Lanço aqui uma teoria: o Keiji Inafune que a gente conhecia, aquele responsável pela série Mega Man, morreu há alguns anos e o que temos hoje é um impostor. Tal qual um Paul McCartney ou uma Avril Lavigne dos games, ele tenta se passar pelo produtor e se apoia na nossa esperança de vermos um produto tão bom quanto aquele que ele nos entregou em vida anos atrás. O problema é que os resultados são sempre de mediano para baixo e a gente segue sendo enganado por esse vil substituto.
Pode parecer um absurdo, mas essa é a única justificativa que explica como diabos alguém que nos trouxe a série Mega Man conseguiu errar tanto em seus projetos recentes. Depois da polêmica de Mighty No. 9, todo mundo acreditava que Inafune iria se redimir em ReCore e que o veríamos novamente em seu auge. E, por incrível que pareça, ele quase consegue alcançar isso, mas por apenas um momento muito breve. No fim, não demora para que o novo game demonstre todos os erros que já viraram uma constante em seus últimos projetos.
Assim como todos os seus games mais recentes, a história da garota presa em um planeta distante na luta contra robôs enlouquecidos é apenas mais um ótimo conceito que se perde diante de uma execução pífia e problemática. É, novamente, o desperdício de uma boa ideia em soluções rasas e preguiçosas.
Sejamos justos: a premissa de ReCore é mais do que interessante. Ainda que ideia de colonizar um planeta para se salvar da destruição da Terra não seja algo tão inédito, o modo como essa história é apresentada funciona. Em Éden Distante, somos apresentados a Joule Adams, uma das exploradoras enviadas ao desértico planeta, que precisa entender o que houve de errado com a missão, já que nenhum dos outros enviados apareceu e todos os robôs aparentemente enlouqueceram.
Na prática, é uma variação da fórmula clássica usada por Inafune em seus jogos. Isso significa que temos uma pequena rebelião das máquinas, algumas conspirações e a heroína conquistando novos poderes à medida que derrota essas ameaças. E, embora Joule seja a protagonista da trama, as grandes estrelas do jogo são seus companheiros robóticos.
Ao longo da história, ela acaba se deparando com três robôs que vão ajudá-la e enfrentar os problemas de Éden Distante. Mack, Seth e Duncan possuem características e habilidades únicas que vão auxiliar em diferentes situações. É mais ou menos como se os poderes do Mega Man fossem separados em personas distintas, cada um com sua própria faceta. É algo interessante, até porque as personalidades desses robôs criam uma dinâmica curiosa.
ReCore até consegue empolgar em um primeiro momento, nos fazendo acreditar que pode ser um Mega Man Moderno. Mas essa impressão se desfaz rapidamente.
As semelhanças com Mega Man são claras e isso é ótimo, a ponto de você realmente acreditar que ReCore pode ser uma atualização do conceito do robozinho azul. Não apenas pelas mecânicas de combate que realmente lembram os jogos clássicos — com direito a tiro carregado e tudo —, mas também pelas características de plataforma que ele carrega.
Ainda que ReCore se baseie em um mundo aberto para ser explorado, o foco aqui são as plataformas, o que se revela o grande ponto alto do game. Seja nas dungeons ou mesmo espalhadas pelo mapa, os momentos de plataforma mostram que, no fundo, Inafune (ou seu substituto) ainda sabe o que faz, oferecendo uma grande variedade de desafios e na dificuldade certa. A experiência da Armature trouxe também muito de Metroid Prime à exploração, o que é ótimo.
O problema é que essa impressão de que ReCore é o Mega Man da nova geração se desfaz muito rapidamente. Isso porque, no fim da das contas, o jogo se resume apenas a isso. O jogo cria um ótimo impacto inicial, mas não consegue sair disso. Ele simplesmente não evolui e isso mata tudo o que foi construído.
Basicamente, o título se resume a coletar núcleos especiais para abrir uma porta que vai levá-lo a uma nova porta, no qual é preciso mais núcleos especiais para ser aberta. E só. Toda a progressão da história se resume a isso e o game fica patinando em torno dos mesmos desafios, andando em círculos e enrolando o jogador para esticar um jogo que não tem mais nada a oferecer. A impressão que dá é que a própria produtora tentou maquiar essa superficialidade narrativa e de mecânicas com a maneira mais rasa e pobre de prolongar uma experiência, que é apelando para a repetição incessante de algo que passa longe de ser divertido.
