Os seres humanos normais podem se identificar com os heróis por uma série de fatores. Eles são o símbolo da virtude e do sacrifício, poderosos e capazes de absolutamente qualquer coisa, ainda que inatingíveis. Um dos maiores trunfos da criação de Stan Lee, porém, foi manter todos esses aspectos quase que intocados, com exceção do último, e transformar o Homem-Aranha em alguém como eu e você.
De garoto bobo até o moleque amigo de Tony Stark dos cinemas, foram diferentes iterações, algo que também se repete nos games. E mais do que uma bela representação do herói, Marvel’s Spider-Man, de 2018, também se tornou um dos melhores títulos da plataforma. Os jogadores queriam mais, a Sony também, e o resultado chega às nossas mãos agora.
O cenário, afinal de contas, já estava desenhado, com o personagem desta expansão individual, que caminha sobre suas próprias pernas apesar da curta duração e dos conceitos parecidos, já sendo um conhecido dos fãs. Chegou a hora do “outro Homem-Aranha”, Miles Morales, brilhar. E ele sem dúvida fez isso.
O game que abre as portas do PlayStation 5 mas mantém suas raízes fortes no PS4 carrega todas as qualidades de seu antecessor. A navegação por Nova York continua sendo o principal ponto forte da aventura e nós poderíamos passar horas apenas explorando as possibilidades que a travessia por teias nos permite, enquanto voamos em alta velocidade em meio aos arranha-céus e ouvimos a surpresa dos transeuntes com o herói que acabou de passar acima de suas cabeças, rumando para uma missão ou para o jantar de Natal.
Spider-Man: Miles Morales é tão bom quanto o original. Todos os elementos que encantaram no primeiro estão aqui, com a expansão trazendo novos personagens e um mundo diferente, ainda que reconhecível.
Junte a isso, nesta expansão, a malemolência do próprio Miles, que transparece por meio dos diálogos muito bem escritos e da trilha sonora que reforça temas do original, acrescenta novos e coloca uma batida em absolutamente tudo. As faixas licenciadas são tão boas quanto as compostas para o game, com um ritmo natural que acompanha as cenas de ação, os momentos de ternura, o bom humor sempre presente e as situações mais tensas ou triste.
Parece que algo sempre está tocando, seja um podcast ou uma ligação de um companheiro de identidade secreta ou luta contra o crime, além das próprias músicas. E com isso, Marvel’s Spider-Man: Miles Morales também passa a sensação de que alguma coisa está acontecendo o tempo inteiro e torna natural a execução de missões secundárias, mesmo nos momentos mais urgentes ou intrigantes da missão principal.
O “outro Homem-Aranha”, afinal de contas, se vê transformado no único herói de Nova York. Após mandar bem em um combate contra Rhino, ele faz com que Peter Parker, herói do primeiro game da série, se sinta confortável o bastante para tirar umas férias para descansar dos eventos do game original. Afinal de contas, os grandes vilões estão todos presos, mas claro, não teríamos jogo se uma nova ameaça não surgisse.
Entram diferentes figuras que, cada uma do seu jeito, representam ameaças à cidade, ao herói e, como sempre acontece nas histórias do Homem-Aranha, àqueles que são mais próximos do coração dele. De um lado, está Simon Krieger, o ambicioso CEO da Roxxon, uma empresa que desenvolveu um tipo de energia limpa e renovável, mas com suas vírgulas. Do outro, está Tinkerer, a líder de um grupo criminoso chamado Underground, que parece ter uma rixa pessoal com a empresa e a cidade.
Está criado, assim, o ensejo da campanha principal de Spider-Man: Miles Morales, que traz um enredo um tanto manjado, mas sem deixar de ser divertido. Quem acompanha os filmes, histórias ou absolutamente qualquer coisa envolvendo heróis vai saber exatamente para onde a história está levando o jogador, sem que eventuais plot twists e viradas efetivamente surpreendam. A narrativa ajuda a embalar a aventura, entregando o que se esperaria dela e nada mais.
Alguns truques criativos, por outro lado, também aparecem aqui. A Insomniac Games não subestima a inteligência dos jogadores e, também, a memória recente, não ousando fazer de conta que ninguém assistiu “Homem-Aranha no Aranhaverso” e usando o plot twist do filme como um ponto trivial e interessante da trama. Por outro lado, nota negativa fica para o uso de Tinkerer, que aparece aqui de uma forma bem diferente da que os leitores estão acostumados, com esse aspecto não sendo tão bem utilizado assim.
