Lembro como se fosse hoje do dia em que entrei naquela locadora de jogos na cidade de Uberaba, no interior de Minas Gerais, e coloquei os olhos pela primeira vez em Resident Evil. Era um lugar daqueles que alugava consoles e televisores por hora, para a galera que não os tinha em casa ou queria um lugar para jogar com os amigos. Todos estavam empolgados com aquele novo “jogo de zumbis”, que trazia muita coisa que ninguém tinha visto antes.
Gráficos tridimensionais, uma atmosfera escura, músicas orquestradas, personagens que falavam com vozes de verdade. Acima de tudo, uma violência visceral como poucas e, acima de tudo, aquela (hoje tosca) abertura em live action, que fez muita gente, na época, procurar exaustivamente por um filme de Resident Evil. O que você lê aqui não são apenas minhas palavras, mas provavelmente, a de boa parte dos fãs da franquia que começaram pelo primeiro jogo. A história, em seu teor, pode até ter sido diferente, mas a primeira impressão costuma ser a mesma.
20 anos já se passaram desde esse primeiro contato, e a franquia ainda está aí, apesar de não ser exatamente a mesma de antes. Para muita gente, Resident Evil é como a vida, cheia de altos e baixos, com momentos tortuosos e situações de felicidade extrema. E, para muitos como eu, por mais que a relação tenha suas diversas balançadas ao longo dessas duas décadas, não é possível sair dela com facilidade, nem deixar para trás os momentos que nos trouxeram até aqui.
Terror japonês, cachorros, janelas e o Pateta
Obra de um time pequeno no qual a Capcom não botava tanta fé assim, o primeiro Resident Evil teve como idealizador e diretor Shinji Mikami. O designer, responsável pelo recente The Evil Within, é o verdadeiro pai da franquia, criando diversos dos conceitos que a tornaram um clássico e permanecendo no comando dela até 2005, quando divergências com a Capcom devido ao lançamento multiplataforma de Resident Evil 4 fizeram com que ele deixasse a companhia.
Naquela época, Resident Evil era um game de baixo orçamento e um dos primeiros títulos de terror do PlayStation. Com ares de filme B, muito sangue e uma classificação etária alta, ninguém – nem mesmo seu próprio criador – botava fé no fenômeno que estavam criando. Esses mesmos aspectos também permitiram que a Capcom desse carta branca para Mikami, para que ele criasse o projeto autoral que há anos vinha pedindo.
Havia apenas uma condição: as bases do game deveriam ser as de Sweet Home, um game de terror lançado pela Capcom em 1989 para o Nintendinho por Tokuro Fujiwara, o mesmo criador do clássico Ghosts ‘n Goblins. Baseado em um filme japonês de mesmo nome, o título era um RPG que contava a história de um grupo de documentaristas explorando a mansão de um excêntrico pintor, que escondeu todas as suas obras em uma mansão antes de desaparecer. Pelo caminho, encontravam fantasmas, criaturas malignas e descobriam uma trama aterrorizante.
Muitos dos elementos de Sweet Home são peças centrais em Resident Evil. Falando dos óbvios, temos uma mansão isolada e cheia de criaturas e um grupo de personagens que acaba preso nela por elementos fora de seu alcance. Entretanto, Mikami também aproveitou outros conceitos, como a ideia de encontros aleatórios entre os personagens, a ideia de que alguns deles podem morrer sem que a tela exiba uma mensagem de Game Over e os diferentes finais, de acordo com o resultado de suas ações ao longo da aventura.
Na época, Mikami já era um designer conceituado, e com exceção das influências de Sweet Home, podia fazer o que quisesse com Resident Evil. E seu passado era bem mais colorido do que o soturno e sangrento título que eternizou seu nome. A boa reputação na Capcom foi obtida por uma sequência de títulos baseados em personagens da Disney, como as clássicas adaptações de “O Rei Leão” e “Aladdin” para o Super Nintendo.
