é quase uma ofensa aos cenários finamente construídos, com as lições bem aprendidas nos Survival Horrors clássicos como Resident Evil e Silent Hill (uma grande influência, aliás) mostrando seu papel. Mais uma vez, temos locais que, mesmo na mais profunda escuridão, saltam aos olhos com pontos de luz finamente posicionados e um design que chama a atenção pela iluminação e ambientação.
Por outro lado, ainda persistem as situações em que bocões abertos e um alto franzimento da testa escondem loadings ou momentos de interação com outros elementos do título, de forma que o pressionamento de um botão não corte diálogos e cenas de corte. São aspectos que depõem contra um título cuja captura de movimentos é apurada, ao lado de belos gráficos mesmo nas versões básicas dos consoles – nos quais é possível sentir, também, algumas quedas nas taxas de quadros por segundo.
Little Hope é altamente realista, mas tais escolhas nos colocam diretamente no “vale da estranheza”, fazendo com que os personagens, por vezes, se pareçam bonecos de cera. As representações lembram, de maneira um pouco negativa, os exageros de performance vistos em L.A. Noire, e não são suficientes para quebrar a tensão e o horror, ainda que gere risos aleatórios onde o humor jamais caberia.
Não é à toa que, no menu inicial de Little Hope, a opção “Não Jogue Sozinho” está acima. Uma história fragmentada como esta e baseada em decisões é muito melhor quando jogada em grupo, enquanto o formato, com cerca de cinco horas de duração, facilita uma jogatina do início ao fim em um único evento, apesar do coronavírus. Vale a pena esperar a pandemia passar para reunir as pessoas em uma noitada de terror desse nível.
Em todos os games da Supermassive, as apostas sempre são altas e, quando se adiciona o esforço em grupo, se tornam ainda maiores pelo fato de uma decisão impactar na jogatina de todos os outros. Os jogadores controlam personagens individualmente, ao melhor estilo “passa o controle”, enquanto todos assistem à trama se desenrolar como em uma noite de cinema. Aos mais solitários, há também o modo online, que gera os mesmos efeitos, mas à distância.
Little Hope é altamente realista, mas tais escolhas nos colocam diretamente no “vale da estranheza”, fazendo com que os personagens, por vezes, se pareçam bonecos de cera.
Melhor do que apenas jogar em grupo é, efetivamente, seguir sua história, que deixa arestas convenientemente abertas de acordo com as escolhas dos envolvidos. Dependendo do final obtido, você pode se flagrar discutindo sobre os desígnios de personagens e sobre até que ponto uma dica dada pelo Curador ou um arquivo encontrado foram sinais ignorados para uma conclusão melhor da trama, o que também significa manter todos os personagens vivos.
É sim possível chegar aos créditos com todos respirando, da mesma forma que a morte do grupo também não significa o fim do jogo, e sim, outro final possível. E logo após a subida dos nomes dos envolvidos, com direito a um teaser da próxima obra de horror da desenvolvedora, House of Ashes, que chega em 2021, a vontade é de começar tudo de novo, seja para comprovar uma teoria ou, na maioria dos casos, usar o conhecimento acumulado para garantir que os protagonistas não morram.