É hora de relembrar: lá pelos idos de 1999, entre uma partida e outra em Baldur’s Gate, desbravando o mundo do game de Forgotten Realms, até então meu cenário principal para campanhas de RPG, folheava a recém-lançada (e antológica) edição 50 da Dragão Brasil, a maior, melhor e única (existem controvérsias, mas pra mim é única) revista mensal de RPG brasileira.
A edição comemorativa acompanhava um livreto com cerca de 80 páginas, de brinde, apresentando seu próprio mundo, coletando algumas matérias publicadas nas edições anteriores da revista e acrescentando novos elementos, vilões, cidades e problemas. Assim nascia Tormenta, o mais bem-sucedido cenário de campanha brasileiro.
Hoje, 16 anos depois, o cenário mudou bastante e se tornou o centro de inúmeros outros lançamentos, com HQs, romances e sistemas de regras próprios. Indo além, deu mais um passo extremamente significativo, arrecadando mais de 800 apoiadores e ultrapassando a marca de R$ 74 mil para criação de seu primeiro jogo eletrônico. Esse é Tormenta: Desafio dos Deuses.
A ideia de pegar o gênero do RPG clássico e jogá-lo nos moldes do bate-e-avança já foi executada com maestria nos excelentes Dungeons and Dragons: Tower of Doom e Shadow of Mystara, da Capcom. Assim, a escolha desta direção para o primeiro jogo em Arton, mundo de Tormenta, proporciona um ar de nostalgia duplicado para os antigos jogadores e foi bem aceito pela comunidade. Mas esse foi o início de uma sequência de problemas.
A renderização em cel shading, a primeira ideia visual, foi abandonada para dar espaço à modelagem 3D pura e simples, algo que definitivamente não atendeu o título da melhor maneira. Em sua forma inicial, ainda que com um aspecto um pouco diferente do que Tormenta sempre foi apresentado, com seu estilo mangá, o título ainda era cartunesco o suficiente para remeter ao cenário original.
Toda a qualidade que Desafio dos Deuses possui está mais ligada ao emocional do jogador antigo de Tormenta do que pelo aspecto técnico do jogo.
Na versão Beta, por exemplo, tínhamos os Uktril, seres insetóides bestiais/infernais/mochila-de-criança vindos diretamente da Tempestade Vermelha da Tormenta. Mesmo sendo apenas adversários buchas de canhão feitos para batermos e seguirmos em frente, eles estavam bastante fiéis aos apresentados anteriormente nos módulos básicos de criaturas do cenário.
Já na versão lançada, encontramos Thwor Ironfist, um dos principais vilões das antigas, famoso até onde a vista alcança e um dos chefes de fase, como um monstrengo genérico qualquer, com a diferença que é mais forte, possui ataques especiais e uma barra de vida com seu nome escrito. Desafio dos Deuses traz personagens que já cansamos de ver em livros e sua modelagem está, sendo gentil, bastante mal-feita. Uma pena.
Toda a história de Samson Wulfred, o humano porradeiro, e Sellena, a elfa arqueira arcana, com as já características armaduras em forma de biquíni, é narrada pelo único gnomo de Arton, Lorde Niebling. A trama nos conta os percalços de ambos na luta contra a Tormenta e é construída por meio de de imagens que vão exibindo, ponto por ponto, o que ocorre com a dupla.
Infelizmente, a arte de Desafio dos Deuses, em comparação com a sempre apresentada pelos livros, está bem abaixo do conhecido. Se a modelagem dos personagens foi um problema, apenas as imagens de seus personagens com suas características clássicas poderiam resgatar a satisfação de jogar algo ambientado em Tormenta. Infelizmente, as referencias aos artistas que deram vida ao cenário, do antigo e estupendo André Vazzios ao incrível novo rosto, mais sério, porém ainda com o jeitão mangá de ser, dado por Erica Horita, também foram abandonadas.
Fica claro que Tormenta: Desafio dos Deuses é um jogo para os fãs do RPG de mesa, que vão jogar e se sentir em casa explorando ambientes que já viram em suas partidas regadas a Coca-Cola, Doritos e dados multifacetados.
