“Se houver confronto, que seja comigo, para que meus filhos conheçam a paz”. A fala de Thomas Paine, filósofo e um dos pais fundadores dos Estados Unidos, é dita com orgulho por um militante diante da câmera. Com um rifle de assalto preso ao corpo pela bandoleira, o soldado tem sua declaração recebida com alguns “améns” de seus companheiros de combate, logo nos primeiros segundos do documentário “The Oregon Standoff”, do Vice News.
Seria uma imagem comum em zonas de guerra. Mas aqui, a cena acontece no sexto dia de ocupação da reserva florestal Malheur, no Condado de Harney, nos EUA. Ainda era o início de uma convulsão política que duraria mais de um mês, levaria a uma morte, diversas prisões e, principalmente, a discussões sobre como o governo pode intervir na vida dos cidadãos e até que ponto estes podem se desvencilhar das amarras federais.
É, também, mais um caso em que a arte imita a vida. Far Cry 5, que chega às lojas em fevereiro, tem um enredo bastante semelhante, mostrando um grupo de fanáticos religiosos que acreditam que o apocalipse está chegando tomam posse do Condado de Hope, em Montana. Na trama, Joseph Seed se auto intitula o pai de todos os cidadãos daquele local isolado, usando da violência e da Bíblia para impor sua maneira de protege-los do fim do mundo.
Ao contrário do que vai acontecer no novo game da Ubisoft, os incidentes no Oregon estão longe de terem motivos religiosos, apesar de esse ser um dos muitos fatores envolvidos. A briga do líder da ocupação, Ammon Bundy, não tem nada a ver com Deus, mas sim com terra e gado, e começa muito antes de os militantes invadirem a reserva.
Poderíamos traçar as origens da ocupação de fevereiro de 2016 ao início do século passado, quando o presidente americano Theodore Roosevelt criou a reserva nacional de Malheur, uma área de 760 km² no leste do Oregon. O local é o habitat de diversos tipos de aves migratórias dos EUA, mas para protege-las, centenas de hectares de terras se tornaram propriedade pública, algo que afetou duramente os criadores de gado da região.
Vamos saltar, entretanto, para 1994, quando dois fazendeiros, Dwight Hammond e seu filho, Steven, são acusados de impedir a construção de uma cerca que dividiria a propriedade deles da reserva, impedindo a passagem do gado pelo local. As autoridades indiciaram os dois por ameaça e desacato a funcionários públicos, enquanto os réus diziam possuir as autorizações para utilização das terras públicas para pastagem.
Steven (à esquerda) e Dwight Hammond (de chapéu). [Imagem: Reprodução]
O caso já se alongava por oito anos quando a corte federal apresentou duas acusações de incêndio criminoso contra os Hammonds. As situações que levaram ao indiciamento ocorreram em 2001, quando Dwight ateou fogo em uma parte de sua propriedade como forma de preparar o solo para o pasto futuro, e 2006, ano em que ele e o filho iniciaram um incêndio como forma de queimar a vegetação e conter o avanço do fogo causado por um raio, que se aproximava da propriedade. Ambas ações permitidas por lei.
Enquanto apoiadores da família e advogados de defesa alegavam perseguição por parte do governo, um fator legal tornou tudo ainda pior. Como a queima se alastrou, em partes, para trechos da reserva, os Hammonds poderiam ser enquadrados em uma lei antiterrorismo, que ampliaria suas penas significativamente. Dwight foi condenado a três meses de prisão e Steven a um ano.
Ambos cumpriram suas penas, mas ao saírem, foram requisitados novamente aos tribunais para audiências de ressentença, que poderiam leva-los novamente à prisão. E é aqui, em 2015, durante protestos de fazendeiros em favor dos Hammonds, que entra Ammon Bundy, líder do que os jornais chamariam de “Oregon Standoff”, uma tomada da reserva florestal de Malheur que duraria 41 dias.
