Uma das brincadeiras mais essenciais da primeira infância é a caixa com buracos em diferentes formatos, nos quais a criança deve inserir peças que combinem. Rapidamente, os pequenos aprendem que uma forma quadrada não se encaixa no buraco redondo e que diferenças de tamanho podem até fazer com que o jogo avance, mas passam longe de darem a liga necessária. Uma lição que a Capcom parece não ter aprendido.
Após uma sequência de bons lançamentos que começou lá em 2017, com Resident Evil 7, e garantiu a ela dois assentos entre os melhores games do ano passado, com a reimaginação do segundo jogo da franquia de horror e também Devil May Cry 5, a empresa deixa a peteca cair. Se as decisões questionáveis de enredo e os exageros de Resident Evil 3 já não foram suficientes, Resistance chega para mostrar que estávamos errados de acreditar que a Capcom havia encontrado um caminho — ou isso nunca aconteceu, ou ela conseguiu se perder novamente de forma incrivelmente rápida.
O título coloca quatro jogadores, na pele de sobreviventes com diferentes habilidades, em cenários de sobrevivência, lutando contra um Vilão. Um quinto usuário é responsável por posicionar armadilhas e criaturas enquanto tenta impedir os personagens de cumprirem os objetivos que levam à fuga, em um experimento da Umbrella que permite até mesmo o controle direto de suas armas biológicas mais poderosas.
Resistance pode até ser uma ideia interessante e que poderia funcionar se criada com cuidado e de forma direcionada. O reaproveitamento que vemos aqui, no final das contas, acaba não servindo de nada.
Na teoria, pode até parecer interessante, além de sintonizado com tendências do mercado atual. A prática é bem diferente. Anunciado como jogo individual e depois incluído de graça com o remake de Resident Evil 3, Resistance é desenvolvido pela Neobards, que tem no currículo conversões de clássicos da Capcom para o Switch. O game foi vendido como experimento e uma maneira de explorar novos rumos, como se tentativas anteriores de aliar o multiplayer competitivo ao terror já não tivessem demonstrado isso de forma clara.
Agora, estamos diante de mais uma comprovação. Nada contra jogos online, mesmo os de terror, com diferentes exemplos demonstrando que essa mistura pode funcionar se bem idealizada e realizada. O problema acontece quando as propostas são criadas a toque de caixa, seja como uma forma de capitalizar sobre uma marca de sucesso ou aproveitar conceitos com a desculpa de que eles estão sendo aplicados de outra maneira. Em ambos os casos, são problemas que atingem Resident Evil Resistance diretamente e fazem pensar sobre a validade do velho ditado sobre injeções gratuitas na testa.
A saúde dos servidores aparece como um dos primeiros adversários no game, mas aqui, antes de começarmos, é importante deixar claro que jogamos o título antes de seu lançamento oficial, enquanto apenas membros da imprensa mundial e produtores de conteúdo tinham acesso a ele. É claro, temos uma população online menor do que a encontrada em um título já disponível ao público, mas ainda assim, os longos períodos de espera para a formação de partidas chega a ser inexplicável, principalmente quando percebemos que a falha se repete na Beta aberta ao público, essa sim, muito mais povoada.
Em alguns casos, durante nossa experiência, a formação de partidas chegou a ultrapassar 10 minutos no modo aleatório, que teoricamente, seria o mais rápido e aloca jogadores em qualquer espaço disponível nos servidores. Caso tentemos jogar exclusivamente como Vilão, esse prazo pode chegar a ultrapassar meia hora, uma vez que há bem menos assentos disponíveis para esse papel.
Os problemas continuam quando finalmente conseguimos jogar. Ao contrário do que acontece com muitos títulos online, Resident Evil Resistance apresenta uma performance estável, com todas as partidas das quais participamos se mantendo do início ao fim, sem desconexões ou travamentos. A latência, entretanto, toma conta de toda a experiência.
Não será raro ver tiros sendo registrados nos inimigos de forma atrasada ou monstros posicionados pelo vilão brotando de repente, enquanto deveriam seguir toda uma preparação para dar aos sobreviventes a chance de se prepararem rapidamente. Em absolutamente todas as partidas de Resident Evil Resistance que jogamos, observamos, na tela, a mensagem de que a conexão com o Vilão estava prejudicada.
O game é melhor do que outras experiências da franquia focadas no multiplayer competitivo, mas isso não é um elogio, já que todas são bem ruins. Do jeito que está, essa é a memória de um passado que muitos jogadores estavam começando a esquecer.
É um problema estranho, que parece atingir apenas partes do pacote. Não foi possível observar travamentos na movimentação de aliados, enquanto, jogando como Vilão, também não deu para perceber a latência no controle de monstros ou ataques contra os sobreviventes. A falha parece estar no funcionamento das armas, na disposição de inimigos controlados pela IA e no reconhecimento de dano entre eles e os protagonistas, uma demonstração de que algo bem mais complicado de ser resolvido pode estar atingindo a infraestrutura.
Tudo isso torna o combate até mesmo contra armas biológicas mais fracas, como zumbis e cachorros, mais difícil do que deveria, enquanto toda a ação se torna um bocado injusta, mas para apenas um lado. Um reflexo de um desbalanceamento que é parte integrante da experiência com Resident Evil Resistance, mas que ao contrário dos problemas de infraestrutura — e, novamente, frisamos que nossa experiência aconteceu em um ambiente pré-lançamento —, está no cerne do jogo e não pode ser resolvida com simples atualizações ou manipulações de números.