Incompatibilidade de agendas ou qualquer outro tipo de barreira não serve de argumentação para o desenho “bizarro”. A crítica é destinada principalmente às ilustrações que acompanham o texto – algumas são tão estranhas que parecem feitas na sacanagem. Tormenta sempre fez sucesso com suas raízes no mangá. Mudar isso, seja por uma maior abordagem ou falta de artistas qualificados, é ignorar a imensa fanbase, justamente aquela que apostou, alguns bem alto, quando o jogo era só uma página num site de crowdfunding.
Roteirizada por Leonel Caldela, autor da trilogia do romance no cenário e de vários outros livros ligados à fantasia medieval, a história é interessante e dá sequencia à cronologia existente em Arton. Porém, no jogo inteiro, existem algumas aparições de personagens que não acrescentam em nada na história, presentes apenas para o fã dar um sorriso amarelado. A participação da famosa arquimaga Niele foi completamente destoante do ambiente onde estava. Por outro lado, a improvável aparição de Sir Orion Drake foi a que mais estava inserida em um contexto, levando em conta a sua história dentro de Arton.
Os protagonistas, mesmo rasos, mostram algum carisma no decorrer da história e de sua missão divina, e, no fim, deixam certo apego e merecem um aprofundamento em suplementos futuros para o cenário. Porém, toda a qualidade que Desafio dos Deuses possui está mais ligada ao emocional do jogador antigo de Tormenta do que pelos aspectos técnicos do jogo.
Consta o aviso de que o jogo “Aceita Joysticks”, porém, um alerta mais sincero seria o de “favor jogar com Joysticks”.
Enfim, chegamos no pior aspecto que o jogo nos apresentou. Em se tratando de um beat ‘em up, onde de uma hora pra outra é necessário lidar com adversários por todos os lados, Tormenta: Desafio dos Deuses fica bastante frustrante devido aos controles extremamente travados.
O título é desafiador, mas não pela dificuldade em si, mas pela maneira com a qual somos obrigados a jogar para nos mantermos vivos. O resultado é maçante e repetitivo, mesmo para o gênero, já naturalmente dotado desse tipo de aspecto.
Existem diversos meios para fugir do “corre e bate” A la Mustapha, de Cadillacs and Dinosaurs, encontramos no jogo ataques especiais que consomem mana, modo defensivo eficaz, e ataques padrões que se encaixariam perfeitamente se tudo funcionasse redondinho e sem a sensação de carregar uma montanha amarrada nos pés ao tentar apenas se locomover entre os demônios e hobgoblins.
Consta o aviso de que o jogo “Aceita Joysticks”, porém, um alerta mais sincero seria o de “favor jogar com Joysticks”. Eles são muito necessários, mas não funcionam com qualquer modelo e a configuração não é nada amigável. Uma vez perdida a paciência para deixá-los do seu jeito, o teclado será sua última e infeliz escolha. “Olá, tendinite, my old friend.”
Dentre os pontos citados, fica claro que Tormenta: Desafio dos Deuses é um jogo para os fãs do RPG de mesa, que vão jogar e se sentir em casa explorando ambientes que já viram em suas partidas regadas a Coca-Cola, Doritos e dados multifacetados. Os novatos que nunca ouviram falar na aventura, ou mesmo em RPG, mas querem jogar um beat ‘em up descompromissado, certamente vão torcer o nariz com uma frequência maior que gostariam.
Sem medo de errar, creio que o período de dois anos para produzir o jogo foi pouco. Como referência nacional em se tratando de cenários de campanha, o jogo deveria ter sido melhor esmerilhado, e, por que não, ter sido mais ambicioso. Faz falta um RPG eletrônico clássico e sobram opções de coisas com “elementos de RPG”. Games demais já têm levado essa alcunha, independente da temática. Meu sorriso seria mais sincero se esses elementos ficassem naqueles jogos de lá. Em Tormenta: Desafio dos Deuses eu só queria ter visto, e jogado, o RPG que há 16 anos tenho o prazer de levar adiante, mas vi um emaranhado de coisas muito ruins presas em fórmulas que “dão certo”.
Este jogo foi analisado no Mac em cópia cedida pelo Splitplay.