“Enviado de Deus”
Ammon Bundy durante a ocupação [Imagem: Slate]
Também filho de criadores de gado, Bundy era um administrador de frotas na cidade de Phoenix, no Arizona, que conheceu o caso dos Hammonds pelas redes sociais. Depois de participar da militância online, ele se muda para o Condado de Harney com Ryan Payne, para que os dois possam participar mais ativamente da luta.
As reuniões com os advogados da família e os protestos, entretanto, eram uma fachada para o que Bundy estava efetivamente planejando. Enquanto buscava apoio e falava alto em nome dos Hammonds, ele reunia outras milícias locais para invadir a reserva no que considerava seu ato máximo de rebeldia contra as autoridades. Ele estava farto de ver os agentes do governo oprimindo os fazendeiros, gente humilde com quem dividia o sangue, e decidiu agir.
No dia 2 de janeiro de 2016, Bundy e outros associados, como seu irmão Ryan, Payne e Robert LaVoy Finicum, um comerciante do Novo México, lideraram entre seis e 12 milicianos da cidade de Burns até a reserva florestal Malheur. Em carros, percorreram um caminho de 48 quilômetros e montaram posições defensivas no perímetro de um centro comunitário, que também funcionava como escritório de administração da área.
O local estava vazio, depois de o governo ter ordenado que os funcionários não fossem ao trabalho após receberem ameaças de partidários dos Hammonds. Bundy diz que “simplesmente entrou” no local, que se transformou na base de operações do Cidadãos para a Liberdade Constitucional (C4CF, na sigla original), grupo que se dizia independente do governo federal.
Robert LaVoy Finicum (no centro), ao lado de Ammon Bundy e outras lideranças da ocupação [Imagem: Reprodução]
De lá, eles enviaram suas exigências para o fim da ocupação: a soltura imediata de Dwight e Steven Hammond, que se apresentaram para cumprir penas adicionais dois dias depois da invasão, e a devolução de uma série de terras transformadas em reservas florestais a seus donos originais. Além disso, pelas redes sociais e YouTube, enviavam convites a outros militantes da causa – unam-se à milícia e, se possível, tragam suas armas de fogo.
A causa, entretanto, não era apoiada pelos Hammonds. Em documentos registrados como parte do processo, no final de 2015, os advogados dos réus afirmaram que Bundy não era autorizado a falar em nome deles, assim como ninguém além de membros da família e da defesa. Quando perguntado sobre porque continuou agindo mesmo com essa recusa, o líder da milícia disse ter recebido um “chamado divino” para lutar pelos direitos dos fazendeiros.
Nada de ação, muita política
Ao contrário do que a comparação com Far Cry 5 pode indicar, não houve confronto em Malheur. Os militantes, todavia, permaneceram durante todos os dias em uma verdadeira operação de vigilância no caso de qualquer tentativa de ataque ou invasão.
Ao fundo, a torre de vigília transformada em ponto de observação pelos manifestantes [Imagem: Reprodução]
Posições avançadas foram criadas no topo de torres de energia, enquanto, na medida em que mais e mais entusiastas da causa iam chegando de todos os pontos dos Estados Unidos e até do Canadá, o perímetro da reserva ia sendo isolado. De acordo com os cálculos de Bundy, em seu ponto mais populoso, a ocupação chegou a contar com 150 pessoas, entre militantes e familiares. As autoridades discordam e dizem que esse número não ultrapassou a marca de 40 manifestantes.
Apesar de muitos cidadãos não se aproximarem do local, por medo, a imprensa podia circular livremente pela reserva, mas o acesso aos líderes da revolta era restrito, enquanto os outros eram orientados a não conceder entrevistas. As autoridades, entretanto, estavam banidas do local e só poderiam negociar com os milicianos por meio de celular, telefone ou em reuniões presenciais agendadas com antecedência.
Em uma delas, realizada apenas seis dias depois do início da ocupação, Bundy se encontrou com o xerife do Condado de Harney, Dave Ward. Com ares de filme, a reunião aconteceu em um local isolado a cerca de 15 minutos de carro da reserva florestal. O policial atendia a um pedido de representantes das cidades vizinhas à reserva, que solicitavam às autoridades a remoção imediata dos manifestantes por medo de que a região se transformasse em uma zona de guerra.
