Percorremos um longo caminho até aqui. Lara Croft passou de musa dos games, com foco nos atributos corporais e na sexualidade em um título cujos gráficos não conseguiam refletir isso muito bem, para uma guerreira não tão arrojada, mas violenta e sanguinária. Do lado de fora, são décadas de títulos clássicos, outros que os fãs preferiam esquecer e um reboot que pavimentou a estrada que termina agora. Por dentro, temos a evolução de uma personagem que sempre foi fadada à aventura, mas se viu mergulhada neste mundo de forma traumática.
Talvez pela violência desse início, sua evolução também seguiu manchada de sangue. Da garota indefesa e lutando pela vida que vimos em 2013 para a exploradora encantada com relíquias de Rise of the Tomb Raider, chegamos à versão mais madura de Croft em um game que promete terminar essa trilogia de origem da protagonista. Mas e se ela fosse, assim como o meme, só que literalmente, fosse longe demais?
É essa a grande premissa de Shadow of the Tomb Raider e, também, uma das maiores facas de dois gumes desse novo game. A conclusão desta saga chega por novas mãos (a Eidos Montreal desenvolve o título, enquanto a grande mãe do reboot, a Crystal Dynamics, está ocupada com o game dos Vingadores, além de outros projetos), mas com os mesmos ares de sempre, repaginados e levados adiante. Para o bem ou para o mal.
A aventura da vez nos leva à América do Sul, mais especificamente, na porção peruana da floresta amazônica. E, como tal, o que vemos é uma mata fechada e aparentemente intransponível, mas com a qual Lara parece bastante familiar. Afinal de contas, os clichês não apenas da franquia, mas de praticamente todo enredo de aventura dessa categoria, a levam a se ver largada no meio da mata, com poucos recursos e se vendo obrigada a lutar pela própria sobrevivência. Nada que o jogador, assim como a personagem, já não esteja acostumado.
É justamente desse trampolim que a Eidos Montreal salta para criar um ambiente que é tão digno de destaque quanto a própria exploradora. A mata é fechada e opressora, mas ao mesmo tempo, cheia de recursos espalhados. O aspecto de criação de itens ganhou um belo incremento em Shadow of the Tomb Raider, causando um nó nos dedos e na cabeça com os diversos tipos diferentes de flechas e equipamentos a serem construídos. O jogador, dificilmente, se verá sem recursos, mas ao mesmo tempo, o título faz questão de fazer com que ele jamais se sinta seguro.
Shadow of the Tomb Raider é o ápice de um evento que começou lá em 2013. É o maior e melhor da saga, mas ao mesmo tempo, parece não ter mais aquele charme que encantou tanta gente ao longo dos últimos cinco anos.
Aumentaram as possibilidades, mas também os desafios. A Trindade, grande inimiga de Croft, sabe com quem está lidando e, principalmente, já entendeu que não pode subestimar a heroína. O resultado dessa equação são soldados fortemente armados povoando os arredores de cidadelas e tumbas, gerando um foco renovado na furtividade. Partir para cima dos oponentes ainda é uma opção, mas em Shadow of the Tomb Raider, a Eidos Montreal quer que o jogador se comporte mais como uma sombra, com o perdão do trocadilho.
Os Instintos de Sobrevivência, por exemplo, focam nisso revelando quais soldados podem ser neutralizados sem que os outros sejam alertados. Caso seja vista, Lara pode refazer sua estratégia e voltar às sombras se for perdida de vista pelos oponentes, usando o rol usual de elementos ambientais para se esconder – grama alta, lama e árvores serão seus parceiros para agir como o Predador, de quem o título empresta influências, principalmente, na visceralidade e estilo.
Os combates em si, entretanto, soam datados, o que, mais do que a habilidade de Croft, aparece como justificativa para o foco dado à furtividade. Atirar com o arco continua tão prazeroso como sempre, mas esta é uma arma que exige calma e respiração. Ao usar a metralhadora, melhor opção para o combate direto, Lara ainda se parece com a garota que vimos no início desta reimaginação, com uma mira pesada e difícil de controlar, aliada a tiros que parecem se espalhar pelo cenário e inimigos que se comportam de maneira burra.
