As antologias são uma das bases do terror moderno. As pequenas histórias assustadoras encantam gerações, expõem mazelas da sociedade e os lados mais sombrios da mente humana, transportados para papel e tinta. Contos de horror fazem parte da história do cinema e, nos games, temos diversos exemplares do gênero entre os títulos mais importantes de todos os tempos.
Mas o que aconteceria se alguém juntasse toda essa tradição em um único produto? Uma resposta possível a Dark Pictures Anthology e sua sequência de jogos focados em diferentes clichês do terror. E o primeiro deles é Man of Medan, que embarca jogadores e um grupo de adolescentes meio folgados e seguros demais de si mesmos em um navio fantasma.
O tema, entretanto, é bem mais profundo do que apenas sustos em uma embarcação. O novo game da Supermassive, os mesmos responsáveis por Until Dawn, retoma a fórmula que fez tanto sucesso no PlayStation 4 e, agora, a aplica em um título multiplataforma, que aprendeu com o sucesso quase inesperado de um passado não tão distante para entregar não apenas mais uma fábula de terror, mas também um jogo que, novamente, vai manter os jogadores na borda do sofá do início ao fim.
A trama nos leva ao Pacífico, um lugar de mistérios, no passado, e até hoje, de uma cultura bem diferente da nossa. Nestas águas nem sempre calmas, seja pelas tempestades ou pela ação de piratas que aproveitam a ausência de leis para criarem as próprias regras, o grupo acaba se deparando com o navio fantasma que serve de cenário a toda a história e se envolvem com os mistérios do Ouro da Manchúria.
A perspectiva alterna e o jogador não está no controle de apenas um protagonista, mas de todos, e muitas vezes, ao mesmo tempo. Isso porque as ações de um podem influenciar na sequência da história do outro, e até mesmo pequenos atos, como uma escolha de objeto para levar em um mergulho ou a leitura de um documento podendo influenciar de maneiras sutis, mas importantes, na vida e morte dessa galera.
A grande força de Man of Medan está no roteiro, suas viradas e grandes acontecimentos, capazes de até mesmo de fazer o jogador encarar os graves problemas de performance para tentar salvar esses jovens da morte.
Essa miríade de caminhos e possibilidades de roteiros se traduz em comandos simples e uma grande herança dos velhos tempos de Survival Horror. Criado com uma mentalidade de filme, Man of Medan abusa da cinematografia e utiliza a velha perspectiva fixa nos momentos de exploração, fazendo com que o jogador sempre acredite estar sendo observado enquanto tem uma visibilidade limitada dos cenários, ao velho estilo Resident Evil. E o mais legal é que, às vezes, há realmente alguém vendo.
Isso, porém, também leva a personagens com movimentos um bocado travados, com a tradição maldita dos controles tanque, e também a barreiras invisíveis onde claramente nossos protagonistas conseguiriam passar. São poucos os problemas desse tipo, mas eles aparecem e chegam a incomodar, principalmente quando o jogador percebe que, em algumas salas, o tempo de exploração é limitado antes da próxima cutscene, e ficar travado no nada pode levar à perda de segundos (e informações) preciosos.
Se os momentos em que as barreiras invisíveis e o peso da jogabilidade são poucos, o caso é inverso com os problemas de performance. As quedas na taxa de quadros por segundo são constantes nas versões padrão tanto do PS4 quanto do Xbox One, com o carregamento da próxima cena claramente interferindo no andamento da atual, transformando momentos de tela mais cheia de elementos em apresentações de slides.
O lado ruim é que estamos falando de um game de decisões de momento, pressionamentos rápidos de botões e luta contra o tempo. E em uma das cenas cruciais do game, vimos um dos personagens morrer não porque vacilamos na QTE, mas pela queda nas taxas de quadros que levaram um prompt de pressionamento repetido a aparecer tarde demais, sem que houvesse tempo suficiente para preencher a barra. Em um título implacável, temos aqui um grande problema.
Os mesmos sentimentos de Until Dawn aparecem aqui, apesar de os personagens de Man of Medan serem mais detestáveis. Entre clichês como o mauricinho besta interpretado por Shawn Ashmore, a mulher misteriosa e cheia de segredos de Ayisha Issa ou a dupla de irmãos formada por Chris Sandiford e Kareem Tristan Alleyne, um nerdão e o outro esportista, estão piratas malvadões quase genéricos e um segredo antigo que acaba interessando bem mais do que a vida dos protagonistas.