E, você pode não acreditar, mas foi em Goof Troop, o jogo do Pateta e seu filho Max para o SNES, que ele testou algumas das mecânicas que, mais tarde, estariam no coração de Resident Evil. O título da dupla, em vez de trazer um sistema de fases, permitia que o usuário explorasse livremente um grande cenário, enfrentando inimigos e resolvendo enigmas. O inventário era limitado e o jogador sempre precisava saber escolher exatamente o que levar, ou então, voltar para buscar o item de que precisava. Um item abria uma porta que revelava um novo enigma que servia para abrir uma nova passagem. E assim, Pateta e Max, ou Chris e Jill, seguiam adiante.
Junte a tudo isso uma boa pitada de conhecimento cinematográfico e um uso extremamente criativo das limitações de uma tecnologia 3D ainda incipiente. Aproveitando as limitações do PlayStation, Mikami criou cenários pré-renderizados com ângulos fixos de câmera, que muitas vezes, não permitiam ver o que está adiante. Entrar em um corredor e ouvir o som de uma criatura se aproximando, mas não saber exatamente de onde ela está vindo, até hoje, aterroriza muita gente.
Foi a partir desse uso inteligente dos visuais que surgiram cenas que até hoje são lembradas. Quem jogou na época jamais se esqueceu da primeira vez que um cachorro saltou pela janela, com um barulhão e a trilha sonora nervosa. Ou de todas as situações em que se sentiu preso e enclausurado em uma casa cujos corredores pareciam cada vez mais apertados. Falei mais sobre isso em um artigo aqui no New Game Plus, que vale a pena conferir.
Consagração e mudanças
O sucesso foi estrondoso. De acordo com números da Capcom, Resident Evil vendeu impressionantes 2,7 milhões de cópias apenas no PlayStation, sem contarem as versões que também saíram para PC e SEGA Saturn. Ainda hoje, ele é o 15º título mais vendido da história da distribuidora.
Vale a pena citar que esses são números que, muitas vezes, não são atingidos por muitos blockbusters da atualidade. E isso em uma época em que bem menos gente jogava video game e as ferramentas de marketing eram bem precárias. A internet ainda dava seus primeiros passos e o hit, aqui, aconteceu principalmente no boca a boca e com as boas avaliações das saudosas revistas de games.
Esse frenesi, claro, deu origem a uma série de crias. São incontáveis os títulos de horror que seguiram a fórmula de Resident Evil na época, seguindo o estilo “Survival Horror” que não foi necessariamente criado pela franquia – os créditos vão para Alone in the Dark, de 1992 – mas, sim, eternizado por ela. Alguns, com ótimos resultados, como é o caso de Silent Hill, por exemplo, outros, nem tanto, como Covert Ops: Nuclear Dawn, que tentou aplicar a jogabilidade da franquia da Capcom em um contexto de ação e luta contra o terrorismo.
Da mesma maneira que influenciou muita coisa, entretanto, Resident Evil nunca teve medo de receber reflexos externos. Isso se vê já no segundo game da franquia, que se tornou mais fácil para atender aos pedidos do público, além de dar mais opções para o jogador em termos de armas e alternativas. RE3 investiu ainda mais nisso, enquanto CODE: Veronica, lançado anos depois, ainda usava os velhos cenários pré-renderizados, mas aplicava também uma perspectiva tridimensional que já havia se tornado norma nos games.
A grande mudança, entretanto, veio com Resident Evil 4, de 2005. Citado quase tanto quando o primeiro e o segundo como os favoritos da galera, o título apresenta uma reinvenção quase completa da saga. Saem os ângulos fixos de câmera e o terror vagaroso, entra uma jogabilidade frenética e totalmente focada na ação, com personagens e inimigos muito mais ágeis, além de uma história que avança muitos anos no futuro em relação aos títulos originais.
A alteração agradou muita gente e desagradou tantos outros. O game, entretanto, foi um sucesso incontestável, principalmente depois de seu lançamento para o PlayStation 2, a maior plataforma de games da época. Esse, inclusive, foi o motivo que levou à saída de Mikami – ele não concordava com o port, após um acordo assinado com a Nintendo que previa a exclusividade dos títulos da franquia para o GameCube.