Fica aquela sensação de que um chacoalhão é necessário tanto na protagonista quanto na franquia em si. Algo que pode ser muito bom, para sua longevidade, ou, novamente, nos levar de volta aos mesmos erros de um passado que muitos querem esquecer.
Afinal de contas, que tipo de equipe de soldados de elite seguiria em fila indiana na direção de uma inimiga que, todos sabem, está os aguardando logo atrás de um rochedo? Eles têm algum tipo de surdez? É o que parece quando um grupo de oponentes permanece conversando como se nada tivesse acontecido, alguns metros depois de uma zona em que um combate cheio de tiros e explosões acabou de acontecer. E o que dizer da flecha que causa loucura, uma das novidades mais interessantes, que muitas vezes é desperdiçada em um militar que, simplesmente, é incapaz de atingir seu alvo?
Unidos à levada geral do título, os trechos de enfrentamento acabam soando como uma inconveniência momentânea (principalmente se o jogador falhar na furtividade) que entremeia o que realmente importa em Shadow of the Tomb Raider. Explorar o ambiente nunca foi tão divertido, já que eles jamais foram tão expansivos e bonitos. A floresta, mais do que Lara, se duvidar, é a grande protagonista de Shadow of the Tomb Raider.
Como uma boa e velha aventura baseada em lendas antigas e exploração, bem como preenchendo muito bem a forma deixada pelos anteriores, o título da Eidos Montreal nos apresenta uma aventura belíssima e cheia de segredos, escondidos sob as copas das árvores e as velhas tumbas soterradas pelo tempo. São sublimes os momentos em que Lara sai de uma tumba escura e claustrofóbica para um cenário que se abre em sua imensidão, onde podemos enxergar à distância.
Da mesma maneira, a produtora abusa dos momentos em que a câmera se aproxima da protagonista, a observando bem de perto durante uma escalada (dá para ver que ela não tem faltado à academia, inclusive, com os músculos se movendo chamando a atenção pelo nível de detalhes), para, na sequência, abrir com a vastidão de um horizonte. É um deleite para quem ama tirar screenshots, que terá o estoque de wallpapers renovados.
Outro momento de destaque aparece sempre que uma grande estrutura ou mecanismo antigo se movimenta após o pressionamento de um botão ou resolução de um puzzle. O game faz um bom trabalho em criar uma suspensão de descrença para que o jogador ignore a sofisticação exacerbada de algumas engenhocas e ignore a irrealidade de outras, fazendo isso por meio da surpresa e da grandiosidade. A própria Lara se mostra impressionada em muitos momentos, refletindo a boca aberta do próprio jogador, atrás do controle.
Shadow of the Tomb Raider também reforça a exploração aquática, pervertendo o velho clichê de que fase na água é sempre ruim. Os trechos em que mergulhamos em cavernas e, principalmente, aqueles em que Lara se espreme em passagens impossivelmente estreitas, são os mais tensos do game, muito por não termos um indicador de oxigênio confiável. Um ponto bem negativo, que dificulta entender exatamente até onde podemos ir, sob pena de vermos Croft agonizando quando achávamos que tudo terminaria bem.
A exploração dos cenários antigos, mais do que tudo, é a estrela do título e o leva para a frente, tanto que a própria motivação da protagonista surge a partir disso e é, também, levada às últimas consequências por causa desta mesma gana. Você, como jogador, vai se sentir o tempo todo instigado a explorar cada cantinho e espaço em busca de itens ou segredos – é um sentimento que compartilhamos com a personagem principal, que em um ato quase impensado, acaba detonando cataclismas sobre nosso mundo. Lembra do apocalipse maia de 2012? Se Lara Croft existisse de verdade, ele provavelmente teria acontecido.
Temos uma personagem que parece estar no auge de suas habilidades e com um desejo de descoberta e, até mesmo, vingança, inerente à sua atuação. Por outro lado, isso trouxe consigo uma inconsequência que coloca não apenas ela, mas, desta vez, todo o mundo, em risco. Tudo movido por um único ato impensado, um movimento que uma exploradora veterana não faria. Mas, como todos sabemos, Croft não é exatamente uma veterana.