O xerife David Ward em negociação com Bundy [Imagem: Reprodução]
No encontro, filmado por câmeras da imprensa local, o líder dos milicianos aproveitou para passar sua mensagem – eles não sairiam até que as exigências fossem atendidas. E, mais do que isso, Bundy garantiu que eles não eram ameaça alguma para a população local, a não ser, é claro, que alguém tomasse algum tipo de atitude no lado antagonista.
Durante todo o tempo, os manifestantes permaneciam equipados com armas, teoricamente, próprias e legalizadas. Nos Estados Unidos, é comum que cidadãos tenham pistolas, escopetas ou rifles de caça ou assalto em casa. Em Malheur, essa era uma visão comum. Todos afirmavam que a ocupação era pacífica, mas os dedos pareciam permanecer sempre próximos dos gatilhos. Para Bundy, era uma forma de garantir que os protestos acontecessem, caso contrário, o governo simplesmente os tiraria dali.
Ao lado das armas, muitos dos manifestantes carregavam também cópias da Constituição americana. Eles se diziam protegidos pela Segunda Emenda, que basicamente, garante o direito à formação de grupos civis, inclusive armados, para proteger o povo. Uma interpretação também era usada pela C4CF para legitimar sua presença, a de que, na ausência de governo ou perante atitudes abusivas dele, o povo pode pegar em armas para defender seus interesses.
A bandeira de Gadsden tremulando durante o Oregon Standoff [Imagem: LA Times]
Na reserva florestal, também tremulava a bandeira de Gadsden. Com a imagem de uma cascavel em posição de ataque em seu próprio corpo e os dizeres “Não pise em mim”, em inglês, ela nasceu como o símbolo das liberdades individuais nos Estados Unidos. Nos últimos anos, se tornou simbólica tanto para anarcocapitalistas quanto para libertários, que a ressignificaram como parte de seu ideal de isolamento do governo quanto às decisões dos cidadãos.
“Podem ser semanas ou meses, mas não chegará a um ano”
As negociações não avançavam. O governo mantinha a pena dos Hammonds e se recusava a sequer conversar sobre uma reorganização das terras de reservas florestais. Enquanto isso, na imprensa, representantes do governo do Oregon e também da administração federal faziam acusações veladas, chegando até mesmo a categorizar a C4CF como um grupo terrorista doméstico, apesar de nenhuma acusação formal nesse sentido ter sido feita.
Ammon Bundy fala à imprensa e aos manifestantes [Imagem: Reprodução]
E na medida em que os dias iam passando, os militantes iam se tornando ansiosos. Relatos de depredação de prédios da reserva florestal começaram a surgir na imprensa, com os manifestantes não confirmando nem negando os fatos. A população das cidades vizinhas vivia em um constante estado de temor enquanto viam milicianos caminhando livremente, armados, para comprar suprimentos ou itens de entretenimento para a ocupação.
Aos poucos, entretanto, a impressão era de que os revoltosos estavam se acomodando com a situação, na mesma medida em que o FBI, responsável pelas negociações, ia perdendo a paciência. No dia 26 de janeiro, eles decidiram agir de forma direta para acabar com a ocupação, ainda assim, na esperança de que nenhum disparo fosse realizado.
Na data, os líderes da revolta dariam uma palestra sobre ela na cidade vizinha de John Day, a 160 quilômetros da reserva. Era a primeira vez que Bundy e todos os cabeças da operação deixavam o local ao mesmo tempo, e juntos. Uma oportunidade perfeita para que o FBI realizasse uma operação de captura, o que plenamente aconteceu.
A caminho da apresentação, o carro em que Ammon Bundy, Ryan Payne e outros membros de influência na C4CF é interceptado, e todos se rendem sem apresentar resistência. Em outro veículo, LaVoy Finicum tenta escapar das autoridades em alta velocidade, mas encontra um bloqueio após alguns quilômetros de fuga, batendo contra um banco de neve na lateral da estrada.