Para muitos fãs, o momento da saída de Mikami marca o exato ponto em que a série degringolou. Sem uma mão-mestra para guiar Resident Evil, o título acabou caindo nas mãos de produtores competentes e com bastante história na Capcom, mas aparentemente, pouco comprometidos com a unidade das coisas.
A partir daí, a franquia passou por praticamente todos os consoles. Tivemos jogos de tiro em primeira pessoa e títulos que tentavam aplicar a mesma jogabilidade antiga, mas na visão dos olhos do personagem. Títulos de ação, para celular, shooters com foco no multiplayer e filmes de animação e com atores de verdade. Resident Evil, ao mesmo tempo em que fez o mercado dançar, também dançou conforme a música criada por outros títulos, que também faziam enorme sucesso.
E foi na pegada de Call of Duty que a franquia acabou, para muita gente, perdendo sua identidade. E em Resident Evil 6, um dos títulos mais ambiciosos de toda a franquia e também um dos mais criticados, foi que a série deixou muito a desejar, perdendo muitos dos fãs que havia preservado mesmo depois de tantas mudanças. O game vendeu como água, é claro, mas aqui, o hype falou mais alto, e para muitos, inclusive este que vos escreve, a tristeza é grande a cada vez que vem a lembrança deste jogo.
O que está atrás da próxima porta?
O futuro de Resident Evil, depois de tanta coisa, é incerto. O game ainda é uma das principais franquias da Capcom, ao lado de Street Fighter, mas isso acontece muito também pelo fato de que a empresa não vem lançando tantos games assim, com exceção de Monster Hunter, um absoluto sucesso no Japão.
No ano passado, veio um vislumbre de boas esperanças quando a Capcom, finalmente, lançou para os consoles atuais o remake do primeiro Resident Evil, de 2002, e também parte do acordo de exclusividade com a Nintendo. Pouco depois, veio RE Revelations 2, que flertou com o terror e bebeu da boa fonte de The Last of Us , além de trazer personagens e conceitos que há muito tempo não se via na franquia.
Esses bons ventos, entretanto, foram dissipados quando a Capcom anunciou a “comemoração” dos vinte anos de Resident Evil com um shooter aparentemente sem alma, Umbrella Corps, e relançamentos que ninguém pediu do quarto, quinto e sexto títulos da franquia para o PS4 e Xbox One. Para muitos fãs, ficou claro que a empresa está, sim, perdida, e não sabe muito bem o que fazer nem o que os seus aficionados desejam.
O vislumbre de esperança, entretanto, ainda existe e reside no remake de Resident Evil 2. Apesar de ainda não ter data de lançamento, a grande expectativa é de uma chegada no começo do ano que vem, ainda como parte do 20º aniversário da franquia e dando a ela um presente, esse sim, bastante digno. Sempre existem os temores quanto à destruição de um clássico, claro, mas até que as primeiras informações sobre o título sejam reveladas, não dá para afirmar absolutamente nada.
Isso sem falar, claro, no mítico Resident Evil 7, que ainda não foi anunciado, mas todos sabemos que está vindo. E é aqui que se encontra o grande nó, uma vez que, com seus títulos numerados, a Capcom sempre tenta abraçar a maior quantidade de jogadores possível, dos mais diferentes estilos. E foi justamente isso que resultou na caquinha que chamamos de sexto game da franquia.
A torcida, claro, é para que a saga volte à velha forma e retorne à posição de franquia que assusta milhões de pessoas, gera referências aqui e acolá e, acima de tudo, diverte os fãs. Os desafios do mercado de hoje são bem diferentes daqueles de 1996, mas ao mesmo tempo, não são todas as séries de jogos que chegam a duas décadas com tamanha força e reconhecimento. Resta, apenas, que a Capcom saiba o que fazer. Parabéns pelos seus 20 anos Resident Evil, e por favor, volte para nós o mais rápido possível.
Este artigo foi escrito originalmente para o Canaltech.