Ela tem experiência, sim, e sabe lidar com os perigos, também. Mas, como o enredo faz muita questão de mostrar, ela ainda carrega muito da jovem que ficou presa na ilha de Yamatai. Também, tem dentro de si a garotinha que encontrou o corpo ainda fresco de seu pai, morto pela Trindade em uma queima de arquivo quando estava prestes a descobrir e revelar os segredos da irmandade. Ali, estava criada a maior inimiga da organização secular e, também, a maior ameaça para todo o planeta.
Esse senso de responsabilidade, entretanto, não é tão bem aproveitado assim. Lara Croft sabe o que fez, sofrendo as consequências diretas do que causou logo cedo no game – a cena em meio ao tsunami, inclusive, é uma das mais impressionantes não apenas deste game, mas da franquia como um todo. Ao mesmo tempo, ela não parece tão preocupada com isso assim, colocando seus próprios interesses acima de todos os outros. É um problema de personalidade que, muitas vezes, vai conflitar com a do jogador, que está vendo o mundo diante do fim enquanto controla uma personagem mais interessada em acabar com a Trindade do que reverter o dano que causou “sem querer-querendo”.
Com isso, ao contrário do que a ordem natural das coisas indica, o arco de Jonah acaba sendo mais interessante que o de Lara, justamente, pelo fato de o jogador ter sua empatia reduzida ao se ver discordando das atitudes dela, mas, ainda assim, obrigado a ser seu vetor.
Soa esquisito, também, o fato de, muitas vezes, o modelo do coadjuvante parecer mais interessante e trabalhado que o da própria protagonista. Esse comportamento inconstante, inclusive, permeia todo o título, que soa incrível aos olhos em sua imensidão de cenários, mas ao mesmo tempo, pode pecar em elementos bem próximos de nós, como buracos cheios de lama com um comportamento bizarro ou problemas graves de sincronia labial, bastante amenizados por uma atualização de “dia um”, mas ainda bem perceptíveis.
Em uma crítica que, infelizmente, é bastante comum, a localização para o português também deixa a desejar, com entonações e falas que claramente não refletem a urgência dos momentos e tornam o distanciamento entre o jogador e Lara ainda maior. Felizmente, a Eidos Montreal aderiu às boas práticas de localização e criou opções de idioma que independem da linguagem do console e que, também, separam fala de legenda. Para aproveitar melhor o enredo, nossa sugestão é jogar no original em inglês, mas com textos em português.
A conclusão desta saga chega pelas mãos da Eidos Montreal, mas com os mesmos ares de sempre, repaginados e levados adiante. Para o bem ou para o mal.
Um último aspecto, ainda, denota falta de cuidado. Em uma configuração que chamará a atenção, é possível fazer com que os nativos falem em sua língua local, trazendo mais autenticidade ao cenário de Shadow of the Tomb Raider. Entretanto, é bem esquisito ver Lara respondendo no mais puro inglês britânico a um personagem falando espanhol. No mundo real, ela ficaria reconhecida no Peru como a gringa mal-educada.
Shadow of the Tomb Raider é o ápice de um evento que começou lá em 2013, quando a Crystal Dynamics começou a desenhar a história de uma Lara Croft gente como a gente, mas com um ímpeto de sobrevivência e habilidades quase sobre-humanas. Quem se encantou com as histórias de exploração e mitos, bem como com a evolução da protagonista que encontra, mesmo que à força, seu dom e vocação, estará mais uma vez muito bem servido aqui.
Ao mesmo tempo, porém, fica difícil olhar além dos elementos adicionados, que soam mais como perfumaria, e na insistência de erros de cinco anos atrás, além da aposta renovada em uma jogabilidade datada. O novo título pode ser citado como o maior e melhor da saga, mas ao mesmo tempo, parece não ter mais aquele charme que encantou tanta gente ao longo dos últimos cinco anos.
Da mesma forma que os olhos de Lara Croft brilham ao dar de cara com um artefato histórico que, minutos depois, desencadeia o apocalipse, os dos jogadores também farão isso ao de deparar com o retorno dos saltos fantásticos e das tumbas intrincadas e cheias de segredos, agora, mais do que nunca. Simultaneamente, porém, fica aquela sensação de que um chacoalhão é necessário tanto na protagonista quanto na franquia em si, algo que pode ser muito bom, para sua longevidade, ou, novamente, nos levar de volta aos mesmos erros de um passado que, como dito, muitos gostariam de esquecer.
O game foi analisado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Square Enix.