O jogo simplesmente não evolui. Ele se apega a uma única estrutura e se repete incansavelmente do começo ao fim. Uma estratégia pobre e rasa de esticar o game
O maior exemplo disso é quando Joule enfrenta o vilão Viktor e, após derrotá-lo, precisa subir uma grande torre. O problema é que, ao chegar ao fim de cada andar, é preciso voltar ao mapa em busca desses núcleos especiais para garantir acesso ao próximo nível. E essa estrutura é repetida cinco vezes somente neste trecho.
É algo tão absurdo que, por muito pouco, não abandonei o jogo por saber que ele não tinha mais nada a me oferecer— o que se provou verdadeiro. É algo sem o mínimo propósito e que está ali só para fazer o jogo ganhar mais algumas horas. É irônico ver um jogo cuja toda trama gira em torno de núcleos não passar de uma casca vazia e sem vida.
Reforço a minha teoria de que o Keiji Inafune de hoje não é o mesmo que nos foi apresentado durante os anos 1990 porque é inconcebível que alguém que trabalhou em preciosidades como Mega Man 2 peque tanto em conceitos básicos de design. Ainda que ReCore acerte muito no uso dos robôs, na sua personalização e nas possibilidades que eles ofereçam, tudo isso acaba sendo eclipsado pelos vários problemas básicos que oferece.
Há um sistema de upgrade que é bem interessante. É possível alterar várias características dos robôs e até mudar as funções de cada um. O problema é que essa mudança só pode ser feita em um ponto específico, e há momentos que exigem mais agilidade. Tudo bem que é uma limitação narrativa, mas que podia ser facilmente contornada. Ao invés de obrigar o jogador voltar à base de Joule todas as vezes, era muito simples espalhar novos locais que permitissem a mudança.
O problema de ReCore é que ele é extremamente mal-acabado, sendo cheio de problemas, bugs e falhas que poderiam ser corrigidas com o mínimo de atenção e cuidado.
A própria caçada aos tais núcleos especiais é algo problemático, pois evidencia outras falhas banais. Não seria nenhum problema revirar o mundo em busca desses itens se você tivesse um mini mapa para norteá-lo ou uma maneira de sinalização. O jogador é colocado no meio de um cenário extremamente genérico sem qualquer indicativo de direção, tendo de abrir o mapa a todo instante para saber se está indo para o lado certo.
Isso faz com que você perca muito tempo por nada, muitas vezes andando literalmente em círculos, uma vez que não há justificativa para a ausência desses recursos.
Isso sem falar do fato que ReCore é muito mal-acabado. E não apenas pelas texturas porcas ou mal encaixadas — você realmente consegue ver o vão entre elas —, mas pela enorme quantidade de bugs. Seja com missões que não são atualizadas, ações que não acontecem ou com renascimento em lugares de morte certa, a quantidade de erros banais é imensa. É o tipo de coisa que o mínimo de capricho e atenção resolveria. E esse é um problema que parece vem se tornando uma assinatura nos trabalhos recentes de Keiji Inafune.
E a versão para Xbox One acaba sendo a mais prejudicada. Como o primeiro game a chegar ao Xbox Play Anywhere, ReCore nos permitiu ver a diferença existente entre a edição para console e a que chegou ao Windows 10. No One, os loadings chegam a demorar exatos dois minutos para serem carregados. Assim, se já era chato voltar para a base trocar uma única peça, fazer isso é literalmente uma perda absurda de tempo, do tipo que justifica você querer desistir do jogo.
Diante disso tudo, não há como acreditar que aquele Keiji Inafune dos anos 1990 é o mesmo que vem cometendo atrocidades como Mighty No. 9 e agora ReCore. E, em ambos os casos, o que mais incomoda é ver como ideias genuinamente boas acabam sendo desperdiçadas pela má execução do design — curiosamente aquilo que havia de melhor em Mega Man. Não se trata de um jogo ruim, mas de uma ótima proposta que se estraga pelo próprio descaso.
Como dito, ReCore tinha muito potencial, a ponto de realmente me fazer questionar se ele poderia ser o Mega Man Legends da nova geração. Mas esqueça, ele não chega nem perto disso. No máximo, consegue ser um Mighty No. 9 com um visual um pouco mais trabalhado, mas que peca nos mesmos aspectos: ambos são pobres, rasos e desonestos com seus jogadores.
Assim, eu realmente prefiro acreditar na teoria louca de que este Inafune é um impostor. Porque, se não for, temos um produtor que se tornou uma mera caricatura daquilo que ele já foi no passado — e isso é muito triste.