O personagens que circundam o próprio Homem-Aranha também chamam a atenção, com destaque para os diálogos entre Miles e seu melhor amigo, Ganke, e a relação besta de adolescente entre o protagonista e Phin. Por mais que os desenrolares, aqui, sejam pouco inspirados e bastante previsíveis, dá para se identificar com o moleque que se vê obrigado a encarar grandes responsabilidades tão jovem. Mesmo parecendo ser ainda mais poderoso do que o seu mentor, a insegurança ainda é um freio importante para ele, e quem disser que não consegue saber como ele se sente estaria mentindo.
Mais divertido do que seguir a história principal em si, porém, é trabalhar com a própria cidade em um aplicativo criado por Ganke, melhor amigo de Miles. Quase como um Uber-Aranha, o novo herói também está se provando a Nova York realizando uma série de missões secundárias (ou não) enquanto recebe chamados de socorro, carros roubados, pombos e gatos sumidos. São missões rápidas e que quebram as incursões maiores vistas na trama principal, também permitindo uma evolução rápida do personagem.
A história é manjada e previsível, mas pelo menos, a Insomniac Games não subestima a inteligência dos jogadores e faz de conta que ninguém assistiu “Homem-Aranha no Aranhaverso”, usando as viradas do filme de forma criativa.
Nesse aspecto, Marvel’s Spider-Man: Miles Morales segue a mesma lógica do antecessor, apresentando diferentes árvores de habilidades para equipamentos, capacidades do herói e, claro, roupas. O figurino, aqui, não é tão inspirado quanto o que vimos no game com Peter Parker, que tem muito mais história para contar, mas as roupas são interessantes e trazem acenos interessantes a outras iterações do protagonista e momentos dos quadrinhos, assim como um uso bastante criativo da vestimenta usada por ele em “Aranhaverso”.
Entre manobras realizadas entre saltos, a caça a baús com itens do Underground e crimes em andamento, a sensação é de sempre ter o que fazer, o que faz com que as cerca de oito horas necessárias para finalizar o jogo em uma primeira vez passem voando. E, como no original, a leveza do jogo e a quantidade de coisas para fazer faz com que o retorno a essa Nova York se torne uma vontade assim que os créditos finais terminam.
Está de volta a ainda inexplicável utilização dos nomes originais de personagens, heróis e vilões na dublagem para o português, ainda que, dessa vez, seja possível alterar as vozes sem mudar o idioma das legendas.
O tempo passado entre o game original e este também trouxe diferentes melhorias ao título, que não apresenta mais tantos bugs quanto o original e tem uma movimentação ainda mais natural. A experiência também se traduz em um mundo aberto ainda mais belo, mesmo na versão básica do PlayStation 4, e um teor artístico de extremo bom gosto, que muda completamente a personalidade do título, ainda que ele se passe nos mesmos lugares que o original.
A adoção do clima de Natal ajuda muito nisso, junto com os grafites encontrados por todo lado e, também, a trilha sonora. Toda a experiência com Marvel’s Spider-Man: Miles Morales carrega uma personalidade que encanta e faz o jogador pedir por mais. É bem o tipo de game que você vai querer jogar “só mais um pouquinho” e, quando olhar o relógio, horas terão se passado.
Erros do passado, claro, também são cometidos aqui, como a sala nos dedos oriunda da quantidade de poderes do herói, agora ainda maior com as capacidades únicas de Miles, e a ainda inexplicável utilização dos nomes originais de personagens, heróis e vilões na dublagem para o português. Felizmente, desta vez, dá para modificar o idioma das falas independentemente das legendas, enquanto a versão em nossa língua também é de extrema qualidade, apesar disso.
Ainda que mais curto e sem as grandes surpresas reservadas pelo original, Marvel’s Spider-Man: Miles Morales se torna tão bom quanto. Todos os elementos que encantaram no primeiro game estão aqui, com a expansão trazendo novos personagens e um mundo diferente, ainda que reconhecível. É um ensejo que vale a pena visitar de novo.
Indo além, a nova aventura também aparece como um aperitivo do que está por vir. Como um game cross-gen, Spider-Man: Miles Morales não aproveita de todo o potencial do PlayStation 5, enquanto extrai ao máximo as capacidades do seu antecessor, deixando aquela antecipação pela sequência de verdade, que ainda não foi anunciada, mas todos sabemos estar por vir. E, aí sim, as apostas e a emoção aumentam de verdade.
O jogo foi testado no PS4, em cópia cedida pela Sony.