Mais do que entreter, histórias servem para manter uma memória viva. Seja a sua, de seus amigos, de sua família ou mesmo algo ficcional, contar uma história é perpetuar uma lembrança e impedir que ela desapareça no limbo das ideias esquecidas. É torná-la eterna.
E é por isso que Never Alone – ou Kisima Ingitchuna no idioma nativo – é tão especial. Afinal, o que são os jogos se não uma forma diferente de contar essas histórias? Foi exatamente por isso que os Iñupiat escolheram os games para mostrar ao mundo um pouco mais sobre suas memórias, culturas e tradições. Assim, de um povo quase desconhecido que habita o norte Alasca, eles se tornaram os protagonistas de umas das histórias mais interessantes deste ano.
Contudo, Never Alone vai muito além de só nos mostrar as particularidades desse pessoal. Os jogos são uma forma de nos fazer viver uma história e, por isso, ele vai além de simplesmente nos apresentar a cultura daquele grupo e consegue, de maneira simples e singela, fazer com que a gente entenda a a visão de mundo dos Iñupiat. É ver (e sentir) que você nunca está sozinho mesmo.
À primeira vista, Never Alone pode parecer uma história de amizade de uma menina com uma raposa do Ártico. No entanto, não demora para você perceber o quanto a ideia de que você nunca está sozinho vai muito além disso, ganhando vários e profundos significados à medida que você passa a entender a cultura Iñupiat.
E é por isso que a lenda de Kunuuksaayuka é tão importante. A partir da história de uma menina que tenta descobrir o porquê sua vila está sofrendo com terríveis nevascas, o jogo trata de sua relação com o mundo e das diferentes formas de mostrar que você não está sozinho nele.
Não se trata apenas de uma história de amizade, mas das diferentes formas de ver o mundo e encarar que você não está sozinho. Você sempre vai depender de alguém, assim como sempre dependerão de você.
Pode parecer uma mensagem bem piegas e batida, mas a forma como isso é apresentado revela uma profundidade bem interessante e que te prende ao longo da breve jornada de Nuna pelas tundras do Alasca. Principalmente porque não se trata de uma história de superação, mas de troca.
Embora seja a mais óbvia, a noção de que você não está sozinho no mundo vai além daquilo que muitos esperam encontrar da trama. Não se trata apenas da ligação da garotinha com a raposa, mas de tudo que há ao seu redor. A amizade com o animal é apenas o símbolo máximo da ideia que os Iñupiat têm de que, apesar da solidão branca do Alasca, tudo no mundo tem alma – o que eles chamam de Silla – e esses espíritos do bem vão ajudá-lo sempre que possível. É aquela força misteriosa que sempre nos empurra para frente.
E isso ganha um significado ainda maior quando você percebe os nuances que o estúdio colocou em coisas pequenos. O próprio nome da personagem não foi escolhido à toa, já que “Nuna” significa “terra” naquele idioma. Assim, relação entre a menina e a raposa – que é a própria representação da Silla, visto que ela não possui nome, sendo o todo – ganha uma força simbólica muito mais impactante, principalmente ao mostrar que você nunca está sozinho exatamente por tudo estar conectado e interagindo entre si.
Never Alone se aproveita da riqueza da cultura Iñupiat para trazer uma mensagem forte e repleta de simbolismo. São vários nuances que tornam toda a jornada em algo único.
Por outro lado, Never Alone trabalha também com a ideia de que sempre existir alguém que depende de você, reforçando a ideia de comunidade e coletividade existente dentro do povo Iñupiat. E isso é setido de diversas formas. Seja pela vila que precisa de sua ajuda para acabar com as nevascas ou com o inimigo que materializa o individualismo, tudo remete a essa noção de ser um com o todo.
E a jogabilidade traduz isso muito bem. Há uma relação de dependência enorme entre Nuna e a raposa, já que cada uma delas possui habilidades únicas que devem ser usadas em momentos específicos. Assim, não importa se você está jogando sozinho ou com alguém, a cooperação deve vir em primeiro lugar se você quiser sobreviver à geleiras do Alasca. “Ela jamais sobreviveria se estivesse sozinha”, como diz o próprio game.
Só que todos esses nuances só podem ser realmente absorvidos quando você mergulha de verdade na cultura Iñupiat – o que se revela com o maior diferencial de Never Alone.
Não se trata de um jogo como tantos outros que estamos acostumados a ver, mas de um título que flerta muito com o formato documentário. Ao longo de toda a jornada da pequena Nuna, o jogador desbloqueia pequenos vídeos em que os próprios Iñupiat apresentam suas tradições e explicam um pouco mais sobre a forma como eles veem e interagem com o mundo.
O diálogo entre jogo e documentário é incrível e, mais do que o conteúdo cultural, adiciona toda uma carga simbólica que deixa tudo mais rico e envolvente.
No entanto, apesar de ainda parecer um programa do Discovery Channel, esse “jogumentário” funciona muito bem, principalmente ao trazer todas essas informações sem se tornar chato. Na verdade, parar a jogatina por alguns minutos para assistir às pequenas cenas se revela como algo bastante prazeroso, já que isso influencia diretamente a forma como você encara e compreende as coisas.
O segredo de Never Alone é fazer com que jogo e documentário dialoguem perfeitamente de modo que você se sente na obrigação de assistir aos vídeos para entender o que está sendo mostrado ou por que as coisas estão sendo representadas daquela forma. Por mais que você possa simplesmente ignorar todas essas cenas, acompanhar as explicações adiciona camadas e camadas de significado tanto à ambientação, à arte e até mesmo à mensagem.
Isso faz com que jogar Never Alone sem se importar com todo esse contexto é jogar a verdadeira experiência no lixo. Isso porque, se você encará-lo apenas como um game, ele se torna algo bastante simples e sem nada que o diferencie de outras produções menores. Afinal, ele é apenas um título plataforma bastante básico, com poucos desafios e extremamente curto, podendo ser finalizado em apenas duas horas.
Mesmo com toda a simplicidade da jogabilidade, Never Alone vai muito além do que qualquer outro blockbuster já se propôs a ir.
Aí está a importância do formato “jogumentário” adotado. Apesar desses “poréns”, o jogo se destaca por ser muito mais significativo e denso do que qualquer grande blockbuster já pretendeu ser. Mesmo com essa simplicidade, ele é tão recheado em conteúdo e rico em um simbolismo que mostra como os video games podem ser usados para algo muito maior do que dar tirinhos ou explodindo coisas.
Ele é a prova de que o meio pode ser usado como uma forma bastante efetiva de transmitir uma cultura – e de maneira atraente. Se histórias servem para manter memórias vivas, os jogos são uma forma de você fazer parte delas. Forma e conteúdo dialogam perfeitamente para nos mostrar não apenas novas realidades, mas também para nos fazer enxergar o mundo de diferentes perspectivas.
Never Alone pode estar longe de ser o game que vai mudar sua vida, mas ele é um título obrigatório para qualquer um que queira dizer que video game é algo mais do que brinquedo de criança.