Você pode não se importar tanto com eles, até detestar um deles ou se identificar com outro, mas há de convir que os personagens não são os melhores. Até mesmo o Curador, interpretado por Pip Torrens e que nos acompanhará ao longo de toda a Dark Pictures Anthology não entrega a melhor das atuações, enquanto as já citadas quedas nas taxas de quadros por segundo ainda pode gerar falta de sincronia labial.
Chama a atenção, ainda, uma espécie de uncanny valley criado pelas expressões sempre realistas mas nem sempre verossímeis de alguns protagonistas. A Supermassive Games, claramente, trabalhou mais nos personagens centrais do que nos secundários, e essa diferença gráfica aparece de forma quase bizarra, principalmente nos momentos iniciais do game, que servem de prelúdio à história em si.
A forma ainda não está das melhores, e a falta de primor técnico chama a atenção em Man of Medan, mas o que realmente marcou os jogadores em Until Dawn também está presente aqui.
Por outro lado, quem é das antigas vai gritar de alegria com a composição dos cenários, que já falamos anteriormente, não apenas em termos de jogo de câmera, mas também visualmente. A sensação de opressão é intensa enquanto a desenvolvedora trabalha bem os sons e imagens. Acima de tudo, quase como mágica, e mesmo entre dificuldades técnicas, momentos pastelões ou diálogos sem noção, o jogador ainda se verá com o senso de responsabilidade a todo vapor e lutando para que tudo termine não necessariamente bem, mas da melhor maneira possível.
Todas as decisões de Man of Medan são definitivas e não podem ser retiradas. A morte de um protagonista não significa game over e mesmo quando todas as vidas são ceifadas, esse é um dos inúmeros finais. Talvez o jogador perceba tarde demais, mas cada decisão carrega responsabilidade e, no microcosmo do navio fantasma do game, define a vida ou a morte dos personagens.
Isso vale também para viradas de roteiro que, quase brilhantemente, servem para aumentar a sensação de responsabilidade e, porque não, culpa. Sem entrar em spoilers, mas existe um momento do game especificamente criado para destruir o usuário, quando a resposta a um enigma é dada logo após de uma decisão sobre ele ser tomada. E ali, provavelmente, você escolheu pelo pior, por puro e simples desconhecimento.
Cada morte vai ser uma pancada e, acredite, algumas delas acontecem de maneiras bastante cruéis ou repentinas. Por isso, nada de se encantar pela aparência de filme de Man of Medan e largar o controle, já que um QTE pode aparecer a qualquer momento, e você não vai querer ver um de seus personagens com um buraco na cabeça porque decidiu dar uma mordida no hambúrguer bem em um momento crucial.
Isso se torna ainda mais presente, e visceral, no modo multiplayer, em que dois jogadores, online ou dividindo os controles presencialmente, decidem os rumos da história de forma cooperativa. Não saber exatamente o que o parceiro está pensando e sempre contar com um alinhamento diferente do próprio adiciona ainda mais à fórmula do suspense, tornando ainda mais difícil fazer com que todos os jovens cheguem vivos ao final. A novidade é um dos destaques do game e pode não ser o melhor caminho para quem privilegia a história, mas muda as engrenagens do título o bastante para proporcionar uma experiência diferente do usual.
É nesse roteiro cheio de camadas, possibilidades e, principalmente, viradas, que está a força principal de Man of Medan, suplantando até mesmo seus problemas técnicos. Estamos dispostos a encarar as quedas nas taxas de frames e as barreiras invisíveis em prol da próxima cena, que pode selar o destino dos personagens centrais. É aquele sentimento de novela, no qual odiamos os antagonistas e torcemos pelos mocinhos, mesmo não estando conectados a eles.
E isso acontece, pura e simplesmente, pelo diamante da Supermassive Games, que foi encontrado em Until Dawn e lapidado em Man of Medan. A forma ainda não está das melhores, e a falta de primor técnico chama a atenção neste novo game, em relação ao anterior, mas o que realmente marcou os jogadores do terror lançado em 2015 também está presente aqui.
Ao terminar o novo game, surgem duas vontades: a primeira é de jogar de novo com o benefício do conhecimento, sabendo quais decisões causaram a morte dos protagonistas e agindo de forma diferente (acredite, o game também sabe disso, e pode te pegar no pulo). A segunda é ver o que vem por aí na Dark Pictures Anthology e qual o próximo clichê do horror a ser abordado. Nós mal podemos esperar para lutar bravamente e ver nossos protagonistas morrendo miseravelmente.
O jogo foi testado no PS4, em cópia cedida pela Bandai Namco.