Mafia 3 é mais do que um jogo relevante — ele é necessário. Poucas vezes vimos os videogames se posicionando diante de questões delicadas ou tratando sobre problemas reais, sobretudo o racismo. Ainda que tenha crescido, a indústria dos games é tradicionalmente conservadora nesse aspecto, evitando até mesmo colocar um protagonista negro em seus grandes lançamentos, uma ausência incômoda e sintomática. É uma lacuna que diz muito sobre o mercado, seu público e o modo como ela enxerga seus heróis.
E o timing para isso não poderia ser mais perfeito. Mafia 3 chega em meio às recentes mortes de jovens negros por policiais nos Estados Unidos, ao surgimento do movimento Black Lives Matter e a tantas outras produções que discutem exatamente essa questão racial dentro da sociedade americana, como as séries The Get Down e Luke Cage. Mais do que isso, o posicionamento histórico do jogo nos mostra como pouca coisa mudou ao longo dos últimos 40 anos.
A 2K e a Hangar 13 fizeram um ótimo trabalho para tornar o debate sobre o racismo uma peça importante dentro do jogo. Ele não é apenas um ponto perdido dentro de sua narrativa, mas parte fundamental dentro da construção social de seu mundo. Ainda que estejamos falando da cidade fictícia de New Bordeaux em 1968, tudo ali ecoa em situações reais vivenciadas até hoje em dia.
É fácil traçar um paralelo entre o protagonista Lincoln Clay e o clássico John Rambo. Como veteranos da Guerra do Vietnã, ambos retornam às suas cidades com pompa de heróis, mas logo são relegados a párias e precisam encontrar seu novo lugar no mundo. E é aqui que a questão racial realmente faz diferença.
Mafia 3 aproveita sua ambientação para levantar o debate sobre racismo e acerta com um timing perfeito.
Enquanto o personagem de Sylvester Stallone se torna vítima de um estresse pós-traumático e destrói tudo por conta disso, o herói de Mafia 3 é engolido por sua própria realidade. Clay é fruto do mais puro determinismo, o qual o transforma em mais um produto de seu meio e que praticamente joga os negros para o mundo do crime. Assim, por mais incômodo que seja ver mais um protagonista negro agindo como bandido, é importante ter em mente que, pelo menos aqui, é como se a sociedade esperasse isso dele.
Ainda que essa questão já tenha sido abordada por outros jogos, como o próprio GTA, o novo Mafia escancara sua crítica. É um dedo na ferida, tanto que a produtora trouxe um aviso logo em seu início para justificar o uso de algumas palavras e situações como representação de um momento histórico e dizer que não seria justo com quem vivenciou tudo isso passar um pano nesses eventos. Ainda assim, é impossível não se incomodar com lojas que não aceitam a presença de Lincoln ou que cospem e protegem seus pertences quando ele passa por perto.
Falta à indústria a coragem de trazer um protagonista negro e de discutir questões pertinentes como o racismo. E Mafia 3 traz esse debate à mesa.
Isso tudo mostra um dos grandes acertos do jogo. Mafia 3 é um primor em termos de ambientação. Seja em questões mais óbvias, como a recriação de uma cidade sulista da década de 1960, a elementos mais sutis ao estilo do comportamento dessa população, o trabalho da 2K e da Hangar 13 para construir esse cenário é incrível. Há um preciosismo enorme com as músicas do período, as revistas de época e todo o modo de vida daquela sociedade, que fazem com que você realmente se sinta em 1968.
E tudo isso está ali para dar força à narrativa, a grande estrela do game. Mafia 3 se apoia fortemente na sua história, no seu desenvolvimento e no modo como ela é contada. Tanto que, por muitas vezes, o jogo deixa a desejar em alguns aspectos para que seja possível evoluir essa trama. Ainda que as missões sejam extremamente repetitivas e limitadas, todas elas ajudam a entender um pouco mais daquele contexto, aprofundando cada um dos personagens apresentados. Há um arco narrativo muito bem estabelecido para cada um de seus aliados e o jogo sabe explorar esse ponto.
Essa união entre narrativa e ambientação faz com que explorar o submundo do crime em New Bordeuax seja mesmo interessante. O jogador passa a se importar com a saga de vingança de Lincoln e com todos aqueles que estão ao seu lado — o que torna muito complicado tomar algumas decisões, principalmente quando é preciso se voltar contra algum de seus velhos amigos —, além de se interessar de ir a fundo atrás de todos os capos da máfia. Nada está ali por acaso ou apenas para fazer volume.