Um dos principais destaques do remake de Resident Evil 2, e também o motivo pelo qual ele se tornou um dos melhores Survival Horrors desta geração, é seu ritmo aterrorizante e encadeado. O jogador segue sala a sala sem saber exatamente o que esperar, tendo que gerenciar munição e itens de cura para desafios que desconhece, tendo sempre a sensação de que algo de muito ruim vai acontecer.
O remake de Resident Evil 3 volta a aplicar essa fórmula de maneira um pouco mais solta, principalmente em sua primeira metade. O game foca um pouco mais na ação e, para garantir maior mobilidade, adiciona elementos como esquiva, uma maior quantidade de munição e mecânicas direcionadas e mais convidativas ao combate, mas sem perder as bases do terror. Resistance simplesmente vira a mesa, e tenta adicionar um todo frenético a uma parte que simplesmente não conversa com isso.
Como dito, um dos motes da experiência do Survival Horror é a opressão, com corredores apertados e inimigos em uma crescente de dificuldade que trazem, sempre, uma sensação de insegurança ao jogador. A transposição dessas características para o mundo online se traduz em confusão e desbalanceamento, em uma experiência que irrita e amarra o usuário.
Os cenários de são bonitos e cheios de elementos, fazendo bom uso do motor gráfico RE Engine, mas se tornaram labirínticos de forma artificial. Encontrar o caminho nunca é uma tarefa fácil, enquanto abrir o mapa que persiste na tela só torna ainda pior a bagunça de uma interface cheia de ícones, indicações, textos e imagens que confundem. Os indicadores de áudio e as provocações do Vilão se misturam às falas dos protagonistas e sons das criaturas, em uma maçaroca que ofusca a trilha sonora criada para dar o tom dos desafios e, também, indicar a presença de armas biológicas supremas no cenário. O resultado é muito maluco e, às vezes, incompreensível.
O mesmo também vale para a dinâmica de Resident Evil Resistance em si. O game tenta aplicar a exploração de cenários de seus irmãos maiores em um estilo mais frenético, mas acaba caindo em um de dois extremos — ou os sobreviventes ficam como baratas tontas tentando cumprir objetivos que não sabem bem quais são, ou completam as missões de forma direta ao ponto, já que o game não possui uma aleatoriedade real no posicionamento de itens-chave, e sim, cenários pré-prontos que podem ser selecionados pelo Vilão.
Caso os usuários saibam o que fazer e estejam bem coordenados, cumprir os objetivos será fácil e rápido. A Neobards tenta contrabalancear isso com a aposta na habilidade do Vilão em posicionar monstros e utilizar armadilhas, e aqui, entra em jogo o maior aspecto negativo de Resident Evil Resistance, e também, uma desfiguração da já citada sensação de insegurança de suas raízes no Survival Horror.
O game é completamente desbalanceado nesse sentido, permitindo que o oponente simplesmente inunde o cenário de ameaças, enquanto os sobreviventes ficam sem margem de manobra. Outra evidência dessa falta de cuidado está na utilização de monstros como William Birkin e Tyrant, ambos com ataques one hit kill e uma resistência descomunal, sendo forças ainda mais implacáveis do que nos próprios jogos que os originaram, onde os protagonistas tinham suas artimanhas e maneiras de lidar com eles.
E novamente, retornamos ao ponto anterior. Caso um usuário se perca pelo caminho para a saída, uma partida bem-sucedida pode ir rapidamente para o ralo enquanto o Vilão “flooda” a área da portas com inimigos, com sobreviventes desesperados e sem a capacidade de lidar com as ameaças. A câmera próxima demais dos personagens e os cenários apertados contribuem para essa sensação de confusão e, também, para a vontade de desligar o vídeo game.
Felizmente, a Capcom e a Neobards não caíram na armadilha fácil das microtransações para monetizar Resistance, adotando a prática considerada ética de contar com incrementos apenas estéticos na compra com dinheiro de verdade. Habilidades e melhorias são habilitadas somente com dinheiro virtual, obtido jogando, mas levando todo o restante em conta, há pouco incentivo para permanecer conectado e, principalmente, esperar muito tempo por partidas confusas e nada equilibradas.
Já que a ideia é passar ódio, é melhor fazer isso do jeito certo, encarando Nemesis em Resident Evil 3 ou, então, tentando fazer com que as reminaginações da Capcom se encaixem na cronologia já sacramentada da franquia. Pelo menos, no game principal, temos uma experiência melhor acabada, ainda que com grandes problemas, enquanto em Resistance, apenas a confusão reina.
O game é melhor do que outras experiências da franquia focadas no multiplayer competitivo, é verdade, mas isso não é um elogio, já que todas são bem ruins. Resident Evil Resistance pode até ter uma ideia interessante e que poderia funcionar se criada com cuidado e, principalmente, de forma direcionada. O reaproveitamento que vemos aqui, no final das contas, acaba não servindo de nada, a não ser pintar um panorama bastante negativo e um retorno a um passado que muitos jogadores estavam começando a esquecer.
O jogo foi testado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Capcom. Este review também foi publicado no Canaltech.