Após gritar para os policiais que não se renderia, ele desce do carro com as mãos para cima. Quando vê um policial se aproximando com uma arma de choque em punho, faz movimentos em direção a um dos bolsos de seu paletó e recebe três tiros, caindo morto ao chão. No casaco, os oficiais encontraram uma pistola semiautomática, que havia sido um presente do enteado dele.
Com a prisão dos líderes, o FBI voltou seus olhares para os manifestantes, ordenando que eles deixassem o local. O ato também intensificou os ânimos dos protestantes, mas sem liderança, eles estavam perdidos. Aos poucos, a reserva foi sendo abandonada.
As famílias seguiam em liberdade e não eram indiciadas, enquanto aqueles envolvidos diretamente com as operações de vigilância ou estratégia eram presos no mesmo perímetro que, dias antes, ajudaram a defender. No dia 29 de janeiro, apenas quatro militantes permaneciam no local, dispostos a ficar por lá até que seus recursos acabassem – algo que os oficiais queriam garantir que acontecesse rapidamente, ao cortarem as entregas de suprimentos e linhas de comunicação.
No dia 11 de fevereiro, o “Oregon Standoff” chegou ao fim. Há quem diga até que essa nomenclatura, uma alusão aos duelos do Velho Oeste conhecidos como “Mexican Standoff”, nem mesmo se aplicaria ao caso. Durante as mais de seis semanas de ocupação, não houve combate e nenhum tiro foi dado no interior da reserva florestal Malheur.
Epílogo de uma revolução
Militante armado durante o Oregon Standoff [Imagem: Reprodução]
Ao todo, 26 militantes foram presos em associação à invasão no interior do Oregon. Todos foram indiciados por conspiração, além de receberem, caso a caso, acusações individuais de destruição de patrimônio público, vandalismo, ameaça a funcionários do estado e terrorismo. Apenas uma morte, a de Robert LaVoy Finicum, foi associada ao caso.
Em uma virada impressionante nos tribunais, Ammon Bundy foi inocentado pelas acusações de conspiração, porte de armas em prédios federais e ameaça a funcionários públicos – basicamente, todo seu envolvimento na ocupação. Ele, entretanto, permanece preso enquanto aguarda julgamento por um indiciamento semelhante, referente a um caso de 2014.
No processo, pasmem, ele impediu, sob ameaça de disparos, a entrada de agentes federais na fazenda de sua família, para intimação devido à falta de pagamento de taxas relacionadas ao uso de terras públicas para pastagem. Parece que a vida é realmente cíclica.
Durante as investigações, a reserva Malheur permaneceu fechada, tendo seu perímetro reaberto em setembro do ano passado. Os prédios usados como moradia pelos manifestantes só voltaram a funcionar em maio deste ano. O governo calcula gastos de US$ 9 milhões em decorrência da ocupação, sendo US$ 2,5 mi apenas nos esforços policiais para conter a situação e mais US$ 1,7 mi para recuperar os estragos causados pelos militantes.
Em entrevista durante a BGS do ano passado, o diretor de design de Watch Dogs 2, Danny Belanger, afirmou ao NGP que o enredo do game não sofreu inspiração da série “Mr. Robot”, mas que as similaridades entre ambos é uma amostra do vanguardismo narrativo da Ubisoft. Agora, mais uma vez, essa situação se repete, com Hay afirmando ter criado o enredo de Far Cry 5 antes, por exemplo, da eleição de Donald Trump e do “Oregon Standoff”.
Ele conta que o roteiro começou a ser escrito no final de 2014, mais de um ano antes de Bundy invadir Malheur. Hay disse ter se baseado em experiências de sua infância, em meio ao clima de tensão da Guerra Fria, para escrever a trama com requintes de crueldade, fanatismo religioso e separatismo. O caso do Oregon, que o diretor acompanhou diariamente pelo noticiário, serviu de validação para a história que ele deseja contar.
Far Cry 5 chega em 27 de fevereiro de 2018, em versões PC, Xbox One e PlayStation 4.
Com informações de Venture Beat, Audience Network e Vice News.