Por outro lado, não há como ignorar os deslizes de Mafia 3. Ainda que brilhe na parte narrativa e na relevância social, o game tropeça em um ponto fundamental: ser um jogo. Ele se preocupa tanto com alguns aspectos que acaba não dando a devida atenção a outros que são igualmente importantes.
O principal deles é a falta de variedade das missões. Com exceção de alguns poucos casos, todos os desafios são idênticos e se resumem a invadir um ponto para destruir alguns objetos ou matar alguém. Tudo bem que o sistema de stealth funciona bem, mas você logo percebe que está repetindo as mesmas ações inúmeras vezes. A ideia de atacar os bolsos da máfia para forçar seus chefões a aparecerem é muito boa, mas tanto o modus operandi quanto as situações apresentadas não diversificam, criando a sensação de que o jogador está preso no mesmo desafio. É um looping que não demora a ser tedioso.
Apesar de sua ótima narrativa, Mafia 3 esquece de aprofundar sua parte de jogo e entrega um mundo sem vida e pouco variado.
Isso é agravado pelas limitações da inteligência artificial, que oferecem pouco desafio por conta de problemas bobos. Além de ser obrigado a repetir as mesmas tarefas inúmeras vezes, o jogador precisa lidar com uma IA de reações pouco naturais. Seja um inimigo que tenta acordar um aliado que acabou de levar um tiro na nuca ou mesmo daquele que não vai perceber sua aproximação mesmo quando você acabou de realizar uma eliminação na sua frente, a impressão é de que Mafia 3 simplifica demais as coisas e quebra toda a mágica que a narrativa e a ambientação construíram.
E o próprio cenário tem seus problemas. Se a estrutura física e social de New Bordeaux encanta, a falta de vida nas ruas é algo que surge como uma mancha em todo o trabalho da 2K. É impossível não compararmos o trabalho do estúdio com outros jogos de mundo aberto, como o próprio GTA, e vermos que falta uma organicidade nesse cenário. Nesse ponto, Mafia 3 se aproxima muito do que vimos anos atrás em L.A. Noire, que fez um trabalho semelhante de recriação histórica, mas pecou na hora de dar vida a isso tudo, criando a mesma sensação de estarmos dentro de uma maquete.
Adicione a isso outros pequenos deslizes, como a péssima interface, a falta de uma possibilidade de viajar rapidamente pelo mapa, além de problemas realmente técnicos, como os constantes travamentos. Isso tudo vem para minar a excelente narrativa que é construída e para tirar o jogador de dentro desse mundo.
Jogos como Máfia 3 têm a difícil tarefa de equilibrar narrativa e interatividade de modo que essas duas características se complementem a ponto de criar um mundo vivo e interessante, mas sem perder o foco na história que está sendo contada. E, neste caso, é fácil perceber o quanto essa balança pende para o ponto da narrativa.
Por um lado, isso resulta em uma bela trama que é apresentada a partir de um grande trabalho de ambientação e de storytelling. Para quem se interessa por grandes roteiros de máfia ou de vingança, trata-se de um prato cheio, principalmente se levarmos em conta o aspecto social que é levantado por aqui. Porém, o cuidado com esses elementos é tão grande que a parte jogo acaba sendo negligenciada. Não que isso faça dele algo ruim ou mesmo chato, mas gera um produto sem vida.
No fim, Mafia 3 é como uma estrela que brilha muito, mas por pouco tempo. Ele encanta nos primeiros momentos, enquanto a trama ainda é capaz de surpreender e de criar seus clímaces. No entanto, nos momentos em que essa narrativa precisa diminuir seu ritmo e passamos a absorver mais do que o jogo em si oferece, percebemos como ele acaba sendo superficial em pontos importantes.
Não é nada que tire a relevância do game. De tudo o que foi lançado nesta geração — e talvez até mesmo nas últimas —, a importância social apresentada aqui é ímpar e merece todo o destaque possível. Não é o suficiente para torná-lo o game excelente que todos esperavam, mas com certeza memorável.
O jogo foi testado no PlayStation 4, em cópia cedida pela 2K Games.